Para
Um Retrato de Cauby Cruz Considerações Sobre
Um Retrato
Este
trabalho retoma a poesia de Cauby Cruz, atravessa-a, faz ecoá-la – mas também
lida com o embargo e o silêncio em torno dela. O próprio poeta surpreendido e
desconfortável na sua mudez. Ofuscado pelos notáveis concorrentes, tão opostos
a seu pequeno fracasso. Engessado em seu único livro, abriu-se um programa
póstumo para ele. Em todo caso, procuro uma fala outra que daí se desprenda, e
consiga tecer (ou destecer) o idioma de dias ainda tomados por tantas derivas
artísticas, os anos 1940 e meados de 1950 em Belém. Um período notável
prefigurativo de grandes obras literárias: Chove nos Campos de Cachoeira,
de Dalcídio Jurandir, 1941, A Linha Imaginária, de Ruy Barata, 1951, O
Estranho, de Max Martins, 1952, O Homem e Sua Hora, de Mário Faustino,
1955. Tempo de companheirismos e aproximações, mas também de distanciamentos e
rivalidades literárias entre jovens colegas – Ruy Barata, Max Martins, Jurandir
Bezerra, Mário Faustino, Benedito Nunes, Alonso Rocha, Cauby Cruz. O liame de
uma desconexão. Este o tênue mote deste trabalho, que pretende fazer um perfil
biográfico com pitadas de ensaio, no qual se procura questionar as relações
tradicionais entre poesia, imagem, fotografia, a partir dos termos críticos
presentes no livro Filosofia da Caixa Preta – Ensaios Para uma Futura
Filosofia da Fotografia, de Vilém Flusser. Uma espécie de reaparição no espaço
de renovadas questões, como se algo se devolvesse, se mostrasse de volta no
processo de aproximação e acolhimento entre literatura e fotografia e dos seus
imprevisíveis desdobramentos. Um aparte talvez disperso no burburinho – um
desvio no desvio, um desnível de fluidez do acontecimento. Mas que
acontecimento? Tornar-se alguém que escreve... A paixão de juventude pela
poesia... o quanto essa respiração amigável tende a expelir, somados os anos, o
estático, estreito, asfixiante – para que se possa ir longe. Mas para Cauby, o
que resultou disso, a única aparência que lhe restou, é a do escritor que passa
toda uma vida sem escrever. Então não seria melhor dizer que o que daí se
desprende são expectativas e ilusões deslocadas, recambiadas, transferidas? A
passagem dos anos 1940-1950 e seus monstros legendários – o pós-guerra, as
grandes incertezas existenciais, a crise aguda da modernidade. Há por aí
indícios. Rastros. Sortilégios. Todo retorno é sempre um ponto de partida. O
presente e o passado nos povoam. Ouçamos as vozes – o que elas não temem,
falam, passam de suas cartas terríveis, suas fotografias perigosas... É com
elas que pretendo compor um mosaico, sempre díspar, do ambiente simples e
rudimentar, árido e ermo; dos tons de uma cultura e de uma época; e do aspecto
das sombras que Oswaldo Goeldi extraiu da mesma paisagem onde Cauby Cruz viveu
e pretendeu desenvolver seu projeto de escrita, e que inapelavelmente sucumbiu.
Entre retomada e inacabamento. A obra sem trajetória e sem cronologia, corroída
no tempo e no espaço do discurso, e que se coloca a falar de outro modo, a
mostrar-se sem se manter o mesmo: viajante incondicional, boêmio, jogador, que
escapou cada vez mais de ser poeta. Um contemporâneo que não contemporiza, não
apazigua, não é entrega – é resistência, sobretudo aos modelos disponíveis de
interpretação. Rompe com a acumulação de valores instrumentais e almeja outra
memória – a do irracional, corporal e primitivo.
Ney Ferraz Paiva
* Projeto contemplado na 13ª edição da Bolsa de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação Artística do Instituto de Artes do Pará – 2014.