EU E O CÍRIO
A virgem na manhã com cinzas ainda da madrugada
Ou a ginástica, isto é, o poema da infância e da juventude
(anotações de lirismo e romantismo)
Depois veio o sol do meio-dia. A santa caminha em
chamas e calor movido a esplendor. Caminhava em
silêncio, Santa e musa e nuvem. Um caminhar opaco e
lento. As pedras em brasa.
O poema, este meu ofício do verso, com um desenho de
Maria Leontina. As páginas se enchiam sem conta e canto.
No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra.
Eu via a procissão passar na esquina da Avenida
Nazaré com a Doutor Moraes. Muitos e muitos anos seguidos.
O poema indo e vindo, suando. Apertado num terno
branco e gravata. A virgem também usava um vestido branco,
dominical. Mas sem seu corpo dentro e seu rosto me olhando,
uma pedra no meio do caminho.
E eu procurando, procurando, contemplava as imagens
com as minhas retinas tão fatigadas.
Era um branco absoluto na minha memória. Não me
lembrando de nada. Só o rosto faltando, o corpo
faltando no vestido branco.
Maria da Graça. Maria de Nazaré. Não me via
menino sem Marieta.
O Círio sou eu, erótico, sensual, demoníaco, sedento.
A virgem passava entre nuvens, em silêncio.
Seu manto fazia um calor danado. Depois eu esquecia.
Havia o rumor da multidão. Eu via a banda dos bombeiros
passar. Velhas rezavam, se revezavam. Balões, sorveteiros,
brinquedos de Meriti, a roda gigante no arraial da Santa.
Eu esqueço tudo em minhas trevas da catarata,
Da minha isquemia cerebral. Não me lembrava do rosto
de meu amore.
Então quero pedir apenas um pequeno milagre
a vocês de lá de cima: deuses, arcanjos eleitos, fadas, pajés,
filósofos, farmacêuticos, Moodipina, Sinergen, coisas
artesanais, Azopt, colírios. Um pequeno
milagre para não esquecer, fumar menos
para oxigenar o cérebro. Não esquecer o rosto,
o nome da virgem ou musa de vestido branco.
Pois o Círio sou eu. E eu ainda a amo!
Max Martins, O Cadafalso, Belém, Cão-guia, 2001.
Imagem: Flavya Mutran, Ondina, da série Pretérito imperfeito, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário