o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 21 de novembro de 2012


JACEK JEDRZEJCZAK


Já me matei...


já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma


Paulo Leminski

sábado, 17 de novembro de 2012

Alessandro Bavani, Sodoma e Gomorra

ANTI-ÉCLOGA


A verdade é que também as urtigas 
me aborrecem. Esta doçura dos pássaros,
a silvestre quietude da tarde atravessada
pelo balido das ovelhas, grandes imitadoras 
de Edith Piaf, tudo isso não chega a ser
tão daninho como a luz de um semáforo
vermelho, mas um pouco de sangue
na biqueira do sapato faz-me falta.
Faz-me falta praguejar, ter um lago
de cimento onde cuspir, obstáculos
de fogo, fantasias, a metralha dos calinos.
Não me sinto nada bem com a doçura,
com a paz dos ermitérios, de onde Deus
se retirou há quinze anos. Esta resignação
das árvores, dos faunos, das silvanas,
da restante bicharada típica dos lugares
onde sofrer é natural como estar só,
a conclusão é que não sei caminhar sem sapatos
que me apertem. As sandálias do pescador,
as botas do alpinista, não me levam
a lado nenhum. Detesto confessá-lo,
mas eu sou da cidade até à raiz do terror.

Não consigo viver sem o saco de areia
onde exercito o excessivo golpe da exasperação.
Sem esse esbracejar a minha seiva coagula,
torna-se pastosa, sonolenta, felizita
como um rio de meandros preguiçosos,
lamacentos, imprestáveis - de que me serve
fingir o sossego a que não chego, brincar 
às Arcádias em que não acredito?
Está decidido, prefiro sofrer.
Amanhã de manhã regresso ao abismo.

José Miguel Silva, "Ulisses Já Não Mora Aqui", 2002  

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

ERNESTO TIMOR


HOMENAGEM AO POETA MÁRIO FAUSTINO

Em bola de fogo este poeta caiu
do céu sobre as agulhas de rochedo e gelo.
Como Ícaro, ainda jovem. Mas ainda mais jovem
havia perguntado: “Mestre, qual é o sexo
das almas?” – E esta pergunta paga-se
com a morte em fogo sobre o gelo eterno.

Jorge de Sena

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

No trem, pelo deserto


As vozes frias
Anulam toda chance de existência.
Jogam cartas terríveis
Batem fotografias perigosas
Não temem. Falam. Passam,
Na chacina do raro ostentam sua miséria.

Ninguém veste de verde. Um só
Parece vivo, aberto -- e esse dorme.
As aves lentas voam seus presságios
E a brisa morna engendra flores duras
Na secura dos cactos.

Alguém pergunta: "Estamos perto?" E estamos longe
E nem rastro de chuva. E nada pode
Salvar a tarde.

                        (Só se um milagre, um touro
Surgisse dentre os trilhos para enfrentar a fera
Se algo fértil enorme aqui brotasse
Se liberto quem dorme se acordasse).




Mário Faustino, poema escrito na Califórnia, 1952.

Wim Wenders, no Mojave. 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

JACEK JEDRZEJCZAK


O OLHO QUE VÊ


Os cães pequenos olham para os cães grandes;
Observam as intratáveis dimensões
E as curiosas imperfeições de odor.
Eis um grupo de machos compenetrados:
Os homens jovens olham de cima os mais velhos,
Consideram-lhes a mente de meia-idade
Observam-lhe as correlações inexplicáveis.
Tsin-Tsu disse:
Somente nos cães pequenos e nos jovens
Encontramos a observação minuciosa.


Ezra Pound 
Tradução: Mário Faustino

ERNESTO TIMOR



SAUDAÇÃO SEGUNDA 

Fostes louvados, meus livros,
           porque eu acabara de chegar do interior;
Eu estava atrasado vinte anos
           e por isso encontrastes um público preparado.
Não vos renego,
           Não renegueis vossa progênie.
 
Aqui estão eles sem rebuscados artifícios,
Aqui estão eles sem nada de arcaico.
Observai a irritação geral:

"Então é isto", dizem eles, "o contra-senso 
            que esperamos dos poetas?"
"Onde está o Pitoresco?"
            "Onde a vertigem da emoção?"
"Não! O primeiro livro dele era melhor."
            "Pobre Coitado! perdeu as ilusões."
 
Ide, pequenas canções nuas e impudentes,
Ide com um pé ligeiro!
(Ou com dois pés ligeiros, se quiserdes!)
Ide e dançai despudoradamente!
Ide com travessuras impertinentes!
 Cumprimentai os graves, os indigestos,
Saudai-os pondo a língua para fora.
Aqui estão vossos guisos, vossos confetti.
Ide! rejuvenescei as coisas!
Rejuvenescei até The Spectator.
          Ide com vaias e assobios!
 Dançai a dança do phallus
          contai anedotas de Cibele!
Falai da conduta indecorosa dos Deuses!
 
Levantai as saias das pudicas,
          falai de seus joelhos e tornozelos.
Mas sobretudo, ide às pessoas práticas -
Dizei-lhes que não trabalhais

          e que viverei eternamente.
 



              Ezra Paund
tradução de Mário Faustino



SAUDAÇÃO 

Oh geração dos afetados consumados
          e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
          e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago

          e não possuem nem o que vestir.
 



Ezra Pound
tradução de Mário Faustino

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

POEMAS MUNDANOS
21 DE JUNHO DE 1962


Trabalho todo dia como um monge
e à noite vagueio, como um gato
à cata de amor… Vou sugerir
à Cúria que me santifique.
Com efeito, respondo à mistificação
com a mansidão. Olho com olhos
de imagem os que vão linchar-me.
Observo o meu massacre com a coragem
serena de um sábio. Pareço
sentir ódio, mas escrevo
versos cheios de amor atento.
Estudo a perfídia como um fenômeno
fatal, como se dela não fosse objeto.
Tenho pena dos jovens fascistas,
e aos velhos, que são para mim formas
do mais horrível mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que, voando,
tudo vê, e, no seu vôo para o céu,
leva no coração a consciência
que não perdoa.



Pier Paolo Pasolini 

sábado, 10 de novembro de 2012



NOITE ROMANA

Sexo, consolo da miséria!
A puta é uma rainha, o seu trono
são ruínas, a sua terra um naco
de prado merdoso, o seu cetro
uma bolsa de verniz vermelho:
ladra na noite, porca e feroz
como uma mãe antiga: defende
o seu território e a sua vida.
Os chulos, em redor, em bandos,
soberbos e pálidos, com bigodes
brindesianos ou eslavos, são 
chefes, regentes: tramam,
nas trevas, os seus negócios de cem liras,
pestanejando em silêncio, trocando
palavras de ordem: o mundo, excluído, cala-se
à volta deles, que dele estão excluídos,
carcaças silenciosas de aves de rapina.

Mas nos destroços do mundo, nasce
um novo mundo, nascem leis novas
onde não há lei; nasce uma nova
honra onde a honra é desonra…
Nascem poderes e nobrezas,
ferozes, nos montes de tugúrios,
nos lugares perdidos onde se julga
que a cidade acaba, mas onde
recomeça, inimiga, recomeça
por milhares de vezes, com pontes
e labirintos, estaleiros e aterros,
atrás de vagas de arranha-céus
que velam horizontes inteiros.

Na facilidade do amor
o miserável sente-se homem:
firma tanto a fé na vida, que
despreza quem outra vida tem.
Os filhos lançam-se à aventura,
certos de estarem num mundo
que os teme, a eles e ao seu sexo.
A sua piedade é não terem piedade,
a sua força é não terem cuidados,
a sua esperança é não terem esperança.

Pier Paolo Pasolini

recortando a noite como se fosse 
com uma faca


a noite perde a pele
agressiva é a escuridão
ter corpo alma & uma rosa
 na lapela
e o caminho duro das palavras
e o silêncio depois da festa
olhos perfurados pra ver melhor
 a dissipação do mistério




ney ferraz paiva
matt mahurin

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Poesia como prática = Outridade

 (Octavio Paz)


págs. 96-97.

[...] não há poesia sem sociedade, mas a maneira de ser social da poesia é contraditória: afirma e nega simultaneamente a fala, que é palavra social; não há sociedade sem poesia, mas a sociedade não pode realizar-se nunca como poesia, nunca é poética. Às vezes os dois termos aspiram a desvincular-se. Não podem. Uma sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a mesma coisa ou ninguém falaria sociedade transumana em que todos seriam um ou cada um seria um todo auto-suficiente. Uma poesia sem sociedade seria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras. Condenados a uma perpétua conjunção que se resolve em instantânea discórdia, os dois termos buscam uma conversação mútua. Transformação da sociedade em comunidade criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em imagem encarnada.

Uma comunidade criadora seria aquela sociedade universal em que as relações entre os homens, longe de ser uma imposição da necessidade exterior, fossem como um tecido vivo, feito da fatalidade de cada um ao enlaçar-se com a liberdade de todos. Essa sociedade seria livre porque, dona de si mesma, nada exceto ela mesma poderia determiná-la; e solidária porque a atividade humana não consistiria, como ocorre hoje, no domínio de uns sobre outros (ou na rebelião contra esse domínio) e sim procuraria o reconhecimento de cada um por seus iguais, ou melhor, por seus semelhantes. A idéia cardeal do movimento revolucionário da era moderna é a criação de uma sociedade universal que, ao abolir as opressões, desenvolva simultaneamente a identidade ou semelhança original de todos os homens e a radical diferença ou singularidade de cada um. O pensamento poético não tem sido alheio às vicissitudes e aos conflitos dessa empresa literalmente sobre-humana. A gesta da poesia ocidental, desde o romantismo alemão, foi a de suas rupturas e reconciliações com o movimento revolucionário. Em um movimento ou noutro, todos os nossos grandes poetas acreditaram que na sociedade revolucionária, comunista ou libertária, o poema cessaria de ser esse núcleo de contradições que ao mesmo tempo nega e afirma a história. Na nova sociedade a poesia seria por fim prática.

págs.100 e 101

[...] A idéia de uma comunidade universal na qual, pela abolição das classes e do Estado, cesse o domínio de uns sobre outros e a moral da autoridade e do castigo seja substituída pela da liberdade e da responsabilidade pessoal – uma sociedade em que, ao desaparecer a propriedade privada, cada homem seja proprietário de si mesmo e essa propriedade individual seja literalmente comum, compartida por todos graças à produção coletiva; a idéia de uma sociedade na qual se apague a distinção entre o trabalho e a arte, essa idéia é irrenunciável. Não só constitui a herança do pensamento moral e político do ocidente desde a época da filosofia grega, como faz parte da nossa natureza histórica. Renunciar a ela é renunciar a ser o que desejou ser o homem moderno, renunciar a ser. Não se trata unicamente de uma moral nem de uma filosofia política. O marxismo é a última tentativa do pensamento ocidental para conciliar razão e história. A visão de uma sociedade universal comunista está ligada a outra: a história é o lugar da encarnação da razão. Ou mais exatamente: o movimento da história ao desdobrar-se, revela-se como razão universal. Algumas vezes a realidade da história desmente esta idéia; algumas vezes procuramos um sentido para a sangrenta agitação. Estamos condenados, a buscar a razão da desrazão. É verdade que, se há de surgir um novo pensamento revolucionário, terá que absorver duas tradições desdenhadas por Marx e seus herdeiros: a libertária e a poética, entendida esta última como experiência de outridade; não é menos certo que este pensamento, tal como o marxismo, será crítico e criador; conhecimento que abraça a sociedade em sua realidade concreta e em seu movimento geral e a transforma. Razão ativa.

Manuel Alvarez Bravo
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Tradução: Sebastião Uchoa Leite. Coleção Debates. Editora Perspectiva.