AS COISAS CERZIDAS EM ARTAUD
entrevista à Revista E, SESC São Paulo por André Queiroz
É possível dizer que existe nas ideias de Artaud – na sua visão do que é o teatro, em sua opinião sobre o que vem a ser a representação – uma espécie de luta contra o predomínio da dramaturgia em relação à encenação?
Trata-se, sem dúvida, de uma crítica absolutamente radical aos modos da dramaturgia de então, qual seja, um certo modo de se pensar o teatro, de se operá-lo desde a dramaturgia, mas não apenas aí. Trata-se também da crítica ao que Artaud irá chamar de psicologismo tão marcado no teatro que se fazia (mas será não se o faz ainda?). Artaud queria dissipar a cena na que se forjava o drama burguês, e o ramerrão das palavras que supõe contar a intimidade do homem, os seus segredinhos de bastidores, os seus fantasmas íntimos, as suas irrealizações levadas ao palco como que num psicanalismo generalizado às encenações. Artaud operava a partir de outra perspectiva ao teatro. Um teatro ritual no qual se evocava outras relações do homem. Talvez não mais o homem numa relação de si a si, mas o homem que se esgarça numa relação com o infinito, com a presença mágica da natureza. Não a natureza como o que se apreende sob o domínio da técnica ou mesmo a natureza numa contrapartida a isto – a natureza sob os cuidados dos ambientalistas que a buscam preservar dos barbarismos da cultura. Artaud solicita o trágico. E nesta solicitação dizer a natureza é dizer algo bem outro do que se costuma. Seu teatro é um teatro perpassado das relações entre o homem e os poderes mágicos desta natureza muito pouco cordial, muito pouco harmônica, mas ela, a natureza abismada na que o homem trespassado pelo que o sobressalta ele o homem está em definitivo ao risco de um seu esgarce. Diria – está fora de causa terminar bem. Esta a radicalidade do teatro em Artaud. Bem além de uma discussão acerca da palavra, ou da ausência dela. Certo que rebate também aí. Mas não se trata de se situar aí e apenas aí, qual seja, na recusa da palavra se buscamos compreender o que pretendia Artaud ao pensar no seu teatro metafísico.
Pergunta de praxe: quem você citaria como influenciados pelo teatro de Artaud além Peter Brook, que fala muito. Grotowski? E aqui no Brasil, Zé Celso? Alguém mais?
Respondo sem pestanejar: Ói Nois Aqui Traveiz. A incrível companhia de atuadores de Porto Alegre. Companhia com mais de 30 anos de funcionamento, de pesquisa teatral – mas Companhia imenso nova, Companhia juveníssima porque o seu mapa do fazer é sempre voltado à redefinição contínua do que se está a experimentar. Um teatro da prática, um teatro que é a prática e neste sentido, o pensamento sem tutelas, sem heranças à tradição e aos fiadores de plantão que estão sempre a exigir ‘releases’ do que se está a fazer como salvaguarda aos modos da criação. Todavia não há a salvaguarda. Todavia não há a sugestão prévia a temperar o que se dá ao experimento e no próprio corpo do experimentar. O que se vê senão a torrente do tanto fazer? Mas se está a este tanto fazer. No entanto, eu arrancaria da questão o termo ‘influência’. Não diria que eles estão influenciados por Artaud, ou por Grotwski, ou por Heiner Muller. Ou, ou – isto, aquilo. Diria que se está atravessado por estas estéticas. Diria que se está atravessando tais pensamentos. Porque o de que se trata é de um pensamento ao teatro, ou o teatro como modo de pensamento. Não quero dizer: a racionalização que se possa abstrair da cena teatral. O predomínio de uma busca conceitual a um fazer do teatro. Não digo isto. Diria que se está de todo perpassado por este pensamento que é corpo. Como em Nietzsche, como em Artaud. E o estar de todo perpassado por este pensamento-corpo é estar a sua devoção no que se faz quando do fazer. Por exemplo, veja que se trata de uma Companhia de Atuadores. Não uma Companhia de Atores. Porque talvez este significante esteja gasto em demasia. Talvez ele esteja eivado de sentidos que comprometem o fazer, que ele esteja encarquilhado dos moldes à produção, a uma certa ideia de teatro como espetáculo que não comporta o ‘aquilo’ que o Oi Nois Aqui Traveiz evoca. O teatro laboratório, o teatro vivência, o teatro ritual. Pude assistir ao Amargo Santo da Purificação – uma montagem alegórica da vida de Carlos Marighella. Assisti duas vezes a esta montagem. Na Cinelândia, no Rio de Janeiro, e na praça central do Crato, na região do Cariri cearense. Marighella não era contato didaticamente para o deleite de quem estava às cenas. Não se fazia com ele uma pequenina mostra de teatro pedagógico a cooptar as gentes na direção da memória e do arquivo. Tratava-se de pensa-lo sob o ensejo do poético no que os princípios de constrangimento do real eles se espatifam. Não haviam panfletos. Havia uma convocatória que tomava em assalto aos que estavam, incautos, a audiência de tudo. Convocatória pela música, pela dança, pelas alegorias, pela palavra – mas não a palavra-diálogo que contracena indivíduos, sujeitos mantidos pelo contrato social burguês. A palavra era derrapada – no que ela se lançava, era o desconforto o que se experimentava. Talvez me perguntasses: “desconforto com o quê?’ Digo aos modos que me surgem agora: desconforto com a condição de homem. O que, de algum modo, Primo Levi sugeria: da vergonha de ser homem. Basta um breve olhar ao redor e há de se saber do que estou a me referir. Este ao redor pode ser a cartografia dos horrores do século XX, ou as de agora agorinha. Aquele Marighella nos lembrava isto – algo que em definitivo é desalentador ao coro dos contentes que prima por aí. Eis uma indicação. Um teatro sem eira nem beira – mas ao desaprumo dos costumes, como um prego firmado à passividade das pessoas. Artaud sim. Oi Noiz Aqui Traveiz está a operar isto.
Mesmo tendo sido também poeta, ator, roteirista de cinema e até pintor, por que é no teatro que encontramos as maiores referências a Artaud?
Questão é que em Artaud as coisas estão esbarradas, envoltas em processos de indiscenibilidade. O teatro, a literatura, o atuador, a poesia, o texto epistolar. As coisas estão cerzidas pela experimentação do que é Artaud. Diria antes, do percurso-Artaud. Porque Artaud é,sobretudo,um percurso. Como Nietzsche é também um percurso. Percurso que em Nietzsche sugere Sils Maria, a Itália, o verão aqui, os invernos ali. O pensamento que é corpo esmerilhado pelas vertigens da natureza, pelos humores ao clima, pelas dores de cabeça uma vez as variações do clima e das paisagens. São painéis ao pensamento. E em Artaud – a Irlanda, o México, O Oriente, e os claustros. Não apenas os claustros da internação psiquiátrica mas também isto. Há claustros no aberto. Artaud, o solitário. O percurso-Artaud não diria ser uma resposta ao que lhe surge, ao que se lhe dá. Por exemplo, sua correspondência com Jacques Rivière, editor de La Nouvelle Revue Française. Rivière que recebe poemas de Artaud. Rivière que dirá a Artaud que seus poemas são inconclusos, imperfeitos, cheios de deslizes. Rivière que lhe solicitará contar a sua vida, associar a escritura àquele que se é – como numa clínica inadvertida às caças do sentido que falta. Artaud que lhe dirá não se tratar de imperfeição formal ao poema, mas que se trata da condição na que o pensamento lhe é, um pensamento abaixo, um pensamento por espasmos. Diria, vez mais, o percurso em Artaud não é reativo, ele não está a resposta do mundo. Mas se trata de uma assinatura de mundo. Artaud fabrica obra como modo de ocupar o percurso que é ele. Por vezes, tantas vezes, parece ser incompatível um algo assim aos modos de funcionamento da sociedade em que estamos – sociedade compartimentada na que os escaninhos atendem aos interesses cindidos por área de atuação, campo de saber, regime de especialistas.
O que o interessava nos surrealistas? Seria legal falar dessa conexão na matéria, porque normalmente as pessoas pensam nas artes plásticas quando falamos em surrealismo... E é aqui que vc poderia me falar sobre o diálogo dele com a sociedade artística e intelectual da época, em Paris. Tendo em vista a efervescência cultural da cidade na época, como isso afetou Artaud – e, claro, como Artaud influenciou esse cenário.
Pela explosão da consciência como campo de absorção e apreensão do mundo. Pela explosão dos ditames do sujeito de razão que pensa ser mediação de tudo. Pela explosão do império dos sentidos desde a razão que lhes governaria e que lhes acenaria o seu primado de valor. No entanto, os surrealistas estarão demasiado envoltos com as descobertas da psicanálise, o inconsciente como campo alargado no que o sujeito psicológico redefine os territórios de seu domínio. Artaud então partirá para outras paragens. Falei aqui dos ingressos ao Oriente. Não necessariamente ao Oriente geográfico. Mas ao Oriente que há em todo Ocidente. Oriente como lugar-vetor de um pensamento-outro. Pensamento este que não reitere o primado do homem, do sujeito do conhecimento que busca paralisar o objeto sob o seu escrutínio. Artaud rompe com os surrealistas. Lança-se a este Oriente no que o homem está imerso à condição de ser pequena nódoa – ou um algo que se estilhaça, ou um algo que se apaga para que então possa emergir o de que se trata. Sobre as influências, o tema que regressa, eu diria que Artaud foi, sobretudo, o náufrago. Depois se lhe atribuirá um lugar no cenário dos que se distinguem. Sempre atendendo àquela fórmula-ótima na que o bom poeta é sempre o poeta morto. Em vida, Artaud será aterrorizado pelos fascismos de toda ordem, os claustros a que me referi. Lembro-me bem de suas Cartas desde Rodez. Numa delas, carta ao seu psiquiatra Gaston Ferdière, ele dirá de sua condição de interno àquela instituição, ele que lá entrara com quase trinta dentes na boca, e que depois de anos, um dois três os anos, ele terá 8 dentes à arcada, e ele dirá: eu gostaria de saber quem é que é o responsável por esta perda de dentes, quem é que assina esta usurpação… ele diz algo assim, com as palavras que lhe coube, mas era isto o que ele estava dizendo. Falar da influência de Artaud, falar da ressonância de seu pensamento na sociedade daquela época é de algum modo deitar-se ao esquecimento do que lhe coube – o sequestro de sua vida pelo aparato médico-psiquiátrico com todo o seu apetrecho disciplinar de intervenção e interdição. Há que se lembrar também que aos internos se lhes dá o esquecimento como condição a si. No caso de Artaud, por 4 anos, este esquecimento se redobra vá se saber a que enésima potência… é que Artaud é interno das instituições psiquiátricas no quando da França sob a ocupação alemã, naqueles 1940-1944. Será se pode imaginar o que era aquilo, o que lhe coube?
André Queiroz é filósofo. Escritor, ensaísta e professor. Autor, dentre outros, de Foucault – o paradoxo das passagens (1999); Tela atravessada – ensaios sobre cinema e filosofia (2001); O Presente, o intolerável – Foucault e a história do presente (2004; 2011); Em direção a Ingmar Bergman (2007); Antonin Artaud, meu próximo (2007); Imagens da biopolítica I – cartografias do horror (2011); Palavra Imagem – filosofia cinema literatura (2011); Patchwork – livro para teatro (2011). Organizou, prefaciou, os seguintes livros: Foucault hoje? (2007); Barthes & Blanchot: um encontro possível? (2007); Apenas Blanchot! (2008).