O Velho Senado
A propósito de algumas litografias de Sisson, tive há dias
uma visão do Senado de 1860. Visões valem o mesmo que a retina em que se
operam. Um político, tornando a ver aquele corpo, acharia nele a mesma alma dos
seus correligionários extintos, e um historiador colheria elementos para a
história. Um simples curioso não descobre mais que o pinturesco do tempo e a
expressão das linhas com aquele tom geral que dão as coisas mortas e
enterradas.
Nesse ano entrara eu para a imprensa. Uma noite, como
saíssemos do Teatro Ginásio, Quintino Bocaiúva e eu fomos tomar chá. Bocaiúva
era então uma gentil figura de rapaz, delgado, tez macia, fino bigode e olhos
serenos. Já então tinha os gestos lentos de hoje, e um pouco daquele ar distant
que Taine achou em Mérimée. Disseram coisa análoga de Challemel-Lacour, que
alguém ultimamente definia como très républicain de conviction et très
aristocrate de tempérament. O nosso Bocaiúva era só a segunda parte, mas já
então liberal bastante para dar um republicano convicto. Ao chá, conversamos
primeiramente de letras, e pouco depois de política, matéria introduzida por
ele, o que me espantou bastante, não era usual nas nossas práticas. Nem é exato
dizer que conversamos de política, eu antes respondia às perguntas que Bocaiúva
me ia fazendo, como se quisesse conhecer as minhas opiniões. Provavelmente não
as teria fixas nem determinadas; mas, quaisquer que fossem, creio que as
exprimi na proporção e com a precisão apenas adequadas ao que ele me ia
oferecer. De fato, separamo-nos com prazo dado para o dia seguinte, na loja de
Paula Brito, que era na antiga Praça da Constituição, lado do Teatro S. Pedro,
a meio caminho das Ruas do Cano e dos Ciganos. Relevai esta nomenclatura morta;
é vício de memória velha. Na manhã seguinte, achei ali Bocaiúva escrevendo um
bilhete. Tratava-se do Diário do Rio de Janeiro, que ia reaparecer, sob a direção
política de Saldanha Marinho. Vinha dar-me um lugar na redação com ele e
Henrique César Múzio.
Estas minudências, agradáveis de escrever, sê-lo-ão menos de
ler. É difícil fugir a elas, quando se recordam coisas idas. Assim, dizendo que
no mesmo ano, abertas as câmaras, fui para o Senado, como redator do Diário do
Rio, não posso esquecer que nesse ou no outro ali estiveram comigo, Bernardo
Guimarães, representante do Jornal do Comércio, e Pedro Luís, por parte do
Correio Mercantil, nem as boas horas que vivemos os três. Posto que Bernardo
Guimarães fosse mais velho que nós, partíamos irmãmente o pão da intimidade.
Descíamos juntos aquela Praça da Aclamação, que não era então o parque de hoje,
mas um vasto espaço inculto e vazio como o Campo de S. Cristóvão. Algumas vezes
íamos jantar a um restaurant da Rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, nome
este que se lhe deu por indicação justamente no Diário do Rio; o poeta morara
ali outrora, e foi Múzio, seu amigo, que pela nossa folha o pediu à Câmara
Municipal. Pedro Luís não tinha só a paixão que pôs nos belos versos à Polônia
e no discurso com que, pouco depois, entrou na Câmara dos Deputados, mas ainda
a graça, o sarcasmo, a observação fina e aquele largo riso em que os grandes
olhos se faziam maiores. Bernardo Guimarães não falava nem ria tanto,
incumbia-se de pontuar o diálogo com um bom dito, um reparo, uma anedota. O
Senado não se prestava menos que o resto do mundo à conversação dos três
amigos.
Poucos membros restarão da velha casa. Paranaguá e Sinimbu carregam
o peso dos anos com muita facilidade e graça, o que ainda mais admira em
Sinimbu, que suponho mais idoso. Ouvi falar a este bastantes vezes; não
apaixonava o debate, mas era simples, claro, interessante, e, fisicamente, não
perdia a linha. Esta geração conhece a firmeza daquele homem político, que mais
tarde foi presidente do Conselho e teve de lutar com oposições grandes. Um
incidente dos últimos anos mostrará bem a natureza dele. Saindo da Câmara dos
Deputados para a Secretaria da Agricultura, com o Visconde de Ouro Preto,
colega de gabinete, eram seguidos por enorme multidão de gente em assuada. O
carro parou em frente à secretaria; os dois apearam-se e pararam alguns
instantes, voltados para a multidão, que continuava a bradar e apupar, e então vi
bem a diferença dos dois temperamentos. Ouro Preto fitava-a com a cabeça
erguida e certo gesto de repto; Sinimbu parecia apenas mostrar ao colega um
trecho de muro, indiferente. Tal era o homem que conheci no Senado.
Para avaliar bem a minha impressão diante daqueles homens que
eu via ali juntos, todos os dias, é preciso não esquecer que não poucos eram
contemporâneos da maioridade, algum da Regência, do Primeiro Reinado e da
Constituinte. Tinham feito ou visto fazer a história dos tempos iniciais do regímen,
e eu era um adolescente espantado e curioso. Achava-lhes uma feição particular,
metade militante, metade triunfante, um pouco de homens, outro pouco de
instituição. Paralelamente, iam-me lembrando os apodos e chufas que a paixão
política desferira contra alguns deles, e sentia que as figuras serenas e
respeitáveis que ali estavam agora naquelas cadeiras estreitas não tiveram
outrora o respeito dos outros, nem provavelmente a serenidade própria. E
tirava-lhes as cãs e as rugas, e fazia-os outra vez moços, árdegos e agitados.
Comecei a aprender a parte do presente que há no passado, e vice-versa. Trazia
comigo a oligarquia, o golpe de Estado de 1848, e outras notas da política em
oposição ao domínio conservador, e ao ver os cabos deste partido, risonhos, familiares,
gracejando entre si e com os outros, tomando juntos café e rapé, perguntava a
mim mesmo se eram eles que podiam fazer, desfazer e refazer os elementos e
governar com mão de ferro este país.
Os senadores compareciam regularmente ao trabalho. Era raro
não haver sessão por falta de quórum. Uma particularidade do tempo é que muitos
vinham em carruagem própria, como Zacarias, Monte Alegre, Abrantes, Caxias e
outros, começando pelo mais velho, que era o Marquês de Itanhaém. A idade deste
fazia-o menos assíduo, mas ainda assim era-o mais do que cabia esperar dele.
Mal se podia apear do carro, e subir as escadas; arrastava os pés até à
cadeira, que ficava do lado direito da mesa. Era seco e mirrado, usava
cabeleira e trazia óculos fortes. Nas cerimônias de abertura e encerramento
agravava o aspecto com a farda de senador. Se usasse barba, poderia disfarçar o
chupado e engelhado dos tecidos, a cara rapada acentuava-lhe a decrepitude; mas
a cara rapada era o costume de outra quadra, que ainda existia na maioria do
Senado. Uns, como Nabuco e Zacarias, traziam a barba toda feita; outros
deixavam pequenas suíças, como Abrantes e Paranhos, ou, como Olinda e Eusébio,
a barba em forma de colar; raros usavam bigodes, como Caxias e Montezuma, — um
Montezuma de segunda maneira.
A figura de Itanhaém era uma razão visível contra a
vitaliciedade do Senado, mas é também certo que a vitaliciedade dava àquela
casa uma consciência de duração perpétua, que parecia ler-se no rosto e no
trato de seus membros. Tinham um ar de família, que se dispersava durante a
estação calmosa, para ir às águas e outras diversões, e que se reunia depois,
em prazo certo, anos e anos. Alguns não tornavam mais, e outros novos
apareciam; mas também nas famílias se morre e nasce. Dissentiam sempre, mas é
próprio das famílias numerosas brigarem, fazerem as pazes e tornarem a brigar;
parece até que é a melhor prova de estar dentro da humanidade. Já então se
evocavam contra a vitaliciedade do Senado os princípios liberais, como se
fizera antes. Algumas vozes vibrantes cá fora, calavam-se lá dentro, é certo,
mas o gérmen da reforma ia ficando, os programas o acolhiam, e, como em vários
outros casos, os sucessos o fizeram lei.
Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e constante.
Geralmente, as galerias não eram mui frequentadas, e, para o fim da hora,
poucos espectadores ficavam, alguns dormiam. Naturalmente, a discussão do voto
de graças e outras chamavam mais gente. Nabuco e algum outro dos principais da
casa gozavam do privilégio de atrair grande auditório, quando se sabia que eles
rompiam um debate ou respondiam a um discurso. Nessas ocasiões, mui
excepcionalmente, eram admitidos ouvintes no próprio salão do Senado, como
aliás era comum na Câmara temporária; como nesta, porém, os espectadores não intervinham
com aplausos nas discussões. A presidência de Abaeté redobrou a disciplina do
regimento, porventura menos apertada no tempo da presidência de Cavalcanti.
Não faltavam oradores. Uma só vez ouvi falar a Eusébio de
Queirós, e a impressão que me deixou foi viva; era fluente, abundante, claro,
sem prejuízo do vigor e da energia. Não foi discurso de ataque, mas de defesa,
falou na qualidade de chefe do Partido Conservador, ou papa; Itaboraí, Uruguai,
Saião Lobato e outros eram cardeais, e todos formavam o consistório, segundo a
célebre definição de Otaviano no Correio Mercantil. Não reli o discurso, não
teria agora tempo nem oportunidade de fazê-lo, mas estou que a impressão não
haveria diminuído muito, posto lhe falte o efeito da própria voz do orador, que
seduzia. A matéria era sobremodo ingrata: tratava-se de explicar e defender o
acúmulo dos cargos públicos, acusação feita na imprensa da oposição. Era a
tarde da oligarquia, o crepúsculo do domínio conservador. As eleições de 1860,
na capital, deram o primeiro golpe na situação; se também deram o último, não
sei; os partidos nunca se entenderam bem acerca das causas imediatas da própria
queda ou subida, salvo no ponto de serem alternadamente a violação ou a
restauração da carta constitucional. Quaisquer que fossem, então, a verdade é
que as eleições da capital naquele ano podem ser contadas como uma vitória
liberal. Elas trouxeram à minha imaginação adolescente uma visão rara e
especial do poder das urnas. Não cabe inseri-la aqui; não direi o movimento geral
e o calor sincero dos votantes, incitados pelos artigos da imprensa e pelos
discursos de Teófilo Otôni, nem os lances, cenas e brados de tais dias. Não me
esqueceu a maior parte deles; ainda guardo a impressão que me deu um obscuro
votante que veio ter com Otôni, perto da matriz do Sacramento. Otôni não o
conhecia, nem sei se o tornou a ver. Ele chegou-se-lhe e mostrou-lhe um maço de
cédulas, que acabava de tirar às escondidas da algibeira de um agente
contrário. O riso que acompanhou esta notícia nunca mais se me apagou da
memória. No meio das mais ardentes reivindicações deste mundo, alguma vez me
despontou ao longe aquela boca sem nome, acaso verídica e honesta em tudo o
mais da vida, que ali viera confessar candidamente, e sem outro prêmio pessoal,
o fino roubo praticado. Não mofes desta insistência pueril da minha memória; eu
a tempo advirto que as mais claras águas podem levar de enxurro alguma palha
podre, — se é que é podre, se é que é mesmo palha.
Eusébio de Queirós era justamente respeitado dos seus e dos
contrários. Não tinha a figura esbelta de um Paranhos, mas ligava-se-lhe uma
história particular e célebre, dessas que a crônica social e política de outros
países escolhe e examina, mas que os nossos costumes, — aliás demasiado soltos
na palestra, — não consentem inserir no escrito. De resto, pouco valeria
repetir agora o que se divulgava então, não podendo pôr aqui a própria e
extremada beleza da pessoa que as ruas e salas desta cidade viram tantas vezes.
Era alta e robusta; não me ficaram outros pormenores.
O Senado contava raras sessões ardentes; muitas, porém, eram
animadas. Zacarias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza e vigor
dos golpes. Tinha a palavra cortante, fina e rápida, com uns efeitos de sons
guturais, que a tornavam mais penetrante e irritante. Quando ele se erguia, era
quase certo que faria deitar sangue a alguém. Chegou até hoje a reputação de
debater, como oposicionista, e como ministro e chefe de gabinete. Tinha
audácias, como a da escolha "não acertada", que a nenhum outro
acudiria, creio eu. Politicamente, era uma natureza seca e sobranceira. Um
livro que foi de seu uso, uma História de Clarendon (History of the Rebellion
and Civil Wars in England), marcado em partes, a lápis encarnado, tem uma
sublinha nas seguintes palavras (vol. I, pág. 44) atribuídas ao Conde de
Oxford, em resposta ao Duque de Buckingham, "que não buscava a sua amizade
nem temia o seu ódio". É arriscado ver sentimentos pessoais nas simples
notas ou lembranças postas em livros de estudo, mas aqui parece que o espírito
de Zacarias achou o seu parceiro. Particularmente, ao contrário, e desde que se
inclinasse a alguém, convidava fortemente a amá-lo; era lhano e simples, amigo
e confiado. Pessoas que o frequentavam, dizem e afirmam que, sob as suas
árvores da Rua do Conde ou entre os seus livros, era um gosto ouvi-lo, e raro
haverá esquecido a graça e a polidez dos seus obséquios. No Senado, sentava-se
à esquerda da mesa, ao pé da janela, abaixo de Nabuco, com quem trocava os seus
reparos e reflexões. Nabuco, outra das principais vozes do Senado, era
especialmente orador para os debates solenes. Não tinha o sarcasmo agudo de
Zacarias, nem o epigrama alegre de Cotegipe. Era então o centro dos
conservadores moderados que, com Olinda e Zacarias, fundaram a liga e os
partidos Progressista e Liberal. Joaquim Nabuco, com a eloquência de escritor
político e a afeição de filho, dirá toda essa história no livro que está
consagrando à memória de seu ilustre pai. A palavra do velho Nabuco era
modelada pelos oradores da tribuna liberal francesa. A minha impressão é que
preparava os seus discursos, e a maneira por que os proferia realçava-lhes a
matéria e a forma sólida e brilhante. Gostava das imagens literárias: uma
dessas, a comparação do poder moderador à estátua de Glauco, fez então fortuna.
O gesto não era vivo, como o de Zacarias, mas pausado, o busto cheio era tranquilo,
e a voz adquiria uma sonoridade que habitualmente não tinha.
Mas eis que todas as figuras se atropelam na evocação comum,
as de grande peso, como Uruguai, com as de pequeno ou nenhum peso, como o Padre
Vasconcelos, senador creio que pela Paraíba, um bom homem que ali achei e
morreu pouco depois. Outro, que se podia incluir nesta segunda categoria, era
um de quem só me lembram duas circunstâncias, as longas barbas grisalhas e
sérias, e a cautela e pontualidade com que não votava os artigos de uma lei sem
ter os olhos pregados em Itaboraí. Era um modo de cumprir a fidelidade política
e obedecer ao chefe, que herdara o bastão de Eusébio. Como o recinto era
pequeno, viam-se todos esses gestos, e quase se ouviam todas as palavras
particulares. E, conquanto fosse assim pequeno, nunca vi rir a Itaboraí, creio
que os seus músculos dificilmente ririam — o contrário de S. Vicente, que ria
com facilidade, um riso bom, mas que lhe não ia bem. Quaisquer que fossem,
porém, as deselegâncias físicas do senador por S. Paulo, e malgrado a palavra
sem sonoridade, era ouvido com grande respeito, como Itaboraí. De Abrantes
dizia-se que era um canário falando. Não sei até que ponto merece a definição;
em verdade, achava-o fluente, acaso doce, e, para um povo mavioso como o nosso,
a qualidade era preciosa; nem por isso Abrantes era popular. Também não o era
Olinda, mas a autoridade deste sabe-se que era grande. Olinda aparecia-me
envolvido na aurora remota do reinado, e na mais recente aurora liberal ou
"situação nascente", mote de um dos chefes da liga, penso que
Zacarias, que os conservadores glosaram por todos os feitios, na tribuna e na
imprensa. Mas não deslizemos a reminiscências de outra ordem; fiquemos na
surdez de Olinda, que competia com Beethoven nesta qualidade, menos musical que
política. Não seria tão surdo. Quando tinha de responder a alguém, ia sentar-se
ao pé do orador, e escutava atento, cara de mármore, sem dar um aparte, sem
fazer um gesto, sem tomar uma nota. E a resposta vinha logo; tão depressa o
adversário acabava, como ele principiava, e, ao que me ficou, lúcido e
completo.
Um dia vi ali aparecer um homem alto, suíças e bigodes
brancos e compridos. Era um dos remanescentes da Constituinte, nada menos que
Montezuma, que voltava da Europa. Foi-me impossível reconhecer naquela cara
barbada a cara rapada que eu conhecia da litografia Sisson; pessoalmente nunca
o vira. Era, muito mais que Olinda, um tipo de velhice robusta. Ao meu espírito
de rapaz afigurava-se que ele trazia ainda os rumores e os gestos da assembleia
de 1823. Era o mesmo homem; mas foi preciso ouvi-lo agora para sentir toda a
veemência dos seus ataques de outrora. Foi preciso ouvir-lhe a ironia de hoje
para entender a ironia daquela retificação que ele pôs ao texto de uma pergunta
ao Ministro do Império, na célebre sessão permanente de 11 a 12 de novembro:
"Eu disse que o Sr. Ministro do Império, por estar ao lado de Sua Majestade,
melhor conhecerá o "espírito da tropa", e um dos senhores secretários
escreveu "o espírito de Sua Majestade", quando não disse tal, porque
deste não duvido eu".
Agora o que eu mais ouvia dizer dele, além do talento, eram
as suas infidelidades, e sobre isto corriam anedotas; mas eu nada tenho com
anedotas políticas. Que se não pudesse fiar muito em seus carinhos
parlamentares, creio. Uma vez, por exemplo, encheu a alma de Sousa Franco de
grandes aleluias. Querendo criticar o Ministro da Fazenda (não me lembra quem
era) começou por afirmar que nunca tivéramos ministros da Fazenda, mas
tão-somente ministros do Tesouro. Encarecia com adjetivos: excelentes,
ilustrados, conspícuos ministros do Tesouro, mas da Fazenda nenhum. "Um
houve, Sr. presidente que nos deu alguma coisa do que deve ser um Ministro da
Fazenda; foi o nobre senador pelo Pará". E Sousa Franco sorria alegre,
deleitava-se com a exceção, que devia doer ao seu forte rival em finanças,
Itaboraí; não passou muito tempo que não perdesse o gosto. De outra vez,
Montezuma atacava a Sousa Franco, e este novamente sorria, mas agora a
expressão não era alegre, parecia rir de desdém. Montezuma empina o busto,
encara-o irritado, e com a voz e o gesto intima-lhe que recolha o riso; e passa
a demonstrar as suas críticas, uma por uma, com esta espécie de estribilho:
"Recolha o riso o nobre senador!" Tudo isto aceso e torvo. Sousa
Franco quis resistir; mas o riso recolheu-se por si mesmo. Era então um homem
magro e cansado. Gozava ainda agora a popularidade ganha na Câmara dos
Deputados, anos antes, pela campanha que sustentou, sozinho e parece que
enfermo, contra o Partido Conservador.
Contrastando com Sousa Franco, vinha a figura de Paranhos,
alta e forte. Não é preciso dizê-lo a uma geração que o conheceu e admirou, ainda
belo e robusto na velhice. Nem é preciso lembrar que era uma das primeiras
vozes do Senado. Eu trazia de cor as palavras que alguém me confiou haver dito,
quando ele era simples estudante da Escola Central: "Sr. Paranhos, você
ainda há de ser ministro". O estudante respondia modestamente, sorrindo;
mas o profeta dos seus destinos tinha apanhado bem o valor e a direção da alma
do moço.
Muitas recordações me vieram do Paranhos de então, discursos
de ataque, discursos de defesa, mas, uma basta, a justificação do convênio de
20 de fevereiro. A notícia deste ato entrou no Rio de Janeiro, como as outras
desse tempo, em que não havia telégrafo. Os sucessos do exterior chegavam-nos
às braçadas, por atacado, e uma batalha, uma conspiração, um ato diplomático eram
conhecidos com todos os seus pormenores. Por um paquete do Sul soubemos do
convênio da vila da União. O pacto foi mal recebido, fez-se uma manifestação de
rua, e um grupo de populares, com três ou quatro chefes à frente, foi pedir ao
governo a demissão do plenipotenciário. Paranhos foi demitido, e, aberta a
sessão parlamentar, cuidou de produzir a sua defesa.
Tornei a ver aquele dia, e ainda agora me parece vê-lo.
Galerias e tribunas estavam cheias de gente; ao salão do Senado foram admitidos
muitos homens políticos ou simplesmente curiosos. Era uma hora da tarde quando
o presidente deu a palavra ao senador por Mato Grosso; começava a discussão do
voto de graças. Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os
dedos, erguia-os para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da
camisa, e a voz ia saindo meditada e colorida. Naquele dia, porém, a ânsia de
produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que
ditas: "Não a vaidade. Sr. presidente..." Daí a um instante, a voz
tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram
nove horas da noite, quando ele acabou; estava como no princípio, nenhum sinal
de fadiga nele nem no auditório, que o aplaudiu. Foi uma das mais fundas
impressões que me deixou a eloquência parlamentar. A agitação passara com os
sucessos, a defesa estava feita. Anos depois do ataque, esta mesma cidade
aclamava o autor da lei de 28 de setembro de 1871, como uma glória nacional; e
ainda depois, quando ele tornou da Europa, foi recebê-lo e conduzi-lo até a
casa. Ao clarão de um belo sol, rubro de comoção, levado pelo entusiasmo
público, Paranhos seguia as mesmas ruas que, anos antes, voltando do Sul,
pisara sozinho e condenado.
A visão do Senado foi-se-me assim alterando nos gestos e nas
pessoas, como nos dias, e sempre remota e velha: era o Senado daqueles três
anos. Outras figuras vieram vindo. Além dos cardeais, os Muritibas, os Sousa e
Melos, vinham os de menor graduação política, o risonho Pena, zeloso e miúdo em
seus discursos, o Jobim, que falava algumas vezes, o Ribeiro, do Rio Grande do
Sul, que não falava nunca, — não me lembra, ao menos. Este, filósofo e
filólogo, tinha junto a si, no tapete, encostado no pé da cadeira, um exemplar
do dicionário de Morais. Era comum vê-lo consultar um e outro tomo, no correr
de um debate, quando ouvia algum vocábulo, que lhe parecia de incerta origem ou
duvidosa aceitação. Em contraste com a abstenção dele, eis aqui outro, Silveira
da Mota, assíduo na tribuna, oposicionista por temperamento, e este outro, D.
Manuel de Assis Mascarenhas, bom exemplar da geração que acabava. Era um
homenzinho seco e baixo, cara lisa, cabelo raro e branco, tenaz, um tanto
impertinente, creio que desligado de partidos. Da sua tenacidade dará ideia o que
lhe vi fazer em relação a um projeto de subvenção ao teatro lírico, por meio de
loterias. Não era novo; continuava o de anos anteriores. D. Manuel opunha-se
por todos os meios à passagem dele, e fazia extensos discursos. A mesa, para
acabar com o projeto, já o incluía entre os primeiros na ordem do dia, mas nem
assim desanimava o senador. Um dia foi ele colocado antes de nenhum. D. Manuel
pediu a palavra, e francamente declarou que era seu intuito falar toda a
sessão; portanto, aqueles de seus colegas que tivessem algum negócio estranho e
fora do Senado podiam retirar-se; não se discutiria mais nada. E falou até o
fim da hora, consultando a miúdo o relógio para ver o tempo que lhe ia
faltando. Naturalmente não haveria muito que dizer em tão escassa matéria, mas
a resolução do orador e a liberdade do regimento davam-lhe meio de compor o
discurso. Daí nascia uma infinidade de episódios, reminiscências, argumentos e
explicações; por exemplo, não era recente a sua aversão às loterias, vinha do
tempo em que, andando a viajar, foi ter a Hamburgo; ali ofereceram-lhe com
tanta instância um bilhete de loteria, que ele foi obrigado a comprar, e o
bilhete saiu branco. Esta anedota era contada com todas as minúcias necessárias
para ampliá-la. Uma parte do tempo falou sentado, e acabou diante da mesa e
três ou quatro colegas. Mas, imitando assim Catão, que também falou um dia
inteiro para impedir uma petição de César, foi menos feliz que o seu colega
romano. César retirou a petição, e aqui as loterias passaram, não me lembra se
por fadiga ou omissão de D. Manuel; anuência é que não podia ser. Tais eram os
costumes do tempo.
E após ele vieram outros, e ainda outros, Sapucaí,
Maranguape, Itaúna, e outros mais, até que se confundiram todos e desapareceu
tudo, coisas e pessoas, como sucede às visões. Pareceu-me vê-los enfiar por um
corredor escuro, cuja porta era fechada por um homem de capa preta, meias de
seda preta, calções pretos e sapatos de fivela. Este era nada menos que o
próprio porteiro do Senado, vestido segundo as praxes do tempo, nos dias de
abertura e encerramento da assembleia geral. Quanta coisa obsoleta! Alguém
ainda quis obstar à ação do porteiro, mas tinha o gesto tão cansado e vagaroso
que não alcançou nada; aquele deu volta à chave, envolveu-se na capa, saiu por
uma das janelas e esvaiu-se no ar, a caminho de algum cemitério, provavelmente.
Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo, mas não vale;
todos os cemitérios se parecem.
Machado de Assis, Obra Completa, Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, V.II, 1994. Publicado originalmente em Revista Brasileira, Rio de
Janeiro, 1898.