A Terra Devastada
T.
S. Eliot
Tradução de Gualter Cunha
Elaine Pessoa, Tempo Arenoso |
I.
O Enterro dos Mortos
Abril
é o mês mais cruel, gera
Lilases
da terra morta, mistura
A
memória e o desejo, agita
Raízes
dormentes com chuva da Primavera.
O
Inverno aconchegou-nos, cobriu
A
terra com o esquecimento da neve, alimentou
Uma
pequena vida com bolbos ressequidos.
O
Verão apanhou-nos de surpresa, veio por sobre o Stambergersee
Com
um aguaceiro súbito; paramos na colunata,
E
seguimos, já com sol, para o Hofgarten,
E
tomamos café e ficamos uma hora a conversar.
Bin gar keine Russin, stamm' aus
Litauen, echt deutsch.
E
quando éramos pequenos, e ficamos em casa do meu primo,
O
arquiduque, ele levou-me a andar de trenó
E
eu apanhei um susto. Disse, Marie,
Marie,
segura-te bem. E fomos por ali abaixo.
Nas
montanhas, aí sim sentimo-nos livres.
Leio,
quase toda a noite, e vou para o sul no Inverno.
Que
raízes se prendem, que ramos crescem
Neste
entulho pedregoso? Filho do homem,
Não
consegues dizer, nem adivinhar, pois conheces apenas
Um
montão de imagens quebradas, onde bate o sol,
E
a árvore morta não dá qualquer abrigo, nem o grilo alívio,
Nem
a pedra seca qualquer ruído de água. Apenas
Há
sombra debaixo desta rocha vermelha
(Anda,
vem para a sombra desta rocha vermelha),
E
vou mostrar-te uma coisa ao mesmo tempo diferente
Da
tua sombra quando ao amanhecer te segue
E
da tua sombra quando ao entardecer te enfrenta;
Vou
mostrar-te o medo num punhado de poeira.
Frisclz welzt der Wind
Der Heimat zu
Mein Irisclz Kind,
Wo weilest
du?
«Deste-me
Jacintos há um ano pela primeira vez;
«Diziam
que eu era a rapariga dos jacintos.»
–
Porém quando viemos, já tarde, do jardim dos jacintos,
O
teu braçado cheio e o teu cabelo molhado, não consegui
Falar,
os meus olhos toldaram-se, eu não estava
Vivo
nem morto e não conheci a nada,
Os
olhos postos no coração da luz, o silêncio.
Oed' wzd leer das Meer.
Madame
Sosostris, vidente famosa,
Estava
muito constipada, no entanto
Passa
por ser a mais sabedora mulher da Europa,
Com
um maldito baralho de cartas. Aqui, dizia ela,
Está
a sua carta, o Marinheiro Fenício afogado,
(Aquilo
são pérolas que eram os olhos dele. Veja!)
Aqui
está Belladonna, a Senhora dos Rochedos,
A
senhora das complicações.
Aqui
está o homem dos três bordões e aqui a Roda
E
aqui o mercador zarolho, e esta carta,
Que
é branca, é alguma coisa que ele leva às costas,
Que
não me é consentido ver. Não encontro
O
Enforcado. Tenha medo da morte pela água.
Vejo
multidões de gente, a caminhar em círculo.
Obrigada.
Se vir a querida Sra. Equitone,
Diga-lhe
que eu própria levo o horóscopo:
Hoje
em dia temos de ter tanto cuidado.
Cidade
Irreal,
Sob
o nevoeiro pardo de um amanhecer de Inverno,
Uma
multidão fluía pela London Bridge, eram tantos,
Eu
não pensava que a morte tivesse aniquilado tantos.
Suspiros,
curtos e raros, eram exalados,
E
cada um fixava os olhos adiante dos pés.
Fluíam
encosta acima e desciam King William Street,
Até
onde Saint Mary Woolnoth dava as horas
Com
um som morto na derradeira badalada das nove.
Aí
vi alguém que conhecia, fi-lo parar, gritei-lhe: «Stetson!
«Tu
que estiveste comigo nos barcos em Mylae!
«O
cadáver que plantaste o ano passado no jardim
«Já
começou a dar rebentos? Será que dá flor este ano?
«Ou
o canteiro foi estragado pela geada imprevista?
«Oh,
afasta de lá o Cão, que é amigo dos homens,
«Ou
ele com as unhas ainda o desenterra outra vez!
«Tu! hypocrite lecteur! – mon semblable –, mon frère!»
II.
Uma Partida de Xadrez
A
Cadeira onde ela se sentava, como um trono polido,
Reluzia
no mármore, onde o espelho
Apoiado
em colunas ornadas de vides com uvas
Por
entre as quais espreitava um Cupido dourado
(Outro
escondia os olhos com uma asa)
Duplicava
as chamas de candelabros de sete velas
Refletindo
a luz no tampo da mesa enquanto
Para
a luz se elevava o brilho das suas joias
Derramadas
em exuberância de estojos acetinados.
Em
frascos de marfim e vidro colorido
Destapados,
emboscavam-se seus estranhos perfumes sintéticos,
Em
creme, em pó ou líquidos – perturbavam,
confundiam
E
afogavam o sentido em odores; agitados pelo ar
Refrescante
vindo da j anela, eles ascendiam,
Engordavam
as chamas alongadas das velas,
Lançavam
o fumo sobre a moldura do teto,
Onde
agitavam o desenho dos caixotões.
Madeiros
do mar ali mentados com cobre
Ardiam
em laranja e verde, enquadrados pela pedra de cor,
Em
cuja luz triste nadava um golfinho entalhado.
Sobre
o lintel da vetusta lareira era mostrada
Como
se uma janela desse para a cena rústica
A
mudança de Filomela, pelo bárbaro rei
Tão
brutalmente violentada; mas aí o rouxinol
Enchia
todo o deserto com voz inviolável
E
ela ainda gritava, e ainda o mundo persegue,
«Chac
Chac» a ouvidos imundos.
E
outros ressequidos cepos de tempo
Eram
narrados nas paredes; formas de olhares fixos
Assomavam,
inclinavam-se, e emudeciam a sala que cercavam.
Vinham
passos arrastados pela escada.
Sob
a luz do fogo, sob a escova, o cabelo dela
Espraiado
em pontos faiscantes
Cintilava
em palavras, depois ficava ferozmente calmo.
«Esta
noite os meus nervos estão mal. Sim, mal. Fica comigo.
Fala
comigo. Por que é que nunca falas? Fala.
Em
que estás a pensar? A pensar o quê? O quê?
Nunca
sei o que estás a pensar. Pensa.»
Penso
que estamos no beco das ratazanas
Onde
os homens mortos perderam os seus ossos.
«Que
barulho é esse?»
O vento debaixo da porta.
«Que
barulho é esse agora? Que está a fazer o vento?»
Nada outra vez nada.
«Tu
Não
sabes n ada? Não vês nada? Não te lembras de
«Nada?»
Lembro-me
Aquilo
são pérolas que eram os olhos dele.
«Tu
estás vivo, ou não? Não há nada na tua cabeça?»
Mas
Oh
Oh Oh Oh aquele ritmo de rag
Shakespeheriano –
É
tão elegante,
Tão
inteligente
«Que
hei-de fazer agora? Que hei-de fazer?
Vou
sair tal como estou, e andar pela rua
Com
o cabelo solto, assim. Que havemos de fazer amanhã?
Que
havemos de fazer alguma vez?»
A
água quente às dez.
E
se chover, um carro coberto às quatro.
E
jogaremos uma partida de xadrez,
A
apertar olhos sem pálpebras e à espera que batam à porta.
Quando
o marido da Lil saiu da tropa, eu disse –
Não
tive papas na língua, fui eu mesma que lhe disse,
VAMOS
EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Agora
que o Albert vem aí, vê lá se te pões jeitosa.
Há-de
querer saber o que fizeste ao dinheiro que te deu
Para
te pores uns dentes. Deu-te, sim, eu estava lá.
Trata
de tirá-los todos, Lil, arranja uma dentadura bonita,
Disse
ele, juro, nem sequer aguento olhar para ti.
E
já nem eu aguento, disse eu, e pensa no pobre do Albert,
Quatro
anos de tropa, agora há-de querer desforra,
E
se tu não lha dás, há outras que sim, disse eu.
Ai
há, disse ela. Olha o que te digo, disse eu.
Então
já sei a quem agradecer, disse ela, e olhou-me nos olhos.
VAMOS
EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Se
não gostas, olha, o mal é teu, disse eu.
O
que não souberes colher outras hão-de saber.
Mas
se o Albert se for, não digas que não te avisaram.
Devias
ter vergonha, disse eu, de parecer um caco velho.
(E
ela só com trinta e um.)
Não
sei que fazer, disse ela, a pôr cara de caso,
É
dos remédios que tomei, para o desmancho, disse ela.
(Ela
já teve cinco, e quase morreu do George, do pequenito.)
O
da farmácia disse que não fazia mal, mas nunca mais fui a
mesma.
Tu
és
mesmo parva, disse eu.
Então,
se o Albert não te deixa em paz, lá está, disse eu,
Para
que te casaste se não queres ter filhos?
VAMOS
EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Então,
nesse domingo o Albert estava em casa, tinham cozinhado
presunto,
E
convidaram-me para jantar, para o apreciar quentinho –
VAMOS
EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
VAMOS
EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Banoite
Bill . Banoite Lou. Banoite May. Banoite
'Deuzinho.
Banoite. Banoite.
Boa
noite, senhoras, boa noite, gentis senhoras, boa noite, boa
noite.
III.
O Sermão do Fogo
A
tenda do rio rompeu-se: os derradeiros dedos de folhas
Agarram-se
e enterram-se na margem úmida. O vento
Atravessa
a terra parda, sem se ouvir. As ninfas partiram.
Gentil
Tamisa, corre lento, até eu findar meu canto.
O
rio não leva garrafas vazias, papéis de sanduíche,
Lenços
de seda, caixas de cartão, pontas de cigarro,
Ou
outros testemunhos de noites de verão. As ninfas partiram.
E
os amigos delas, os vadios herdeiros dos diretores da City –
Partiram,
não deixaram endereços.
Junto
às águas do Leman assentado eu chorei...
Gentil
Tamisa, corre lento, até eu findar meu canto,
Gentil
Tamisa, corre lento, que eu não falo nem alto nem muito.
Mas
por detrás de mim num estrondo frio eu ouço
O
restolhar dos ossos, e a risada aberta de uma orelha à outra.
Uma
ratazana deslizou lenta pela vegetação
A
arrastar a barriga viscosa pela margem
Enquanto
cu pescava no turvo canal
Num
entardecer de inverno nas traseiras da central do gás
A
cismar no naufrágio do rei meu irmão
E
na morte antes dele do rei meu pai.
Corpos
brancos nus no chão baixo e úmido
E
ossos lançados num exíguo sótão baixo e seco,
Só
restolhados pela pata da ratazana, de um ano ao outro.
Mas
por detrás de mim de vez em quando eu ouço
Buzinas
e automóveis, que hão-de trazer
Swecney
à Sra. Porter quando for Primavera.
Oh
estava a Sra. Porter pela lua iluminada
Assim
como a filha estava
Ambas
lavam os pés em água com soda
Et O ces voix d'enfants, chantant dans la coupole!
Tuít tuít tuít
Chac chac chac chac chac chac
Tão
brutamente violentada.
Tereu
Cidade
irreal
Sob
o nevoeiro pardo de um meio-dia de Inverno
O
Sr. Eugenides, o mercador de Esmima
De
barba por fazer, um bolso cheio de passas
C.i
.f. Londres: documentos à vista,
Convidou-me
em francês demótico
Para
um almoço no Cannon Street Hotel
Seguido
de um fim-de-semana no Metropole.
À
hora violeta, quando os olhos e as costas
Se
elevam da secretária, quando a máquina humana aguarda
Como
um táxi latejante à espera,
Eu
Tirésias, embora cego, latejante entre duas vidas,
Um
velho com seios mirrados de mulher, consigo ver
À
hora violeta, a hora do entardecer que se arrasta cansada
De
caminho a casa, e traz o marinheiro de regresso do mar,
A
datilógrafa em casa à hora do chá, levanta o pequeno-almoço,
acende
O
fogão, e põe na mesa comida de conserva.
Perigosamente
estendidas por fora da janela,
Secam
as combinações, que o sol toca com os
derradeiros raios,
Em
monte no divã (à noite a cama dela)
Meias,
chinelas, corpetes e espartilhos.
Eu
Tirésias, um velho de tetas mirradas
Entendi
a cena e antecipei o resto –
Também
eu aguardava o visitante previsto.
Ele
chega, o jovem carbuncular, um funcionário
Numa
modesta agência predial, de feição atrevida,
Um
pobre diabo em quem assenta o brio
Como
em ricaço de Bradford cartola de seda.
A
altura é, ele prevê, propícia,
A
refeição acabou, ela indolente e cansada,
Procura
convencê-la por carícias
Não
repelidas, se é que indesejadas.
Afogueado
e decidido, passa à ação;
As
mãos intrometidas têm licença;
Não
pede contrapartida a presunção
E
até lhe é bem-vinda a indiferença.
(E
eu Tirésias já de antemão penei
Tudo
neste divã ou cama representado;
Eu
que junto aos muros de Tebas me sentei
E
entre os mortos mais rasteiros tenho andado.)
Pespega
para acabar u m beijo complacente,
E
sai às apalpadelas, sem ter luz na escada...
Ela
volta-se e vê-se ao espelho por um momento,
Mal
se dando conta de que o amante partiu;
Deixa
um pensamento inacabado vir-lhe à mente:
«Bem,
agora está feito: e ainda bem que passou.»
Quando
mulher amável se toma inconstante
E
de novo só pelo seu quarto deambula,
Amacia
o cabelo com mão inconsciente
E
vai pôr um disco na grafonola.
«Esta
música deslizou junto de mim por sobre as águas»
E
ao longo do Strand, e por Queen Victoria Street.
Oh
Cidade cidade, por vezes consigo ouvir
Quando
passo por um bar em Lowcr Thames Street,
O
suave lamento de um bandolim
E
um alarido e uma vozearia lá de dentro
Onde
homens do peixe se encontram ao
meio-dia: onde as paredes
De
Magnus Martyr guardam
Inexplicável
esplendor de branco e ouro jônio.
O
rio sua
Ó
Jeo e alcatrão
As
barcas flutuam
Com
a maré que muda
Velas
vermelhas
Abertas
Para
sotavento, agitam-se no forte mastro.
A
s barcas vogam
Lenhos
à deriva
Ao
largo de Greenwich
Para
lá da Isle of Dogs.
Weialala leia
Wallala leialala
Elizabeth
e Leicester
O
bater dos remos
A
popa tinha a forma
De
uma concha dourada
Vermelho
e ouro
A
ondulação viva
Encrespava
nas margens
Vento
sudoeste
Levava
rio abaixo
O
repicar dos sinos
Torres
brancas
Weialala leia
Wallala leialala
«Elétricos
e árvores cheias de poeira.
Highbury criou-me. Richmond e Kew
Despedaçaram-me.
Junto a Richmond levantei os
joelhos
De
costas no chão de uma estreita canoa.»
«Os
meus pés estão em Moorgate, e o meu coração
Debaixo
dos meus pés. Depois do que aconteceu
Ele
chorou. Prometeu "um recomeço".
Não
lhe dei seguimento. De que havia de ter
ressentimento?»
«Em
Margate Sands.
Não
consigo ligar
Nada
com nada.
As
unhas quebradas de mãos imundas.
Minha
gente humilde gente que não aguarda
Nada.»
la la
E
então cheguei a Cartago
A
arder a arder a arder
a arder
Oh
Senhor Tu agarras-me
Oh
Senhor Tu agarras
a
arder
IV.
Morte pela Água
Phlebas,
o Fenício, morto há duas semanas,
Esqueceu
o grito das gaivotas, e a ondulação das profundidades
E
os lucros e as perdas.
Uma corrente submarina
Apanhou
em sussurro os ossos dele. Ao subir e descer
Passou
os estádios da sua idade e da sua juventude
Enquanto
entrava no redemoinho.
Gentio
ou Judeu
Oh
tu que rodas o leme e olhas a barlavento,
Lembra-te
de Phlebas, que foi em tempos belo e alto como tu.
V.
O Que Disse o
Trovão
Após
o rubor do archote no suor dos rostos
Após
o silêncio gelado nos jardins
Após
a agonia em terras pedregosas
Os
brados e os gritos
Da
prisão e do palácio e da ressonância
Do
trovão primaveril em montanhas distantes
Ele
que era vivo agora está morto
Nós
que éramos vivos agora vamos morrendo
Com
alguma paciência
Não
há água aqui mas apenas pedras
Só
pedras sem água e a estrada arenosa
Serpeante
no alto por entre as montanhas
Que
são montanhas de pedras e sem água
Se
houvesse água íamos parar e beber
Não
se pode entre as pedras parar ou pensar
O
suor seco e os pés na areia
Se
ao menos houvesse água entre as pedras
Boca
cariada de montanha morta incapaz de cuspir
Ninguém
se pode aqui erguer nem sentar nem deitar
Nem
sequer há silêncio nas montanhas
Só
o trovão seco e estéril e sem chuva
Nem
sequer há solidão nas montanhas
Mas
rostos vermelhos e ruins zombam e rosnam
Às
portas de casas de lama ressequida
Se
houvesse água
E
nenhumas pedras
Se
houvesse pedras
E
água também
E
água
Se
houvesse água
Uma
nascente
Uma
poça entre as pedras
Se
ao menos houvesse o som da água
Não
o canto da cigarra
E
da erva seca
Mas
o som da água numa pedra
Onde
o tordo-eremita canta nos pinheiros
Drip drop drip drop drop drop drop
Mas
não há água
Quem
é o terceiro que sempre caminha a teu l ado?
Quando
conto, só estamos tu e eu
Mas
quando olho pela estrada branca acima
Há
sempre alguém a caminhar junto de ti
Envolto
em manto castanho, e embuçado
Não
sei se será homem ou mulher
–
Mas quem é esse do outro lado de ti?
Que
som é esse a elevar-se no ar
Murmúrio
de lamento maternal
Quem
são essas hordas embuçadas a alastrar
Em
plainos infindos, a tropeçar na terra ressequida
Apenas
circundada pelo horizonte raso
Que
cidade é essa por cima das montanhas
Que
estala e se refaz e estoira no ar
violeta
Torres
cadentes
Jerusalém
Atenas Alexandria
Viena
Londres
Irreais
Uma
mulher esticou os seus cabelos negros
E
tocou música de suspiros nessas cordas
E
morcegos com rostos de criança à luz violeta
Assobiaram
e bateram as asas
E
de cabeça para baixo rastejaram num muro enegrecido
E
voltadas ao contrário no ar havia torres
A
soar reminiscentes sinos, que davam as horas
E
vozes a cantar de dentro de cisternas vazias e poços esgotados.
Neste
arruinado buraco entre as montanhas
À
tênue luz da lua, a erva canta
Sobre
os túmulos derrubados, em volta da capela
Há
a capela vazia, onde só mora o vento.
Não
tem janelas, e a porta vai e vem,
Ossos
secos são inofensivos.
Só
um galo se elevava na viga mestra
Cô
cô ricô cô cô ricô
Num
clarão de relâmpago. Logo uma rajada úmida
A
trazer chuva
O
Ganga ia baixo, e as folhas frouxas
Esperavam
a chuva, enquanto as nuvens negras
Se
acumulavam longe, sobre o Himavant.
A
selva encolhia-se, curvada em silêncio.
Então
falou o trovão
DA
Datta:
que foi que nós demos?
Meu
amigo, sangue a agitar-me o coração
A
tremenda ousadia de um instante de entrega
Que
tempos de prudência jamais revogarão
Foi
por isto, e só por isto, que existimos
O
que não aparecerá nos nossos necrológios
Ou
em memórias vestidas pela caridosa aranha
Ou
sob lacres quebrados pelo seco procurador
Nos
nossos quartos vazios
DA
Dayadhvam:
Eu ouvi a chave
Por
uma vez na porta e por uma só vez
Nós
pensamos na chave, cada um na sua prisão
A
pensar na chave, cada um confirma uma prisão
Só
ao cair da noite, rumores etéreos
Revi
vem por um instante um destroçado Coriolano
DA
Damyata:
O barco respondeu
Ágil,
à mão experiente na vela e no remo
O
mar estava calmo, o teu coração teria respondido
Ágil,
se convidado, batendo obediente
A
mãos conhecedoras
Sentei-me
na margem
A
pescar, com o plaino árido atrás de mim
Hei-de
eu ao menos pôr ordem nas minhas terras?
London
Bridge está a cair está a cai r está a cair
Poi s 'ascose nel foco che gli
affina
Quando fiam uti chelidon
– Ó andorinha
andorinha
Le Prince d 'Aquitaine à la tour
abolie
Com
estes fragmentos escorei as minhas ruínas
Pois
então estais arranjados comigo. O Hieronymo ensandeceu
de novo.
Datta. Dayadhvam. Damyata.
Shantih shantih shantih
Notas do autor sobre a Terra Devastada
Não só o título, mas também o plano e
uma grande parte do simbolismo incidental do poema foram sugeridos pelo livro
da Sra. Jessie L. Weston sobre a
lenda do Graal: From
Ritual to Romance (Cambridge). A
minha dívida é tão profunda que na verdade o livro da Sra. Weston deverá
elucidar as dificuldades do poema muito melhor do que as minhas notas o podem
fazer; e recomendo-o (para além do grande interesse do livro em si próprio) a
quem quer que considere que vale a pena uma tal elucidação do poema. Em termos
gerais as minhas dívidas vão também para outra obra de antropologia que influenciou
profundamente a nossa geração; refiro-me a The Golden Bouglz, do
qual usei em especial os dois volumes Adonis, Attis,
Osiris. Qualquer leitor familiarizado com estas obras reconhecerá imediatamente
no poema certas referências a
cerimoniais da vegetação.
I. O ENTERRO DOS MORTOS
Verso 20. Cf. Ezequiel 2, 1.
23. Cf. Eclesiastes 12:5.
31. V. Tristan und I solde, I, versos 5-8.
42. Id., III, verso 24.
46. Não conheço
bem a constituição exata do baralho de cartas Tarô, do qual obviamente me
distanciei de acordo com as minhas conveniências. O
Enforcado, um membro do baralho tradicional, adequa-se aos
meus objetivos por duas vias: porque se associa no meu espírito ao Deus
Enforcado de Prazer, e
porque eu o associo à
figura embuçada na viagem dos discípulos para Emaús na
Parte V. O Marinheiro Fenício e o Mercador aparecem
depois, assim como as «multidões de
gente», e a Morte pela Água tem lugar na Parte IV. O Homem dos Três Bordões (um
membro autêntico do baralho Tarô) é associado por mim, de modo inteiramente
arbitrário, com o próprio Rei Pescador.
60. Cf. Baudelaire:
«Fourmillante cité, cité pleine de
rêves,
Où le spectre en plein jour raccroche
le passant.»
63. Cf. Inferno,
III, 55-57:
si lunga tratta
di gente, ch'io non averei creduto
che morte tanta n'avesse disfatta.
64. Cf. Inferno,
IV, 25-27:
Quivi, secando che per ascoltare,
non avea piante mai che di sospiri
che l'aura
eterna facevan tremare.
68. Um fenômeno em que reparei
frequentemente.
74. Cf. a
Endccha em White Devil,
de Webster.
76. V. Baudelaire,
Prefácio a Fleurs du
Mal.
II. UMA PARTIDA DE
XADREZ
77. Cf. Antony and Cleopatra,
II, 2, v. 190.
92. Laqueari a.
V. Eneida,
I, 726:
dependent lychni laquearibus aureís
incensi, et noctem flammis funalia
vincunt.
98. Cena
rústica. V. Milton, Paradise Lost, IV, 140.
99. V. Ovídio, Metamorfoses,
VI, Filomela.
100. Cf. Parte III, v. 204.
115 . Cf. Parte III, v. 195.
118. Cf. Webster: «O vento ainda vem
dessa porta?»
126. Cf. Parte I, vv. 37, 48.
138. Cf. o jogo de xadrez em Women beware Women,
de Middleton.
III. O SERMÃO DO
FOGO
176. V. Spenser, Prothalamion.
192.
Cf. The Tempest, I, 2.
196.
Cf. Marvell, To His Coy Mistress.
197.
Cf. Day, Parliament of Bees:
«Quando de repente, atento, ouvirás,
«Um ruído de trompas e de caça, que
há-de trazer
«Ateão a Diana na nascente,
«Onde todos verão a sua pele nua...»
199. Não conheço a origem da balada da
qual estes versos são retirados: foi-me comunicada de Sydney, na Austrália.
202. V. Verlaine, Parsifal.
210. As
passas eram cotadas a um preço «custo seguro e frete para Londres»; e a Ordem
de Carga, etc., deveriam ser entregues ao comprador após liquidação da ordem de
pagamento à vista.
218. Tirésias, embora seja um simples
espectador e não propriamente uma «personagem», é, contudo, a mais importante
figura no poema, unindo todo o resto. Assim como o mercador zarolho, vendedor
de passas, se funde com o Marinheiro Fenício, e este último não é inteiramente
distinto de Ferdinand, Príncipe de Nápoles, também todas as mulheres são uma
mulher, e os dois sexos reúnem-se em Tirésias. O que Tirésias vê,
de fato, é a substância do poema. O passo completo de
Ovídio é de grande interesse antropológico:
...Cum Iunone iocos et «maior vestra
profecto est
Quam quae contingit maribus», dixisse,
«voluptas.»
Ill a
negat; placuit quae sit sententia docti
Quaerere Tiresiae: venus huic erat
utraque nota.
Nam duo magnorum viridi coeuntia silva
Corpora serpentum baculi violaverat
ictu
Deque viro factus, mirabile, femina
septem
Egerat autumnos; octavo rursus eosdem
Vidit et «est vestrae si tanta potenti
a plagae»,
Dixit
«ut auctoris sortem in contrari a mutet,
Nunc quoque vos feriam!» percussis
anguibus isdem
Forma prior rediit genetivaque venit imago.
Arbiter hic igitur sumptus de lite iocosa
Dieta Iovis firmat; gravius Saturnia iusto
Nec pro materia fertur doluisse suique
ludicis aeterna damnavit lumina nocte,
At pater omnipotens (neque enim licet
inrita cuiquam
Facta dei fecisse deo) pro lumine
adempto
Scire futura dedit poenamque levavit
honore.
221. Isto pode não aparecer tão exato
como os versos de Safo, mas eu tinha em mente o pescador «costeiro» ou «de chata»,
que regressa ao cair da noite.
253. V.
Goldsmith, a canção em The Vicar of Wakefield.
257. V. The Tempest, como
acima.
264. O interior de St. Magnus Martyr é
a meu ver um dos melhores de entre os interiores de Wren. Ver The Proposed Demolition of Nineteen
City Clwrches (P. S. King & Son, Ltd.).
266. A Canção das (três)
filhas-do-Tamisa começa aqui. Do verso 292 até ao verso 306 inclusive elas falam
à vez. V. Gotterdämmenrung, III,
1: as filhas-do-Reno.
279. V. Froude,
Elizabeth, vol. I,
cap. 4, carta de De Quadra para Filipe de Espanha:
«Pela tarde estávamos numa barca, a
observar os jogos no rio. (A Rainha) estava só com Lord Robert e comigo na
popa, quando os dois começaram a dizer tolices, e de tal maneira que Lord
Robert acabou por dizer, estando eu presente não havia razão para não casarem
se tal fosse do agrado da rainha.»
293. Cf. Purgatorio, V.
133:
«Ricorditi di me, che son la Pia;
"Siena mi fe", disfecemi
Meremma.»
307. V. Confissões de
Santo Agostinho: «cheguei então a Cartago, onde um caldeirão de amores ímpios
cantou em redor de meus ouvidos.»
308. O texto completo do Sermão do
Fogo de Buda (que corresponde em importância ao Sermão da Montanha) de onde estas
palavras são retiradas encontra-se traduzido em Buddlrism in Translation (Harvard
Oriental Series), do falecido Henry Clarke Warren. O Sr. Warren foi um dos
grandes pioneiros dos estudos budistas no Ocidente.
309. De novo das Confissões
de Santo Agostinho. A colocação destes dois representantes
do ascetismo oriental e ocidental como culminação desta parte do poema não é um
acidente.
V. O QUE DISSE O
TROVÃO
Na primeira parte da Parte V são
usados três temas: a jornada para Emaús, a aproximação à
Capela Perigosa (ver livro da Sra. Weston) e a atual decadência
da Europa Oriental.
357. Este é o Turdus
aonalasclrkae pallasii, o tordo-eremita que ouvi na província
do Quebec. Chapman afirma (Handbook of Birds of Eastern Nortlz America) que «onde ele se sente melhor é em
bosques isolados e em esconderijos de vegetação espessa... As suas notas não
são notáveis pela variedade ou pelo volume, mas são inigualáveis na pureza e na
doçura do tom e na delicada modulação». A sua «canção de água-gotejante» é
apropriadamente célebre.
360. Os versos seguintes foram
suscitados pelo relato de uma das expedições ao Antártico (não me lembro de
qual, mas penso que foi uma das expedições de Shackleton): dizia-se que o grupo
de exploradores, no limite das suas forças, tinha a constante ilusão de que havia
mais um membro para além dos que
realmente conseguiam contar.
366-76.
Cf. Hermann Hcsse, Blick
ins Chaos: «Schon ist halb Europa, schon ist zumi ndcst der
halbe Osten Europas auf dem
Wcge zum Chaos, fährt bctrunkcn im hciligen Wahn am Abgrund
entlang und singt dazu, singt bctrunkcn und hymnisch wie
Dmitri Karamasoff sang. Ucbcr diese Lieder l acht der Bürger bcleidigt,
der Hei lige und Seher hört sie mit Tränen.»
401. «Datta, dayadhvam, damyata» (Dar,
simpatizar, dominar). A fábula sobre o significado do Trovão
encontra-se em Brihadaranyaka-Upanislwd, 5,
1. Encontra-se uma tradução em Deussen, Sechzig
Upanislzads des Veda, p. 489.
407.
Cf. Webster, The White
Devil, V, 6:
«...hão-de voltar a
casar
Antes de o verme furar a vossa
mortalha, antes de a aranha
Vos tecer nos epitáfios uma tênue
cortina.»
411. Cf. Inferno, XXXIII,
46:
«edio senti chi avar l' uscio di sotto
all' orribile torre.»
Também F. H.
Bradley, Appearance mui Reality,
p. 306:
«As minhas sensações externas não são
menos privadas para mim do que os meus pensamentos ou os
meus sentimentos. Em qualquer dos casos a minha experiência
confina-se ao meu próprio círculo, um círculo fechado ao
exterior; e, de modo igual para o que respeita a todos os seus
elementos, cada esfera é opaca para as outras que a rodeiam. [...] Em suma, considerado como uma existência que se manifesta
numa alma, a totalidade do mundo é para cada um privada e peculiar
a essa alma.»
424. V. Weston, From
Ritual to Romance; capítulo sobre o Rei Pescador.
427. V. Purgatorio, XXVI,
148.
«"Ara vos prec per aquella
valor
"que vos condus ai som de l'escalina,
"sovenha vos a temps de ma
dolor."
"Poi s' ascose nel foco che li
affina.»
428. V. Pervigilium
Veneris. Cf. Filomela nas Partes II e III.
429. V. Gérard de Nerval, soneto El
Desdichado.
431. V.
Spanish Tragedy, de Kyd.
433. Shantih. Repetido como aqui , um
encerramento formal de um Upanishad. «A Paz que vai além do entendimento» é o nosso
equivalente para esta palavra.