IMPRESSÕES
O que se encontra no
começo histórico das coisas
não é
a identidade ainda preservada da origem
– é a discórdia entre
as coisas, é o disparate.
A história ensina
também a rir das solenidades da origem.
MICHEL FOUCAULT
“Nietzsche, a genealogia, a história”
A voz é, no início, surda, pouco audível,
desconfiada. Ela clareia e torna-se nítida quando ele se sente seguro. Isto é
apenas um detalhe, ínfimo, entre centenas de outros. No entanto, nunca mais
ouvi ninguém dizer “alô?” daquele jeito, ao mesmo tempo amedrontado, atento, à
espreita. Como se, no segundo seguinte, tudo fosse se tornar possível, uma
guerra ou um riso, uma ameaça, uma interrogação, alguma armadilha ou um embate.
Foucault, dizendo “alô”, estava
alerta. Pronto para tudo, lutar e esquivar-se, brincar ou brigar. Ao que me
parece, tinha esta atitude com relação a tudo. Em todas as situações, ou quase,
ele parecia sobreaviso. Não na defensiva, nada circunspeto, prudente ou
reservado. Antes, espreitando, vigilante, pronto para qualquer eventualidade.
Penso na famosa frase de Diógenes o Cínico: “O que a filosófica me ensinou?
Estar pronto para qualquer eventualidade”. Era isto, sim, a eventualidade. O
sentimento do aleatório. A acuidade do guerreiro: quem vem lá? amigo? inimigo?
quem quer o que de mim? Mas, dissimuladamente, em voz baixa, sufocada, quase
terna: “Alô?”.
Do lado oposto, na outra ponta do
espectro, o riso. Os risos, aliás. Pois, deles, Foucault tinha uma palheta
muito variada. De conveniência: para se despedir, para acolher, para agradecer,
um riso mais despojado, não exatamente mecânico, mas pouco vivo. De mais despojado, não exatamente mecânico,
mas pouco vivo. De zombaria: quando um crítico lhe desagradava, se um
adversário o tivesse ferido, aparecia um riso sibilante, mais ou menos
metálico. Diante do absurdo, da estupidez, da idiotice, da ignorância crassa,
era um riso largo, sonoro, ruidoso. Havia também aquele outro tipo de riso que
parecia submergi-lo quando uma palavra, uma lembrança, um gesto o faziam
mergulhar de novo, subitamente, mesmo que por um instante, no universo da conquista
e dos encontros ao acaso.
Eu
só frequentei Foucault por alguns meses, o que é bem pouco. Isso foi o bastante
para compreender que havia nele algo inatingível. Mas será que se trata de
“compreender”? Não, se considerarmos “compreender” uma operação do entendimento
que, ao termo de um processo racional, tem um resultado argumentado como
conclusão. Reúno, aqui, apenas algumas impressões, vendo claramente que são
antigas e fugidias. Isto não parece um motivo suficiente para afastá-las, menos
ainda para não confiar nelas.
Creio, ao contrário, que convém
reabilitar as impressões. O que assim nomeamos, na falta de algo melhor,
designa, com efeito, algo que não se
encontra, finalmente em nenhum outro lugar. E que não é necessariamente
acessório nem negligenciável. Tom de voz, brilho do olhar, postura do corpo,
modo de se movimentar ou de se calar, ou de rir, ou de se vestir evocam,
amiúde, alguma coisa completamente diferente de um detalhe. Ou melhor: quem
então decidiu, desde quando, e como, aquilo que é detalhe e aquilo que não é?
Apagar os traços
Dentre as impressões que me restam
na memória, faz trinta anos, há Foucault de negro, numa manhã de inverno, na
entrada da Biblioteca Nacional, um pouco esbaforido e inflamado, acabando de
descer da bicicleta, falando rápido, antes de imergir na jornada dos livros.
Foi talvez – eu não sei mais – a primeira vez que o vi. Eu estava evidentemente
impressionado por encontrar aquele que alguns de nós estávamos lendo com
paixão, há muitos anos. Nós o tínhamos apelidado “a cantora careca”, com uma
ironia afetuosa e admirativa. E tendo vindo de bicicleta, isto tinha me
impressionado. Um sentido do corpo, uma atenção cuidadosa com o esforço, com o
músculo, com a esbeltez, mas sem ostentação, como uma brincadeira, uma maneira
de passear, um modo também de flanar pela cidade. A impressão de que ele era
livre sempre.
Impressão confirmada, com ou sem
razão, por sua aparente disponibilidade. Há pessoas que nunca têm o horário de
almoço livre, antes do próximo trimestre, e, às vezes, com um pouco de sorte,
só o tempo para o café, mas apenas no mês seguinte. Eu ficava muito surpreso
que Foucault, solicitado, célebre, já mundialmente conhecido, causasse sempre a
sensação, quando desejávamos encontra-lo, de não ter nada para fazer no dia
seguinte. Parecia deixar seu interlocutor escolher o dia e a hora, como se ele
tivesse todo o tempo disponível, e nada mais para fazer. Era algo simulado, mas
não sem elegância.
Assim, podíamos almoçar. Notadamente
no Mercure Galant, atrás da
Biblioteca Nacional da rua Richelieu, restaurante que hoje não existe mais.
Este lugar parecia corresponder a Foucault. Havia aí, com efeito, um curioso
misto de decoração clássica e de universo insólito. O que confirma sua reação
às questões que eu lhe colocava, nesta época, nestes lugares. O que me
interessava: sua relação com Kant. Ele havia traduzido Antropologia do ponto de vista pragmático. Este trabalho tinha
sido, ao lado da História da loucura,
sua tese complementar. E depois, aparentemente, mais nada. Por quê? Como? Não
havia alguma coisa, apesar de tudo que perdurasse em segredo? Visivelmente,
essas interrogações irritavam muito rapidamente. Uma resposta cortante caía:
“Neste momento, eu me interesso pelas portas das retretes nas casernas alemães
do século XVIII”. Clássico, sim, e, ao mesmo tempo, defasado. Modernidade
atravessada por misturas.
Mesma impressão no apartamento de Foucault, no
último andar de um prédio moderno, não longe da estação de metrô Vaugirard. A primeira vez que fui lá,
tudo me pareceu curiosamente moderno. Até me surpreendi, não sei porque, que a
cozinha tivesse um micro-ondas e que Foucault, com uma camisa de gola rolê
branca, preparasse, ele mesmo, um prato de frango ligeiramente cremoso. E
depois ele me explicou, rindo, como a parede do fundo, que parecia uma estante
de livros fixa, deslizava, para comunicar o seu apartamento com outro, onde
morava seu companheiro. Conforme os visitantes, esta divisória ficava fechada
ou aberta.
Na decoração contemporânea, quase design, deste apartamento luminoso,
subsistia então, com esta divisória de correr, um quê de uma sombra antiga.
Brincadeira de piratas, esconderijo, armadilha, censura. Não é uma piscadela
para a história antiga das portas ocultas e das passagens secretas que está
aqui em questão. Também não se trata do cuidado que Foucault tinha em só viver
abertamente de maneira seletiva. É algo muito difícil de entender, mas
interessante, talvez.
Parece que em sua casa existem, um
pouco por toda parte, gavetas secretas, fundos por detrás de outros,
disfarçados. Não que sua obra seja esotérica, evidentemente. Fora de questão
inscrevê-la na linhagem dos ocultistas e outros autores criptônimos. Porém, as
relações de um livro com outro, por exemplo, geralmente se ocultam. As
continuidades são marcadas. Na vida do homem, parece-me que o mesmo acontece.
Se Foucault tem tantas faces que, frequentemente, não se encaixam, ou tão mal,
é também porque ele queria apagar os traços, organizar lacunas, deixar
silêncios. É também uma maneira de ser livre.
E havia muita liberdade em Foucault,
de modo sempre singular. Fiquei surpreso com as posturas, nas vezes em que o
encontrei em sua casa. Ao falar, ele tinha maneiras não fixas, pouco comuns, de
segurar a cabeça com uma só mão, ou de cruzar uma perna, ou ainda de deixar
pender um braço. Não vejo aí, simplesmente, sinais de descontração, atitudes
descontraídas de alguém que está em casa e que pode, falando, sentar-se sobre a
perna ou meio que se atirar no sofá.
Certamente isto acontecia. Mas
também outra coisa. Como um gestual do corpo codificado de modo diferente do
que nas convenções que regem também a descontração. Uma maneira livre de se
portar, diferente, prestes a perturbar a ordem das posturas ditas normais do
corpo em sociedade. Talvez fosse necessário aproximar isto de tudo aquilo que
Foucault estudou sobre o adestramento dos corpos na sociedade disciplinar, em
que se trata justamente de restringir ou de anular a parte do movimento
corporal livre e espontâneo.
O que é curioso, é que, até onde eu
me lembre, essas posturas atípicas, essas maneiras de se portar diferentes,
nunca davam a impressão de um desleixo qualquer. Foucault podia ser
desengonçado, nunca estava relaxado nem desleixado. Porque, parece-me, havia
nele como que uma vigilância sempre alerta, algum movimento sempre organizado
uma retirada, uma distância. Impossível imaginá-lo desatento, impossível também
imaginá-lo ingenuamente simples.
Febre e ocupação
Alguma coisa nele devia permanecer
indefinidamente inacessível. É assim, em todo caso, que eu o imagino. Como se
ele buscasse permanentemente cavar uma distância em relação às pessoas. Numa
primeira abordagem, sua extrema afabilidade preenchia essa função. Ela era tão
excessiva, às vezes, mesmo hiperbólica, que só podia instaurar grandes
distancias.
Sua febre, também, o colocava à
parte. Emprego esta palavra na falta de outra melhor. Foucault vivia como que
numa perpétua ocupação, sempre atento. Ninguém era menos plácido, nem mais
móvel. Ele era capaz, a respeito de um mesmo assunto, de multiplicar as
abordagens e os pontos de vista com uma extraordinária velocidade. Aliás, ele
não cessou de multiplicar os programas, as listas de coisas a fazer. “Será
necessário um dia...” era uma expressão retomada muitas vezes em seus propósitos,
tal como figura frequentemente em seus escritos. Esta febre era um excesso, uma
profusão, um permanente transbordar. Foucault dava a impressão de ter mais
projetos que tempo, mais ideias que livros, mais possíveis que realizações, que
eram, por sinal, muito numerosas!
Finalmente, Foucault era um impulso.
Uma espécie do élan permanente, uma
extraordinária máquina de arrebatar. Desta força que incita, restam mil traços
e mil consequências. Sua influência exerceu-se sobre toda a geração à qual
pertenço, que tinha vinte anos por volta de Maio de 68. Outras, sem dúvida,
mais jovens, ou vivendo em outras culturas, foram influenciadas de outra
maneira por Michel Foucault. Quanto a mim, por mais que eu não seja
“foucaultiano”, sei aquilo que creio lhe dever.
Em primeiro lugar um programa. Meu
trabalho de pesquisador inscreveu-se, de fato, num programa que Foucault havia
indicado no primeiro prefácio de História
da loucura. Por sua vez, ele havia deixado este canteiro de lado, do mesmo
modo que não quis reeditar o prefácio. Ele escrevia então:
Na universalidade da ratio ocidental, há esta divisão que é o
Oriente: o Oriente, pensado como a origem, sonhado como o ponto vertiginoso de onde nascem as nostalgias e as
promessas de retorno, o Oriente oferecido à razão colonizadora do Ocidente,
porém, indefinidamente inacessível, pois o limite sempre permanece: noite do
começo, em que o Ocidente se formou, na qual traçou uma linha de divisão, o
Oriente é, para ele, tudo aquilo que ele não é, ainda, que ele deva buscar nele
sua verdade primitiva. Será preciso fazer uma história desta grande divisão, ao
longo de todo o devir ocidental, segui-la em sua continuidade e suas trocas,
mas deixá-la também aparecer em seu hieratismo trágico.
Os dois livros que dediquei a
determinados aspectos desta divisão inscrevem-se, ao seu modo, na direção
indicada por Foucault. O esquecimento da
Índia e O culto do nada
contribuem, em alguns aspectos delimitados, para esclarecer o lugar e a função
do Oriente na consciência europeia bem como a constituição de sua identidade
moderna. Eles procuram, com efeito, abordar o processo histórico que viu a
descoberta científica do Oriente, mais particularmente, do âmbito do sânscrito,
e realizar uma re-elaboração filosófica dos traços que caracterizam “a Europa”,
“o espírito” europeu, “a identidade” europeia etc. Não se trata de comprar
entidades já definidas em sua integralidade, “a Europa” e “a Índia”. O objetivo
é contribuir para a compreensão dos processos dinâmicos em que essas
representações delinearam-se reciprocamente.
Segundo elemento importante, esta
convicção, própria de Foucault, de que tudo é dito nos arquivos,
explicitamente. Inútil imaginar estratégias secretas, intenções escondidas nos
processos de saber e de poder. Tudo é formulado, tornado preciso, repetido, às
claras. Esta ideia me ajudou enormemente, durante anos passados pesquisando
aquilo que era agenciado, no século XIX, em torno da descoberta do budismo e
das interpretações que ela suscitava.
Pude constatar que, efetivamente, se nos damos ao trabalho de ler, tudo
está ali, preto no branco, sem pudor e sem rodeios. Não concluo com isso, necessariamente,
que conviria desempregar todos os hermeneutas, porém que toda interpretação
inútil deve, se possível, ser afastada, quando se tratar de história dos
sistemas de pensamento.
Restam, também, deste impulso
chamado Foucault, os grandes registros “guerra” e “urgência”. Foucault fez
compreender quanto efeitos de verdade e relações de forças são interligados.
Não há senão a guerra, em toda parte, sobretudo sem fim, sem origem nem termo,
sem vitória nem trégua, com evoluções apenas, mudanças de estilo ou de campo. É
isso que ensina, no fundo: o combate como dimensão essencial do pensamento e da
vida. Sem dúvida, Nietzsche o tinha visto, sem contar Heráclito e sua grande
intuição da discórdia. Mas foi Foucault quem permitiu entrevar a riqueza desta
perspectiva.
A urgência, este gosto do agir
próprio da febre, cresce para intervir nas lutas, para inflecti-las ou
modifica-las. Ela é acompanhada, em Foucault, por um desprezo soberano pela
metafísica e pelos seus embaraços risíveis. Foi possível segui-lo, neste
registro, num domínio determinado, o jornalismo. Pensei, muitas vezes, com
emoção e gratidão, nesta maneira que ele tinha de considerar a imprensa com um
lugar de intervenção para um intelectual. Um lugar permanente, legítimo,
essencial. Não um domínio de incursões pontuais, por onde passariam assinaturas
de prestígio. Foucault incitava uma urgência jornalística vivida de dentro,
dentro das redações, segundo modalidades que deviam, evidentemente, ser
inventadas por cada um.
Com esta coletânea, desejei fazer
uma modesta homenagem à memória de Michel Foucault, por ocasião do vigésimo
aniversário de sua morte. Ela começa com um curto estudo sobre sua trajetória,
extraído do meu trabalho, A companhia dos
filósofos, lembrando alguns dados básicos àqueles que não conhecem bem sua
contribuição. Seguem-se três entrevistas, publicadas em jornais, em diferentes
datas.
Reúno estas páginas dispersas com a
preocupação de que essas possam ser úteis a uma melhor descoberta de seu
pensamento e de seu percurso. Nestas entrevistas, Foucault aborda,
efetivamente, de maneira simples e direta, temas maiores do seu trabalho, como,
por exemplo, a delinquência, a institucionalização dos saberes, a dispersão dos
focos de poder. Mas também evoca temas mais pessoais, que frequentemente não
foram desenvolvidos. Em particular, sua relação com a literatura, com o
trabalho da escrita, sua relação com o marxismo e com os comunistas, sua
formação intelectual, seu olhar sobre seus próprios livros e sobre a acolhida
que tiveram. Parece que, ao longo das respostas, desenha-se um Foucault
sensivelmente diferente daquele dos trabalhos e dos cursos.
Tais são as minhas impressões.
Roger Pol-Droit
Paris, 12 de julho 2004
Paris, 12 de julho 2004