o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sábado, 20 de junho de 2009










Pensamento e Intensidade na Poesia de Paulo Plínio Abreu
Por Nilson Oliveira

Sim! O antigo permanece! Prospera, amadurece.[i]
Hölderlin

I. O retorno à cena

Três décadas após a primeira edição de POESIAS, o poeta volta à cena. Sem dúvida, um acontecimento expressivo nas dobras do espaço literário. A poesia de Paulo Plínio é de um vigor - tal como todo grande projeto de escritura - que confronta o tempo, rivalizando ombro a ombro com o presente, lançando questões [imagens inusitadas] que, pela potência intempestiva, remetem o pensamento literário para as bandas do por vir. Seus poemas nos trazem uma experiência de desterritorialização, ou seja, de um deslocamento do estabelecido, do que está amarrado a uma cultura do mesmo, pois há na escrita de Paulo Plínio Abreu um sinuoso jogo movediço, no qual as imagens deslizam pela superfície do não-familiar. É sempre uma cena de estranhamento ou de novas imagens. Com Ele não há planos fixos, mas Voos, ventos, ondas: “O vento vem do mar e dos navios que passam / carregados de vento e sal para as Antilhas” [Ode na praia do leme]. A poesia de Paulo Plínio é sempre um êxodo, um fluxo, operando por “linhas de fuga”, o que consiste em pensar de outra maneira, erigindo uma outra paisagem para a cena literária, pensando o não pensado do pensamento. Corte finíssimo, abertura, passagem de ar, pensamento que é pura duração: “Nele a cada instante, o movimento já não é, mas isso porque, precisamente, ele não se compõe de instantes, porque os instantes são apenas as suas paradas reais ou virtuais, seu produto é a sombra de seu produto. O ser não se compõe com presentes. De outra maneira, portanto, o produto é o que não é e o movimento é o que já era. Em um passo de Aquiles, os instantes e os pontos não são segmentados” [ii]. Essa é a cadência da Poesia de Paulo Plínio: matéria e acontecimento, feixe aberto no horizonte, já não há presente ou passado, apenas duração. Nela o poeta descortina o seu próprio conceito de tempo, e com isso, sedimenta sua obra: “Nau sem porto, /Barco feito de mito, construído no espaço /com a matéria das nuvens”. Nessa direção mergulha ao fundo de cada empreendimento, contudo deslocando-se para um ‘sem fundo’, que se abre - continuamente - noutras experimentações do fazer literário: “As palavras foram na infância os seus brinquedos / e não compreendeu mais tarde a sua própria linguagem / cheia de estranhos sinais; o coração adolescente / dormiu nas estrelas em obscuras viagens [O Mistificador]. Trata-se, sem dúvida, da infância desenhada como a imagem que se transforma constantemente - o devir criança do pensamento, alheio às regras da lógica, produzindo uma palavra que não cede e a um só tempo não se deixa nomear. Paulo Plínio foi uma singularidade. Quanto à sua poética, não se deixou alinhar pelas tendências predominantes de sua época, estando desde sempre ‘fora do lugar’, navegando, tal como nos diz Francisco Paulo Mendes: pelas “Iluminações, para qual a poesia é o reflexo ou lampejo de uma outra realidade, oculta, transcendente”[iii]. Há na poesia de Paulo Plínio uma miríade de encontros, uma verdadeira nutrição, expressa em influências determinantes [Rimbaud/ Mallarmé/ Surrealismo/ Pessoa], que remetem o poeta para um círculo mais exigente. Esse é o seu investimento, o combate na direção dos encontros, mas também, dos deslocamentos, estando desde sempre em movimento, sendo sempre outro. A sua escrita age silenciosa e encontra no sujeito a decisão de não-ser; que consiste no desejo nômade de convocar o ausente, para tornar real sua presença - fora do sujeito e do mundo - na sua realidade de escritura. Seu lugar é o não-lugar. Esse é seu combate, sua matéria de fim e de começo, ofício de interminável busca.

II. Rilke, Plínio e o Plano de imanência

Mas há também Rilke, e é com ele que Plínio trava sua experiência decisiva, mergulho intenso, encontro, deflagração no sentido de uma produção, pois há um efeito rilkeano na escrita de Paulo Plínio: “Um dos aspectos da poética de Paulo Plínio a exigir atenção é o da sua temática. São numerosos os temas: o da viagem, o de uma região maravilhosa, o do amor e da amada, o da infância, o do anjo, o da pureza, etc. E dominado todos esses o tema da Morte. Como se verifica, ainda uma temática rilkeana” [iv]. Efeito que nada tem a ver com fazer parecido, isto é, de repetir o que o poeta disse, mas de produzir semelhança, arrastando “o texto ora para as margens, ora para o meio, ora para o fora ou o dentro, em uma escrita-experimento, sem dualidades, todavia, com o rigor necessário próprio à interpretação como musicalidade cuja potência criativa exige uma espécie de ascese do texto [v]. O tema da morte torna-se um ponto de interação entre Plínio e Rilke, ambos navegando no ‘mesmo’ plano de imanência, cada um a sua maneira, interpretando, produzindo multiplicidades. Criando, a partir do tema da morte, suas próprias noções: “São retratos mentais noéticos, maquínicos”. Neles a morte é pensada como algo intimamente ligado à vida: “Tu que veste a morte com o que cai do coração dos vivos”, nos diz Paulo Plínio; ou “o morrer que seja verdadeiramente parte desta vida”, afirma Rilke. Tanto em um caso com em outro é a morte acontecendo como algo que é ‘nosso’ mas que não nos cabe controlar. Como não pensar em Hölderlin: “Viver é uma morte, e a morte também é uma vida”. Por certo Hölderlin foi a referência silenciosa que frequentou as leituras de Rilke e Paulo Plínio. Poderoso encontro tríplice, bela experiência de atravessamento, portanto de Afecção, [conceito peculiar a Espinosa], “efeito de um corpo sobre o outro”, e também: “ efeito sobre minha própria produção, prazer ou dor, alegria ou tristeza”. As afecções “São passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas” [vi] . O poder de ser afetado, em Paulo Plínio Abreu, desdobra-se então na potência que engendra uma prática de escrita, o que implica num fazer desejoso que faz da escrita um instrumento de ação, verdadeira máquina nômade, sempre aberta, sempre por fazer-se, que combate pela criação de uma outra paisagem para a literatura: “ um mundo pressentido e oculto” [viagem ao sobrenatural]; mundo fora do mundo, realidade que se concretiza por esse fora: “é na realização desse fora que começa a criação literária”[vii]. O Fora é uma tempestade de forças não-estratificadas, informes, um espaço anterior, no qual as coisas não são representativas, mas singulares, como uma linguagem outra, fora da usual, fruto de uma experiência da escrita. Um Exercício de Estilo como faz Raymond Queneau a parti da fórmula: “É escrevendo que se vira escrevedor”. Nessa esfera, escrever é lapidar uma experiência outra. Trabalho de artesão, martelando na direção do por vir / do indeterminado da escrita. A literatura é uma saúde. A saúde como literatura consiste em “inventar um povo que falta”. Fazer-se estrangeiro na sua própria língua, “criando um devir outro da língua”, tal como fez Manoel de Barros: uma minoração da língua maior. Já não se trata mais simplesmente de fazer o texto, mas criar outra sintaxe, algo que não parte do preexistente, que inventa sua própria lógica de uso das palavras, elevando a linguagem a seu limite, valendo-se de “algumas palavras que ainda não tenham idioma” [viii]. Com efeito, lançando a escrita para zonas de inventividade, para um espaço de criação. Criar é, nesse sentido, produzir forças. Como a força dos Poemas de Paulo Plínio, uma verdadeira tempestade de sons, traços, imagens, um bloco de multiplicidades em que o estilo denota uma potência e a um só tempo nos revela a criatividade do seu fazer artístico.

III. Atualidade de Paulo Plínio Abreu

Dentro do panorama literário de nossa época, a poesia de Paulo Plínio Abreu ocupa um lugar singular. É difícil classificá-lo entre as expressões do presente, sempre tão associadas a um fazer territorializado no qual a literatura é a narrativa de uma historinha regional. Afora algumas obras – Rio Silêncio; Nave do Nada; Infância Vegetal: belas experimentações na direção do Espaço literário – a imagem é fatigante: é a escrita como a expressão da unidade, de uma vontade de preservação, isso e suas variações em torno do tema da identidade. Contudo "O primado da identidade, seja qual for a maneira pela qual esta é concebida, define o mundo da representação. Mas o pensamento moderno nasce da falência da representação, assim como da perda das identidades” [ix]. O acontecimento passa alhures, em outras cenas, na velocidade das correntes marítimas, quase imperceptíveis, mas sempre indo, sempre em movimento.
Tal como em Paulo Plínio, a poesia de Max Martins, Mário Faustino e Cauby Cruz, forma um abecedário de resistência pela Alta Literatura [valendo-se do conceito de Leyla Perrone-Moisés]. Resistência enquanto potência ativa, como criação, no âmbito da obra literária. Há seguramente um caráter inovador na poesia de Paulo Plínio, uma abertura evidente que cintila na esfera das palavras. Nela a poesia dobra-se em fluxos de intensidades: “a luta do poeta não é / com o anjo,/ mas com o verbo”. A sua postura é singular, está deliberadamente fora dos clichês e dos axiomas da identidade: “As chaves do mundo / para sempre perdidas” [Fragmentos]. A poesia de Paulo Plínio transcorre por fora de toda significação, em voos rumo a uma direção própria: “Nau sem porto”/as águas te seduzem”. Escrita líquida: “Nave do nada feita e quase ave / desfeita em voo puro”. Essa escrita nada tem a ver com sistemas ou arborescências, pois acontece exterior à gramática da representação, navegando pelas margens, numa viagem em que não existe início ou fim, mas tão somente vontade de novo, num vigoroso processo de trabalho pela re-invenção da matéria escrita. Paulo Plínio combate em favor da palavra, descortinando em cada frase, fragmento, poema, imagens que compõe uma outra fisionomia; é um extraordinário caso de ruptura. Sua jornada acontece desviando-se dos pontos e fronteiras, avançando pelo meio “do mar, do deserto, de um país estrangeiro”, gerando afectos, trocas, devires. E assim, pelo meio, Paulo Plínio atravessa a superfície do contemporâneo expressando sua vontade de potência, sua força de criação.

16/6/2009

[i] Hölderlin, Elegias, Lisboa, Assírio e Alvim, 1992, p.69
[ii] Deleuze, Gilles. Bergsonismo, São Paulo: Ed. 34, 1999, P. 95-123.
[iii] MENDES, Francisco Paulo. Prefacio - Poesia: Paulo Plínio Abreu. Belém: Ufpa, 1978, p.X
[iv] id, ibd, p. XII
[v] Lins, Daniel. Expressão: Espinosa em Deleuze..., São Paulo, Forense Universitária, 2007, p.4
[vi] DELEUZE, Gilles. Critica e Clínica, São Paulo, Ed, 34, 1997, p. 157.
[vii] Blanchot, Maurice: A parte do Fogo, São Paulo, Rocco, 1997, p. 305.
[viii] Barros, Manoel, Livro das Ignoranças, São Paulo, Rocco, 1994, p. 21.
[ix] Deleuze, Gilles, Diferença Repetição, Graal, Rio de Janeiro, 1988, p, 20 a 61.

Imagem: Louise Bourgeois

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