o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

cariri vertigo
a arte de se retirar (atirar-se, subir-descer, gingar, jogar) como uma das belas-artes

Para Carolina Maria de Jesus, Madame Satã e Cara de cavalo – pelas vertigens desenfreadas da rua & do morro.

Achava belo, a essa época, ouvir o poeta dizer que escrevia pela mesma razão por que uma árvore dá frutos. Só bem mais tarde viera a descobrir ser um embuste aquela afetação: que o homem, por força, distinguia-se das árvores, e tinha de saber as razões de seus frutos, cabendo-lhe escolher os que haveria de dar, além de investigar a quem se destinavam, nem sempre oferecendo-os maduros, e sim podres, e até envenenados.
Osman Lins: Guerra sem testemunhas

Alguns pequenos extras e outros tantos desenlaces:

Favela e sertão se conciliam. Favela é sertão a poucos passos do mar.
Favela não é contradição do sertão.
Favela não é continuidade do sertão.
Favela não é destino do sertão.
O que é favela? O que é sertão?                                      
Brasil profundo – Brasil pro fundo. Brasil-problema.
O sertanejo. O proletariado.
Samba. Candomblé.
Favela posta em conserva, sertão acondicionado in vitro – os dois possuem o grande e terrível dom de renascer.
O Dragão da Maldade Contra O Santo Guerreiro. O Câncer (dois filmes de Glauber Rocha, vocês lembram? duas portas entreabertas para o mesmo lugar à margem de tudo: dos influxos das zonas rurais do Nordeste às conjunções do imaginário urbano do Ser-Tudo e do Ser-Nada a um só tempo).
Mostra Opinião 65, no MAM do Rio de Janeiro, Hélio Oiticica apresenta pela primeira vez a instalação Tropicália, um jogo de experimentação dos espaços labirínticos (sertão-favela etc.) que ironiza e renova as imagens das zonas tropicais vistas tradicionalmente ora como paraíso perdido ora como região de transcendente tristeza. Tropicália enfatiza os trópicos para além das coordenadas “céu” e “inferno”. É o fragmento, o primitivo, o improviso que está sempre se fazendo.
Favela e Sertão se encontram aí, renascem, se misturam, coexistem e se estranham.

Fixemos estes pontos de partida para irmos encaminhando nossa abordagem e do fracasso presumível fazer dar um passo à frente. O ano é 1964 e o apocalipse não é amanhã, ainda que daqui a pouco se descerá a uma temporada no inferno, mas não se nomeará aqui os atos covardes e brutais que seguirão implacáveis por mais de duas décadas cometidos pelos distintos e perfumados militares e suas complexas redes de apoio – no avesso das armaduras o relógio continuará frágil como roseirais a mover a paisagem ante as aparições múltiplas da adversidade e do Grito, aquele que aturde e descongela corpos, almas e mentes – sacode-os, desperta-os, uma vez que a ferida (em reverência à morte) é invisível em seu início.

“Cada um vive como quiser”, “É proibido proibir”, “Abaixo a ditadura”, exclamava-se, insultava-se nas ruas anonimamente enquanto as incontáveis inscrições escorriam dos muros. Gritos sem dono como só um animal consegue ser. É pela voz que se começa a tornar-se animal. Muda-se a voz ao se entrar no coração dos caminhos (ou no espelho), girando agradável o corpo numa qualquer direção que não mais aquela: “já cortaste o cabelo?”, “arrumaste já a cama?”, “abotoaste a camisa?”. Sair da casa, sair-se do outro, retirar-se. “É para ir, vai”. Bancando o Rimbaud. Parte o menino que um dia foi tão nosso. Abre-se o buraco, a lacuna cada vez mais funda. Terá sido uma das tantas ficções a infância, esta a que nos pomos a recontar? Os pés fatigados de quem tentou tudo e fracassou. Nós que um dia fomos sem ter nem como um Kafka a escrever cartas, agora as recebemos – será a quem se escreve tais cartas – carta-crônica, carta-romance inconcluso, carta-poema nunca de amor? A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado, no solo mais extremo da distância, o que se cavou dentro de nós? Ao pai-discurso, ao pai-estado, ao pai-caminho. “Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais braços dados ou não... vem, vamos embora...”. Cantar-dançar-delirar a rua como o espaço privilegiado de tensões, intervenções, instabilidades. A rua que passa a ser teatro que libera ecos que irrigam/nutrem um olhar-outro, e um pouco de medo – de abismo – e ver aí a inscrição simbólica da liberdade. O GRITO a soar, a doer. “Parangolé, essa a palavra”. Palavra-senha que Oiticica terá que arrancar/despregar a um espaço de indiferença – a um mendigo que desconcerta o olhar voluntário do artista, este que quer encontrar no descoberto das ruas o indício do enunciado expressivo da imanência, que se esboça na sensação visual, tátil e rítmica do movimento improvisado de uma dança e já num átimo se perdeu. Há de se estar atento. Emaranhado a um empreendimento particularmente difícil a que se quer expandir. Uma esfregadela nos olhos é pôr tudo a perder. A incitada serpente vibrando, vibrando, vibrando os guizos. Oiticica num giro banal de ônibus pelo centro do Rio de Janeiro, não apenas vê passar a sua frente e sim tem a carne atingida em cheio por essa palavra-tempestade que dissipará de sua obra os elementos picturais de representação. Não mais um modernismo de convento em peleja contra o corpo, a se referir como uma lição de coisas a isto que pode – a isto que não pode no ambiente da cultura artística. As desgastadas regras acondicionadas como que numa moldura que deve proteger-assegurar-redobrar as forças dominantes do mercado consumidor pequeno-burguês da arte. Aí o lucro maior é, em verdade, reverência, respeito, prudência, submissão. O sistema de publicidade do modernismo acaba por auto-retratar seus monstros. Exceção e honra a uns poucos – a Oswald de Andrade que escapou com considerável positividade artística, um a um, aos fracassos e ao envelhecimento prematuro que se seguiu à Semana de 22. Desde o “Caderno de Poesia do Aluno Oswald de Andrade” que se pôs a operar, acionado apenas pelo motor da linguagem, a caligrafia irregular que anuncia o total desapego e o surpreendente divórcio com as musas decadentes. É com ele que se instalam os processos da diferença. Os cortes de relação. Os impasses. A deglutição antropofágica. E suas propostas artísticas progridem e prosperam no ambiente marcado pelo pensamento marxista e pelos anseios de liberdade da juventude dos anos 1960. Gritar para ouvir aí lemas e alertas, o procedimento menor e, no entanto o mais estrangeiro. É sempre melhor seguir Gritos, tambor, dança, dança, dança, dança! Ecos prescindem de explicação.

Se Sertão é a Carne de Corpos do Avesso a Secar ao Sol, Favela é a Utilidade Marginal da Caverna, da Toca, da Quebrada, do Beco sem saída de corpos desterrados. Labirintos revisitados a uma só vez por um Neo em “Matrix”. Por um K. em “O Castelo”. Mas seria apenas – e meramente – de uma Arquitetura a ser desbloqueda que faríamos ressoar aqui as linhas horizontais, ou pior, as linhas pendulares de uma não-arquitetura a que se quer deter, esvaziar para que não prolifere pela cidade? De que lugar esse homem coberto de pó e de silêncios? O lugarejo paralítico e perdido entre as duas Espadas do Evangelho, as moscas, os ossos, as pedras, os intestinos intumescidos das crianças cujos corpos se esvaziam pelo ânus? Onde tudo é seco, duro e oco e mesmo a Beleza tem o rosto enterrado, a cabeça achatada, as costas como que de uma carapaça? E será que aí ele se “ajeita”? terá ele “jeito” – a que incontáveis “jeitinhos” e a que combates protagonizará frente às leis e os modos paranóicos de como a cidade se administra e se reveste em sua cúpula de concreto das casas-edifícios? Ele que saiu de seu mundo em busca de emoções humanas, que o aproximam de escolhas sempre muito mais penosas. Que saberá das guerras entre homens e máquinas que aí se dão? E dos trajetos que percorrerá morro-acima-morro-abaixo, evidenciarão ainda mais a irracionalidade humana?  Por essas altas ideias navegará mal?  Ou será que aí ele se “ajeita”, se apruma, se arruma? Terá ele rumo? Será muito pobre coitado nesse seu quarto de despejo? Se já no Sertão as moradias eram anti-residências, será que na Favela, barracos, por dentro, podem vir a ser casas-ninhos?...

Hélio Oiticica pressupôs isso. Sonhou isso. Flutuou como gás entre paredes de plástico papelão e zinco atadas por cordas, arames, barbantes. Homens-aranhas subindo/descendo o morro, lançando e traçando seus frágeis caminhos.

Em plena explosão da Pop Art, Oiticica se reserva à surpresa dos saberes para além de uma arte como produto direto da sociedade de produção e consumo em massa – com esse comportamento ele se coloca de passos trocados, desequilibrados, em tropeços com o resto do ambiente culto da arte-instituição. Oiticica desencaminhou-se para o lado íngreme do grande terreno da arte, e tornou-se, mesmo sem o pretender (ele aspirava ao grande labirinto), a expressão do contemporâneo de uma atualidade sem precedentes, máquina desejante na direção da arte e do pensamento, que se põe a funcionar pelo festivo, artesanal, interativo, carnavalesco, corporal, engendrando questões que envolvem muitos deslocamentos, toda uma geografia, dobras e redobras cuja consequência implica em uma quebra no estabelecido, na direção de outra maneira de pensar a arte e se incorporar a ela – o CORPO, as articulações em CARNE VIVA.

Eu tinha a ideia de me apropriar de lugares que eu amava, de lugares reais, onde eu me sentia vivo. Na realidade, o penetrável Tropicália, na sua multiplicidade de ideias tropicais, era um tipo de condensação de lugares reais. Tropicália é um tipo de mapa. Um mapa do Rio e um mapa da minha imaginação. É um mapa dentro do qual se pode entrar. (H.O.)

Sem ir ao Nordeste, Oiticica subiu ao Sertão no morro da Mangueira e ali teve o Sertão que desconhecia. Caiu de vez na Alternativa, entregou-se à Experiência do Pensamento Selvagem, Nômade, Primitivo do Improviso, do Salto, da Ginga, da Malandragem. Integrou-se (e entregou-se) ao Bando da Mangueira, à comunidade de criadores e parceiros, num encontro de consequências e reverberações. Antes, a morte do pai o libertara. Nada melhor do que a morte do pai para indicar o quanto se pagou da dívida que, por vezes, nos coloca na razoável categoria de sobreviventes. Sobretudo porque a arte não é um desses negócios especiais de família. E aí, nos atos de criação, a dor abre lugar também para se experimentar sensações além da perda. Na Mangueira Oiticica não estava interessado em minimizar perdas, fazer catarse ou submeter-se à terapias. Órfão e desnorteado, seu coração circulava pelas nuvens de um céu de intensidades e singularidades, arrastando a arte para além dos suportes, mas numa jornada que passava decisivamente pelo fazer artístico... Lygia Pape se referindo a esses fatos que os anos não cauterizam a beleza, conta sobre as mudanças operadas na vida de Oiticica: “Hélio virou uma outra pessoa... (‘Eu não sabia/que virar do avesso/era uma experiência mortal’, acrescento providencialmente os versos de Ana Cristina Cesar). Isso começa a interferir na obra dele, em 1964. A morte do pai coincidiu com o fim do movimento neoconcreto, já não havia aqueles compromissos mais ortodoxos. Aí Ele começou a incorporar essa experiência do morro... Essas barreiras da cultura burguesa se rompem lá, é como se ele vestisse um outro Hélio, um Hélio do ‘morro’, que passou a invadir tudo: sua casa, sua vida e sua obra”. Mas Oiticica não se livrou automaticamente de suas fantasias escapistas apenas por expressar outras agora mais prontamente disponíveis. Penso que Oiticica, de uma forma ou de outra, sentiu isso, teve que se encarar, despir-se, retirar-se e encenar mais uma vez o ritual, corporificar a mudança de forma extraordinariamente vívida e criativa. Seguindo um processo comum da cultura popular, sobretudo do romanceiro do Nordeste, Oiticica toma uma história que não é sua e versa-a (VESTE-A), reescreve-a, conta-a a seu próprio modo. Recoleção de opostos.
Há uma fotografia de uma noite em que ele samba ao lado de uma passista negra. Ela usa um vestido discreto, fechado, que desce até os joelhos sem marcar o corpo, mas que deixa os braços à mostra, caídos, suficientemente livres. O rosto dela é altivo, o olhar hierático, misterioso, assemelha-se a um ídolo pagão, e como tal não olha Oiticica. Ele está a seu lado, usa um austero traje escuro, mas ela não o vê, estão juntos, ao centro, mas apartados, deslocados pelo olhar. No ardor indeciso dos quadris, ele tem o corpo inclinado à frente, a cabeça e os olhos voltados para o chão. Os braços e os pés seguem o mesmo ritmo, se repetem quase que com exatidão. Mas são duas as danças ali – duas gingas, dois Dionisos. Se assim pode se dar/acontecer: que os pares se dispersem numa diferença de Vertigem do Corpo em movimentos e gingas, como que prestes a desaparecer abruptamente no território comum, aberto, delirante, baldio da favela. Por que não? Por que não?

Muito a propósito, no conto “Solar dos Príncipes”, Marcelino Freire fala de um grupo de negros do Morro do Pavão que param na frente de um prédio para fazer um filme. A primeira reação do porteiro é: ”Meu Deus!” A segunda: “O que vocês querem?” A terceira: “Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?” O grupo tenta dialogar: “A ideia é entrar num apartamento do prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador.” O porteiro: “Entrar num apartamento?” “Não.” “Tô fodido.” E segue o diálogo: Fazer o “condômino falar como é viver com carros na garagem, saldo, piscina, computador interligado. Dinheiro e sucesso.” E acaba que o porteiro não deixa ninguém entrar-subir-filmar coisa nenhuma e chama a polícia. O grupo retorquiu: “Esse porteiro nem parece preto, deixando a gente preso do lado de fora. O morro tá lá, aberto 24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto. Os malandrões entram, tocam no nosso passado. A gente se abre que nem passarinho manso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta, rebola...”. Subir o morro para fazer filme é consensual. Agora, descer o morro para filmar – sorria! você está sendo filmado –, é transgressão da norma, ameaça, caso de polícia! Esse espaço parece não estar destinado ao negro desde sempre, ao nordestino, sobretudo à mulher negra, nordestina. Ela nunca teve grande coisa para dizer. Daí o olhar altivo da parceira de Oiticica? Ela sentir-se no território que lhe é próprio, constante e inabalável, garantido e seguro, não só por tratar-se do morro, mas por estar na favela, seu teto e abrigo transcendental. Sabe-se que na origem favela era a casa dos antigos escravos. Que favela era o amontoado das gentes entregues à própria sorte (ou azar) em CANUDOS. E em meio a isso, a partir daqui, eu não sei mais se pergunto ou se afirmo. Se alguém além de mim viu isso – se você aí viu, se você aí disse ou se estamos com bocas e olhos costurados ou pior: se estamos fazendo caras e bocas, muxoxos, bocejos... Eu os desafio, desejo que vocês encontrem, em breve, em seu caminho um dos senhores donos de toda terra, leitura e suma doutoração, bem como dos corpos desejantes de saber, e que ele ao afrontá-los com a vigilância de cada palmo de seu improdutivo território, inclusive com a oligarquia de seu presunçoso conhecimento, tão inútil quanto as outras e não menos reativa, vocês encontrem um meio de atingi-lo em cheio: não obedeçam, não baixem a cabeça, não sofram uma vez mais as consequências da paciência...  – Terei visto? terei sonhado? alguém me terá contado? tudo é irreal?

Reconto, não desalembro. Oiticica não chegou a morar na Mangueira; por lá vagabundeava dias e noites como alguém que “seguia o samba”, e partia para amplas conquistas. Sambava bem. Era considerado o melhor passista branco da escola. Ia aos ensaios. Recebia a fantasia como todo passista. Não tinha essa de pagar para desfilar. Mas na fotografia o que vemos é um Oiticica numa dança arrancada a fórceps – mais SALTO do que GINGA, de um passista que se esforça mais do que os outros para se desenvolver. Encontrar a brecha. Se fazer entrar/sair/passar como quem salta do ônibus não para evadir-se, mas para subir a favela) – Dédalo a voar sem rede de proteção – para ter a sensação de estar pisando outra vez a terra.

Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para a experiência de tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade. (Mário Pedrosa)

No ambiente da contracultura aqui e alhures Elvis, Beatles, Stones saiam de dentro do rádio e faziam crer a todos que só o Rock existia. Foi no Morro que Oiticica percebeu que a dança é a dança que se dança e que o Rock também podia ser samba – e isso compreendia tudo mais: rodas de capoeira, competições de batuque, congadas, eleições de reis Congo e juízes de Angola, folguedo dos quilombos, maracatus, frevo, bumba-meu-boi, termos e ranchos, louvores a São Benedito. Mas que fique claro, Oiticica não estava interessado em exotismo ou folclore de espécie alguma, então desses que te sapecam uma etiqueta para a vida inteira (“construtivismo”, “concretismo”, “neoconcretismo”, “hippe”, “pop”, “não-objeto”, “tropicalismo”, “suprematismo”, “neoplasticismo” etc.), ele pulava fora do barco. Oiticica visava descondicionar os ritmos. Tudo para ele é ritmo, participAÇÃO. “A música é a maneira de você ver o mundo, de você abordá-lo.” E foi no espaço dionisíaco da Mangueira que ele ouviu-celebrou a música que o modificou irremediavelmente – e mais, descobre que o que faz é MÚSICA – “que MÚSICA não é ‘uma das artes’ mas a síntese da consequência da descoberta do corpo”. Na Mangueira Oiticica inventou ritmos que passou a Vestir. (Uma descrição apequenada dessa experiência de vestir os ritmos das capas-parangolés pode ser percebida na eletrizante aparição de Oiticica no “Programa Buzina do Chacrinha”, onde graças a contingência do apresentador de contar patranhas, Oiticica foi saudado como o “maior costureiro do Brasil”). Que são as etiquetas frente à beleza das aventuras?

Hoje, recuso-me a qualquer prejuízo de ordem condicionante: faço o que quero e minha tolerância vai a todos os limites, a não ser o da ameaça física direta: manter-se integral é difícil, ainda mais sendo-se marginal: hoje sou marginal ao marginal, não marginal aspirando à pequena burguesia ou ao conformismo, o que acontece com a maioria, mas marginal mesmo: à margem de tudo, o que me dá surpreendente liberdade de ação – e para isso preciso ser apenas eu mesmo segundo meu princípio de prazer: mesmo para ganhar a vida faço o que me agrada no momento. (H.O.)

Assim como subiu o morro, Oiticica fez o morro descer. Quase que uma façanha esportiva, uma vez que se dedicou cotidianamente a subir-descer para ver como o morro funcionava em sua cúpula de selvagerias. Não era mais o Hélio-língua-de-fora da fotografia com a passista anônima. Era agora o jogador habituado a correr os riscos totais de uma inteira perda de si. A força de sua arte devia-se em parte à maneira corajosa como teimava em seguir o fio de sua estética até a Toca do Minotauro. Cutucava a ordem estabelecida com a vara curta da desmesura dionisíaca. Por isso fico pensando, permitam-me essa divagação um tanto quanto passional: não combina nada aquele Hélio epicurista dobrado sobre a angústia, encontrado morto e diagnosticado como causa um acidente vascular cerebral. O cérebro mais vasto que o céu/o cérebro mais profundo que o mar/o cérebro estrutura mais complexa da terra. A morte quase de um epicurista que assumiu a culpa não bate com o artista provocativo, afirmativo, que resolvia todos os impasses criativos e as adversidades existenciais com AÇÃO – “in(corpo)ração”. E Hélio está longe de ser um caso isolado naqueles dias de pedradas criativas nas vitrines das estruturas de domínio e consumo cultural alienado. A morte do poeta e letrista Torquato Neto estabelece um paralelo com a mesma coragem psíquica, petulância, insubordinação, imprudência. Torquato Neto morreu convenientemente no auge criativo dos seus 28 anos. Ele e Hélio chegaram a se mandar em 1966, numa providencial viagem de navio para Nova York. A sorte talvez estivesse a favor. Mas que nada! os cálculos estavam errados, e eles perderam. Thor estava irritado: boom boom boom! Thor estava com raiva: “Nós nos importamos! Esses rapazes quebraram as vidraças, as normas, as regras, as caras! Nós nos importamos, sempre haveremos de nos importar: boom boom boom!”. O artista ou desce ou é lançado ao inferno. Mesmo um escritor como Jorge Luis Borges esteve atento à rua, a suas movimentações e errâncias. Ele desceu ao submundo de Palermo, foi amigo de Paredes, um bandido atirador de facas, a quem escreveu um tributo "Hombre de la Esquina Rosada". Boa parte de nossos artistas hoje são a contrafacção disso – querem os prêmios, a ribalta, o sucesso. A vanguarda tem o seu preço. O marginal não!
Oiticica desceu o morro rolando moças e moços negros-nordestinados da Mangueira portando bandeiras e estandartes, um verdadeiro rolo compressor abrindo alas que irão remontar, progressivamente, o sertão com refrões do samba dos canaviais do Nordeste e dos cafezais do Rio de Janeiro. Contra o martelo de Thor os ziriguiduns da África dos descendentes dos negros e mulatos que combateram pela independência da Bahia, 1822-23, especialmente os que formaram o “Batalhão dos Libertos”. Molhado dos limos primitivos da anarquia, Oiticica jamais foi cristão, pertencia à raça que cantava no suplício, molhado dos limos primitivos, e que bebeu do licor não selado, da fábrica de Satã, não incorreria no equívoco de convocar às ruas uma África que não fosse negra – como um Castro Alves suplicando a seu Deus por uma África de Igreja, de canto gregoriano, de Anjos juvenis em suas nuvenzinhas de ingenuidade, de Pirâmides do Egito. Que teria a ver tal apelo místico com os Navios Negreiros, com as Vozes de uma África Negra – que já não se é ou talvez nunca se quis que fosse... Artista da AÇÃO e do COMBATE, de uma atualidade sem precedentes, Oiticica desce com os passistas e ritmistas do bloco “Vê se entende” (alguém aí não entendeu?). São como uma turba de vândalos, juntos invadem o lugar, para bagunçar o coreto, armar o maior barraco, desafinar o coro dos contentes, como lindamente se referiu a isso Waly Salomão: “Hélio Oiticica, sôfrego e ágil, com sua legião de hunos. Ele estava programado mas não daquela forma bárbara que chegou, trazendo não apenas seus parangolés, mas conduzindo um cortejo que mais parecia uma congada feérica com suas tendas, estandartes e capas – Que falta de boas-maneiras! Os passistas da escola de Samba Mangueira, Mosquito (mascote do parangolé), Miro, Tineca, Rose, o pessoal da ala “Vê se Entende”, todos gozando para valer o apronto que promoviam, gente inesperada e sem convite, sem terno e sem gravata, sem lenço nem documentos, olhos esbugalhados e prazerosos, entrando pelo MAM adentro.” Levante efusivo, Odisséia sem erro, Migração, Cruzamento a um espaço enrijecido de uma cultura que não Joga, não Brinca, não Envolve, e que ainda assim se presume o ambiente dos esclarecidos. Museu-Mundo em conexões máximas, fora isso não serve para mais nada, senão para difundir maneirismos e fazer ainda mais bloqueios de toda má sorte. Morro-Museu contíguos, segmentares à Rua. Tudo que os caretas temiam. Espaços eminentemente abertos às Cenas do Desbunde. Foi assim com o Museu, Teatro, Cinema, Literatura, Música, Dança. A Estética da Polidez descombinada com as coordenadas da Moda, do Glamour, da Afetação sumária a que se foi desmanchando sem docilidades. Expulsos do MAM, a turba encena nos jardins do museu um baile que escapava às regras e tomava de assalto as engrenagens. Num dos maiores elogios que já se fez a um artista Ezra Pound, ao se referir a Henry James, considera que “os artistas são as antenas da raça”. Palavras que alcançam e envolvem com exatidão, num prolongamento das Ações Criativas dos Artistas em que tempo e lugar, não apenas a figura emblemática de Hélio Oiticica, bem como seu Projeto de Arte Ambiental e Coletiva. Oiticica é um artista Vidente. Ele prevê que há grandes fendas no Muro do Castelo. O artista é um agente de destruição e não apenas de mediação e (pior dos males) de diversão das massas. Oiticica enfrenta acontecimentos históricos especificamente relacionados a uma história contemporânea da cidade e dos grupos que tentam se firmar, mandar, controlar aí – a isso os dardos precisos arremeçados a favor de um conceito de autogoverno de igualdade no morro, onde fique garantido o acesso a todos sem distinção de cor, e onde se incentiva a capacidade de Ação Atração Invenção Criação Desnudamento. Sair-Subir-Gingar-Jogar-Dançar como uma das belas artes.
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Conferência apresentada no II Seminário Arte e Pensamento A Reinvenção do Nordeste, realização SESC-CE, em Juazeiro do Norte

Bibliografia

Basualdo, Carlos, Tropicália uma revolução na cultura brasileira, São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
Freire, Marcelino, Contos Negreiros, Rio de Janeiro: Record, 2005.
Jacques, Paola Berenstein, Estética da Ginga, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
Salomão, Waly, Hélio Oiticica, qual é o Parangolé?, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

Ney Ferraz Paiva
Salgueiro-PE novembro 2010

Um comentário:

  1. Ney, peço-te licença para partilhar um trecho no facebook, com link para cá.

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