Pensamento e Intensidade na Poesia de Paulo Plínio Abreu
Por
Nilson Oliveira
Hölderlin
I. O retorno à cena
Três décadas após a primeira edição de POESIAS, o poeta volta à cena.
Sem dúvida, um acontecimento expressivo nas dobras do espaço literário. A
poesia de Paulo Plínio é de um vigor - tal como todo grande projeto de
escritura - que confronta o tempo, rivalizando ombro a ombro com o presente,
lançando questões [imagens inusitadas] que, pela potência intempestiva, remetem
o pensamento literário para as bandas do por vir. Seus poemas nos trazem uma
experiência de desterritorialização, ou seja, de um deslocamento do
estabelecido, do que está amarrado a uma cultura do mesmo, pois há na escrita
de Paulo Plínio Abreu um sinuoso jogo movediço, no qual as imagens deslizam
pela superfície do não-familiar. É sempre uma cena de estranhamento ou de novas
imagens. Com Ele não há planos fixos, mas Voos, ventos, ondas: “O vento vem do
mar e dos navios que passam / carregados de vento e sal para as Antilhas” [Ode
na praia do leme]. A poesia de Paulo Plínio é sempre um êxodo, um fluxo,
operando por “linhas de fuga”, o que consiste em pensar de outra maneira,
erigindo uma outra paisagem para a cena literária, pensando o não pensado do
pensamento. Corte finíssimo, abertura, passagem de ar, pensamento que é pura
duração: “Nele a cada instante, o movimento já não é, mas isso porque,
precisamente, ele não se compõe de instantes, porque os instantes são apenas as
suas paradas reais ou virtuais, seu produto é a sombra de seu produto. O ser
não se compõe com presentes. De outra maneira, portanto, o produto é o que não
é e o movimento é o que já era. Em um passo de Aquiles, os instantes e os
pontos não são segmentados” [ii]. Essa é a
cadência da Poesia de Paulo Plínio: matéria e acontecimento, feixe aberto no
horizonte, já não há presente ou passado, apenas duração. Nela o poeta
descortina o seu próprio conceito de tempo, e com isso, sedimenta sua obra:
“Nau sem porto, /Barco feito de mito, construído no espaço /com a matéria das
nuvens”. Nessa direção mergulha ao fundo de cada empreendimento, contudo
deslocando-se para um ‘sem fundo’, que se abre - continuamente - noutras
experimentações do fazer literário: “As palavras foram na infância os seus
brinquedos / e não compreendeu mais tarde a sua própria linguagem / cheia de
estranhos sinais; o coração adolescente / dormiu nas estrelas em obscuras
viagens [O Mistificador]. Trata-se, sem dúvida, da infância desenhada como a
imagem que se transforma constantemente - o devir criança do pensamento, alheio
às regras da lógica, produzindo uma palavra que não cede e a um só tempo não se
deixa nomear. Paulo Plínio foi uma singularidade. Quanto à sua poética, não se
deixou alinhar pelas tendências predominantes de sua época, estando desde
sempre ‘fora do lugar’, navegando, tal como nos diz Francisco Paulo Mendes:
pelas “Iluminações, para qual a poesia é o reflexo ou lampejo de uma outra
realidade, oculta, transcendente”[iii].
Há na poesia de Paulo Plínio uma miríade de encontros, uma verdadeira nutrição,
expressa em influências determinantes [Rimbaud/ Mallarmé/ Surrealismo/ Pessoa],
que remetem o poeta para um círculo mais exigente. Esse é o seu investimento, o
combate na direção dos encontros, mas também, dos deslocamentos, estando desde
sempre em movimento, sendo sempre outro. A sua escrita age silenciosa e encontra
no sujeito a decisão de não-ser; que consiste no desejo nômade de convocar o
ausente, para tornar real sua presença - fora do sujeito e do mundo - na sua
realidade de escritura. Seu lugar é o não-lugar. Esse é seu combate, sua
matéria de fim e de começo, ofício de interminável busca.
II. Rilke, Plínio e o Plano de imanência
Mas há também Rilke, e é com ele que Plínio trava sua experiência
decisiva, mergulho intenso, encontro, deflagração no sentido de uma produção,
pois há um efeito rilkeano na escrita de Paulo Plínio: “Um dos aspectos da
poética de Paulo Plínio a exigir atenção é o da sua temática. São numerosos os
temas: o da viagem, o de uma região maravilhosa, o do amor e da amada, o da
infância, o do anjo, o da pureza, etc. E dominado todos esses o tema da Morte.
Como se verifica, ainda uma temática rilkeana” [iv]. Efeito que
nada tem a ver com fazer parecido, isto é, de repetir o que o poeta disse, mas
de produzir semelhança, arrastando “o texto ora para as margens, ora para o meio,
ora para o fora ou o dentro, em uma escrita-experimento, sem dualidades,
todavia, com o rigor necessário próprio à interpretação como musicalidade cuja
potência criativa exige uma espécie de ascese do texto [v]. O tema da
morte torna-se um ponto de interação entre Plínio e Rilke, ambos navegando no
‘mesmo’ plano de imanência, cada um a sua maneira, interpretando, produzindo
multiplicidades. Criando, a partir do tema da morte, suas próprias noções: “São
retratos mentais noéticos, maquínicos”. Neles a morte é pensada como algo
intimamente ligado à vida: “Tu que veste a morte com o que cai do coração dos
vivos”, nos diz Paulo Plínio; ou “o morrer que seja verdadeiramente parte desta
vida”, afirma Rilke. Tanto em um caso com em outro é a morte acontecendo como
algo que é ‘nosso’ mas que não nos cabe controlar. Como não pensar em
Hölderlin: “Viver é uma morte, e a morte também é uma vida”. Por certo
Hölderlin foi a referência silenciosa que frequentou as leituras de Rilke e
Paulo Plínio. Poderoso encontro tríplice, bela experiência de atravessamento,
portanto de Afecção, [conceito peculiar a Espinosa], “efeito de um corpo sobre
o outro”, e também: “ efeito sobre minha própria produção, prazer ou dor,
alegria ou tristeza”. As afecções “São passagens, devires, ascensões e quedas,
variações contínuas” [vi] . O poder
de ser afetado, em Paulo Plínio Abreu, desdobra-se então na potência que
engendra uma prática de escrita, o que implica num fazer desejoso que faz da
escrita um instrumento de ação, verdadeira máquina nômade, sempre aberta,
sempre por fazer-se, que combate pela criação de uma outra paisagem para a
literatura: “ um mundo pressentido e oculto” [viagem ao sobrenatural]; mundo
fora do mundo, realidade que se concretiza por esse fora: “é na realização
desse fora que começa a criação literária”[vii].
O Fora é uma tempestade de forças não-estratificadas, informes, um espaço
anterior, no qual as coisas não são representativas, mas singulares, como uma
linguagem outra, fora da usual, fruto de uma experiência da escrita. Um
Exercício de Estilo como faz Raymond Queneau a parti da fórmula: “É escrevendo
que se vira escrevedor”. Nessa esfera, escrever é lapidar uma experiência
outra. Trabalho de artesão, martelando na direção do por vir / do indeterminado
da escrita. A literatura é uma saúde. A saúde como literatura consiste em
“inventar um povo que falta”. Fazer-se estrangeiro na sua própria língua,
“criando um devir outro da língua”, tal como fez Manoel de Barros: uma
minoração da língua maior. Já não se trata mais simplesmente de fazer o texto,
mas criar outra sintaxe, algo que não parte do preexistente, que inventa sua
própria lógica de uso das palavras, elevando a linguagem a seu limite,
valendo-se de “algumas palavras que ainda não tenham idioma” [viii].
Com efeito, lançando a escrita para zonas de inventividade, para um espaço de
criação. Criar é, nesse sentido, produzir forças. Como a força dos Poemas de
Paulo Plínio, uma verdadeira tempestade de sons, traços, imagens, um bloco de
multiplicidades em que o estilo denota uma potência e a um só tempo nos revela
a criatividade do seu fazer artístico.
III. Atualidade de Paulo Plínio Abreu
Dentro do panorama literário de nossa época, a poesia de Paulo Plínio Abreu ocupa um lugar singular. É difícil classificá-lo entre as expressões do presente, sempre tão associadas a um fazer territorializado no qual a literatura é a narrativa de uma historinha regional. Afora algumas obras – Rio Silêncio; Nave do Nada; Infância Vegetal: belas experimentações na direção do Espaço literário – a imagem é fatigante: é a escrita como a expressão da unidade, de uma vontade de preservação, isso e suas variações em torno do tema da identidade. Contudo "O primado da identidade, seja qual for a maneira pela qual esta é concebida, define o mundo da representação. Mas o pensamento moderno nasce da falência da representação, assim como da perda das identidades” [ix]. O acontecimento passa alhures, em outras cenas, na velocidade das correntes marítimas, quase imperceptíveis, mas sempre indo, sempre em movimento.
Tal como em Paulo Plínio, a poesia de Max Martins, Mário Faustino e
Cauby Cruz, forma um abecedário de resistência pela Alta Literatura [valendo-se
do conceito de Leyla Perrone-Moisés]. Resistência enquanto potência ativa, como
criação, no âmbito da obra literária. Há seguramente um caráter inovador na
poesia de Paulo Plínio, uma abertura evidente que cintila na esfera das
palavras. Nela a poesia dobra-se em fluxos de intensidades: “a luta do poeta
não é / com o anjo,/ mas com o verbo”. A sua postura é singular, está
deliberadamente fora dos clichês e dos axiomas da identidade: “As chaves do
mundo / para sempre perdidas” [Fragmentos]. A poesia de Paulo Plínio transcorre
por fora de toda significação, em voos rumo a uma direção própria: “Nau sem
porto”/as águas te seduzem”. Escrita líquida: “Nave do nada feita e quase ave /
desfeita em voo puro”. Essa escrita nada tem a ver com sistemas ou
arborescências, pois acontece exterior à gramática da representação, navegando
pelas margens, numa viagem em que não existe início ou fim, mas tão somente
vontade de novo, num vigoroso processo de trabalho pela re-invenção da matéria
escrita. Paulo Plínio combate em favor da palavra, descortinando em cada frase,
fragmento, poema, imagens que compõe uma outra fisionomia; é um extraordinário
caso de ruptura. Sua jornada acontece desviando-se dos pontos e fronteiras,
avançando pelo meio “do mar, do deserto, de um país estrangeiro”, gerando
afectos, trocas, devires. E assim, pelo meio, Paulo Plínio atravessa a
superfície do contemporâneo expressando sua vontade de potência, sua força de
criação.
16/6/2009
[ii] Deleuze, Gilles.
Bergsonismo, São Paulo: Ed. 34, 1999, P. 95-123.
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