o que se tornou o amor, para que um homem e uma
mulher
saiam dele tão desmunidos, lamentáveis e enfermos,
e ajam e reajam tão mal, tanto no começo quanto no
fim, numa
sociedade corrompida?
Gilles Deleuze, A imagem-tempo
Tiro no Coração, de
Mikal Gilmore, não é nem de longe uma viagem em busca do tempo perdido – pelo
estonteante fato de que o tempo para ele e sua família, o tempo que os uniu
também os destroçou. E o que resulta de lembrança de tudo isso esbarra na pele
de Mikal e seu irmão Frank Jr. como um insulto. Para eles – os sobreviventes,
relembrar não os salva de nada. A dor é o único legado.
O livro conta a
história da família como de uma terrível decepção. A família Gilmore (Frank, o
pai, Bessie, a mãe, e os filhos Krank Jr., Gary, Gaylen e Mikal) no transcurso
de 50 anos, mas que pode ser o de qualquer família hoje, uma vez que o enredo
mistura os elementos banais da vida moderna e seus grandes buracos negros em
qualquer tempo.
Mikal descreve a
superfície sempre maquiada de certa família norte-americana, de origem nômade e
mórmon, e de seus ritos sociais e seus subterrâneos; é a eles que Mikal desce,
aos lugares tenebrosos das faces desmascaradas, e daí se põe a falar, ou melhor,
tenta falar; ainda que conheça bem a história, esteve preso dentro dela, o que
se escuta de verdade são gritos e balbucios; ele não tem como responder ao
grande enigma proposto: o que torna um homem tão amargo a ponto de não servir
para ser pai?
Frank Gilmore não se
dava a mínima. Tinha as suas próprias prioridades. Seus segredos e temores
sombrios. E tinha o alcoolismo Não podia conciliar seu mundo de trevas com uma
família. Um mundo do qual ele não teve como escapar e acabou trazendo a todos
para ele. Como imaginar um ambiente familiar onde depoimento como o que segue
seja possível: “Eu não gostaria de ser criança de novo. Por nada neste mundo.
Uma vez basta.” E ter que ficar aí, quando ficar é a última coisa a fazer. É
então que se descobre que entre as múltiplas formas eficientes de se excluir o
outro da sua vida, é que ambos fiquem juntos. “E para onde eu iria? Quem mais
ia me querer? Fiquei porque não havia outra coisa a fazer.” Para a mulher,
quais os vetores de saída?
Bessie Gilmore tinha
bem a noção de seu emparedamento. Além de Frank, sua outra parte no mundo era a
casa dos pais – uma casa da qual ela sempre tentou escapar desesperadamente. Do
fanatismo rigoroso de um ambiente mórmon rural e de suas esperanças frustradas.
Por isso mesmo tinha que reagir ao Frank, conviver com a calmaria e os
sobressaltos do território que ele dominava e aí se por à espreita, defender a
si e a seus filhos; um combate que resultava em perda diária, ano após ano,
infinitamente maior do que ela podia suportar. Enquanto Frank viveu, ele fez o
serviço devastador de tornar a todos bichos. Podia-se ter uma casa, um carro,
comida e roupas. Podia-se até mesmo ir à escola e à igreja, mas era, ainda
assim, uma vida de bichos. Por dentro da pele e no coração.
E foi bem aí que todos
foram alvejados, no coração. Um tiro certeiro e aniquilador. Que fez de Gary
Gilmore um nome para sempre ligado ao crime na América. Dele Mikal diz: “Sou
irmão de um homem que matou homens inocentes”. A astúcia criminosa de Gary
tornou pública sua tentativa bizarra de não escapar do que se é. Preso por
matar dois jovens mórmons em junho de 1976, Gary foi condenado à morte. E aí,
no espaço mínimo de uma cela, ele não se deixou acuar. Fora preparado a vida
inteira para o papel.
Mikal foca os
aspectos privados que poderiam ser as origens do pesadelo. Conta sua história
no lugar de outra, não a conta para aplacar os seus nem os nossos males, apenas
responde por ela e aí se mostra e desaparece. Ilustra seu almejado vazio com as
fotos de todos os fantasmas, das casas mal assombradas e dos mortos vivos. Num
nível, a palavra fatal, noutro, a imagem inumana. Tudo resumido ficam expostas
as maneiras de morrer a cada dia, ainda válidas para estes tempos de pesadelos.
Ney Ferraz Paiva
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