o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Os homens submersos voltarão?


Não sou um autor defunto, sou um defunto autor. 
Machado de Assis


Não há reencarnações literárias. À parte leitura e obra, o escritor é amorfo à ressurreição. Depois de sua morte temos que seguir em frente. Quando Carlos Drummond morreu, restava-nos ninguém menos do que João Cabral de Melo Neto, ainda que no Olimpo não tivesse havido nenhuma sucessão ou transição. Drummond e Cabral faziam parte do mesmo mundo incomensurável de todos os mortais. Nem mesmo nessa hora a literatura distingue seus filhos diletos. Toda passagem da morte para a glória literária é incerta. Os serviços pós morte de um escritor enfrentam o grave problema da invisibilidade que aniquila qualquer indivíduo. Há de se fazer seminários, simpósios e debates em torno de sua obra. Trocas de pensamentos com o além costumam imprimir certo vigor ao desaparecido. Documentários também costumam ajudar bastante. Mas nada é tão definitivo como publicar as cartas do falecido (ai do escritor que não escreve cartas!). É dessa forma que ele pode estar de volta, rompendo o silêncio que o quis aniquilar.



A edição de fevereiro da revista “Bravo!” publica matéria que praticamente ocupa toda a seção destinada à livros. É que Drummond está de volta. Cartas trocadas entre ele e Cyro dos Anjos serão publicadas este ano. Mas desde já podemos pressentir os sinais e as reviravoltas de sua aparição? Drummond foi um poeta que escolheu viver na República de Platão. Ao longo de meio século de lida com a palavra jamais se lançou a nenhum infortúnio. Acomodado, calmo e pouco dado à fala, foi acusado inúmeras vezes de exercer acriticamente e sem transparência o ofício. Mário Faustino chegou a assinalar que se tratava de um poeta que não manifestava “grande interesse pelo progresso da Poesia”, e que atravessou de forma opaca momentos cruciais da vida sócio-cultural de seu tempo. Desprendido do limbo, dessa vez as confidências do itabirano conseguirão abalar a inércia atual dos arraiais literários?



Uma primeira coisa a considerar, em se tratando de uma prática pessoal, é se as cartas superam aspectos como contexto e particularidade – e talvez a forma de se chegar a uma resposta seja avaliar os motivos que levaram Drummond a não escrever suas posições estéticas direto nos jornais. Se tudo era operado a partir de uma análise crítica rigorosa e não apenas como comentário subjetivo, destinado à confidência e ao desabafo sentimental. Pelo que se lê na revista, os excertos das cartas, tratados como “opiniões fortes” no título da matéria, se voltam preferencialmente contra dois grupos: os regionalistas Nordestinos e os escritores de formação católica. Drummond parece movido por certo modo de ver e não de interpretar uma crise que de fato existisse. Segredar opiniões fortes, confidenciá-las a um interlocutor amigo, sem, contudo se rivalizar esteticamente, de forma nítida, com nenhum dos autores. É o que acontece aqui. Drummond tinha parceiros tanto num grupo quanto no outro. Um extenso e variado acervo fotográfico o coloca repetidas vezes ao lado de um José Lins do Rego ou de um Vinicius de Moraes. Ao fomentar melhores traços para o romance brasileiro a partir de o “Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos, sua aposta não escapa de parecer hoje uma piada sinistra. E assim como os nordestinos seguem assegurando seus nomes e obras no espaço literário, é o caso citar Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito, as vãs simetrias de humor e estilo do missivista impiedoso acabariam por confirmar, em 1976, mais do que afinidades e entusiasmos com a escrita de Adélia Prado, poeta católica a que recomendou e incensou ao galardão – antecedida por Cecília Meireles e Lúcio Cardoso.




Drummond deveria duvidar um pouco mais das circunstâncias e do seu vasto coração. Isso vale para os célebres e os iniciantes. Ternas hipérboles ligavam o poeta sobretudo aos conterrâneos mineiros. O que de forma alguma o torna inferior a seus pares. Há uma face nebulosa da cena intelectual brasileira em que o infinito abismo só pode ser evitado com fisiologismo e fácil elogio. Muitos enigmas ainda a se decifrar no vasto, mas nem tão variado, cânone da literatura dita nacional. Crescentes e sórdidos labirintos separam do grande público a reimpressão literal dos fatos. É dessa maneira que se constroem reputações, carreiras bem sucedidas e se recebe rentáveis prêmios. Há sempre uma carta, bilhete, ou mais atual: um torpedo, um e-mail que intermedeie patrocínios relâmpagos e estratosféricos valores que a burocracia dos editais não têm como atender. Passos secretos e semidivinos. Afinidades na forma e no tom. Assim declaram as odes e os espelhos. A idiossincrasia kafikiana dos gabinetes e o sobrenatural que vez por outra nos espreita.

Excertos das cartas de Carlos Drummond para Cyro dos Anjos:

“O arraial das letras anda muito alvoroçado com os últimos produtos do engenho nordestino, que são uma tragédia de Raquel, onde os personagens se matam a metralhadora em cena aberta, e o romance de Zé Lins. (...) O livro de Raquel, pelo menos, tem o mérito de uma linguagem saborosa, mas falta-lhe sequer resquício de interesse psicológico, pois a alma de Lampião e de seus cabras é tão elementar como a do Zé Lins. Já o livro deste lucraria talvez em arte se fosse escrito pelo próprio Lampião.”
(11 de outubro de 1953)

“Ainda não pedi notícias de seu romance, que me interessa muito. É da maior importância que você o conclua, contribuindo para que se retifique o conceito atual do romance entre nós. A mim não me satisfaz nem a transcrição imediata e anti-crítica de aspectos de uma vida regional, como fazem os rapazes do norte (entre parênteses: como escrevem mal!), nem essa literatura ‘restaurada em Cristo’ com que nos aporrinham os pequeninos gênios marca Lúcio Cardoso.”
(04 de agosto de 1936)


Ney Ferraz Paiva, Salgueiro-PE, fevereiro 2011.

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