o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sete canções de declínio


1

Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto de Astro -
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real - livre, sem mastro.
Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada -
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada...

2

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
- Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida!
Desfiles, danças - embora
Mal sejam uma ilusão...
Cenário de mutação
Pela minha vida fora!
Quero ser Eu plenamente: 
Eu, o possesso do Pasmo. 
- Todo o meu entusiasmo, 
Ah! que seja o meu Oriente!
O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante 
O amante sem amante,
Ora amado, ora traído...
Lançar os barcos ao Mar 
De névoa, em rumo de incerto...
Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.
... E as minhas unhas polidas 
Ideia de olhos pintados...
Meus sentidos maquilados
A tintas conhecidas ...
Mistério duma incerteza
Que nunca se há de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza...
- Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida -
Escada de Oiro descida
Aos pinotes, quatro a quatro!...

3

Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras -
Só as cores são verdadeiras -
Siga sempre o festival!
Quermesse - eia! - e ruído! 
Louça quebrada! Tropel! 
(Defronte do carrossel,
Eu, em ternura esquecido...)
Fitas de cor, vozearia -
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs - os meus afetos
Com librés de fantasia!
Ser bom... Gostaria tanto
De o ser... Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.
- Afetos?... Divagações...
Amigo dos meus amigos...
Amizades são castigos,
Não me embaraço em prisões!
Fiz deles os meus criados, 
Com muita pena decerto. 
Mas quero o Salão aberto, 
E os meus braços repousados.

4

As grandes Horas! - vive-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime -
Sacrifícios são novelas.
"Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto..."
- Mas não há maior desgosto
Nem há maior vilania!
E quem for Grande não venha
Dizer-me que passa fome.
Nada há que se não dome
Quando a Estrela for tamanha!
Nem receios nem temores,
Mesmo que sofra por nós
Quem nos faz bem. Esses dós
Impeçam os inferiores.
Os Grandes, partam - dominem
Sua sorte em suas mãos:
- Toldados, inúteis, vãos,
Que o seu Destino imaginem!
Nada nos pode deter;
O nosso caminho é de Astro! 
Luto - embora! - o nosso rastro, 
Se pra nós Oiro há de ser!...

5

Vaga lenda facetada
A imprevisto e miragens -
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada...
Um baile russo a mil cores.
Um Domingo de Paris -
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores.
Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram -
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram...
Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda...
Saudade que não recorda -
Bola de tênis no ar...
Um leque que se rasgou -
Anel perdido no parque -
Lenço que acenou no embarque
De Aquela que não voltou...
Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços à beira-mar,
Em tardes de céu azul...
Viagem circulatória
Num expresso de vagões-leitos -
Balão aceso - defeitos
De instalação provisória...
Palace cosmopolita
De rastaquoères e cocottes -
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita...
Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-ha -
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole...
Pinturas a "ripolin",
Anúncios pelos telhados -
O barulho dos teclados
Das Lynotype do Matin...
Manchete de sensação
Transmitida a todo o mundo -
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revolução...
Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo - cheio
De carimbos, lado a lado...
Nobre ponte citadina
De intranquila capital -
A umidade outonal
De uma manhã de neblina...
Uma bebida gelada -
Presentes todos os dias...
Champanha em taças esguias
Ou água ao sol entornada...
Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios...
Porta falsa de mistérios -
Toda uma estante repleta:
Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida -
Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo...
- A eterna mágoa dum beijo,
Essa mesma, ela me expande...

6

Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida...
Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na ideia de um país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem...
Parou ali a barca - e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... - ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo...
... Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor-de-rosa,
As torres de platina e de saudade.
Avenidas de seda deslizando,
Praças de honra libertas sobre o mar 
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos - carícias de âmbar flutuando...
Os palácios de renda e escumalha.
De filigrana e cinza as catedrais -
Sobre a cidade a luz - esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais...
Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho - solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada...
Exílio branco - a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos - seu brou-u-ha...
E na praça mais larga, em frágil cera,
Eu - a estátua "que nunca tombará"...

7

Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
- Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a Posso ir apanhar!







Mário de Sá Carneiro 
Imagem: Trent Parke

domingo, 20 de outubro de 2013

O último sortilégio

Já repeti o antigo encantamento,
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.

Outrora meu condão fadava, as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via.
E as folhas da floresta eram lustrosas.

Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado erguida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.

Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.

E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
lnevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.

Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti,
Se já não podeis dar-me essa beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anônima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!






Fernando Pessoa
Ernesto Timor


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

29 DE OUTUBRO HÁ 30 ANOS
                                                  


nem chovia nem nada você se matou
dizem que você pulou a janela do 7º
ou do 13º andar ninguém mais sabe
você disse pro Armando que estava
emparedada mas quem não estava?
morrer não tem explicação morre-se
mais nada inclusive para o seu bem                                
você não estava enganada ao dar
esse vexame sem tamanho: fugir
nem chovia nem nada você não
quis saber não lia a meteorologia
sem nenhuma nuance eufemística
pra poesia o clima não estava bom
mas a questão posta não era essa
você insinuava mais que mostrava
redemoinhos da vida se alastram
todos os horizontes ficam longe
fendem abalam apodrecem
trevas fúnebres de todo dia
corroeram até mesmo você
mais silenciosa mais opaca
permanece consigo mesma
saudosos ainda estamos




Ney Ferraz Paiva

terça-feira, 24 de setembro de 2013


PERGUNTAS POR CLARICE LISPECTOR DADA COMO MORTA EM 1977


uma Clarice nasce na Ucrânia
outra em Alagoas outra mais
no Recife     outra no Rio
pelo mundo & fora do tempo
quantas vezes nasce a mulher
negociada num antiquário
despida de antigas memórias
junto com uma velha gravura
desaparecida dentro de um livro
ou num quarto em Belém como
quem não quer nada nem pode
desmunida de correto destino
ou em Nápoles sob bombardeio
virtuose do silêncio do medo
tanto que exímia mãe do abismo
outra registrada com nome falso
outra que soa como uma ameaça
outra migrou despistada de si
arrancada ao coração da noite
selvagem embaralhada pelo azar
quantas vezes nasce a mulher

ney ferraz paiva

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

QUEM NÃO PUDER LER PODE SENTIR O CLIMA



não sei grego apenas comprei a Odisseia de bolso

que o Caio Fernando Abreu recomendou na Folha

não sei se ele sabia essa é outra coisa que não sei

se ele era um bom classicista mas não deveria ser

tem coisas que a gente escreve apenas pensando

no bolso não nas técnicas de versificação do novo

no cotejo mais no cortejo da alma vendida ao diabo 

não no coração nos infames critérios de relevância




ney ferraz paiva
shirin neshart

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

UM BEATNIK NA ERA DE AQUÁRIO


joguei 
golfe com Jack Kerouac
            pensei que seria interessante trazer à tona
alguns lances via internet
            ele ainda não liderava a liga como batedor
mas foi um jogo bastante duro
            um grande taco
procurava captar detalhes do rival 
            raro instinto técnico
como se tomasse notas pro próximo romance
eu até se poderia dividir 
            a transmissão em capítulos
o primeiro seria sobre
            sua linhagem vagabunda & andarilha
depois poderia abordar 
            o excesso de bebida afetando o cérebro
chega o momento ele tenta avalia a estratégia
surpreso à mudança de estilo
            pergunta-me se de fato achavam que tem obsessão patológica pela escrita
            respondo que o tempo todo ele está certo 
os críticos errados
            fui adivinhando o caminho
tinha meu próprio jogo a forjar 
            ele diz ter que se apressar
vai se apresentar ao exame de voo em dois dias
            e teme que precise adiá-lo 
por causa do início de uma hérnia
            desconfio se tratar de um blefe 
depois disseram que sempre fazia esse 
            jogo 
desde que a ex-mulher escreveu
           que ela era Jeck Kerouac
que Kerouac não existia
           sequer escrevia os próprios livros
o que ele tinha a oferecer carecia tanto de atrativos
           que ela costumava tomar todas as decisões
ela digamos assim fez-se por si própria sem que ele
           exercesse alguma influência
que se dependesse dele a classe literária continuaria aí agitando
           de maneira costumeira sempre a mesma merda etc.
último recurso
           ele prepara-se
tenta arremessar na diagonal 
           pés em linha reta
ombros livres de fadiga
           como se para uma nova peregrinação
ir despertar o tempo com uma dança sensual na rua
           cambaleando 
atrás de pessoas que realmente interessam
           Corsos Cassadys Ferlinghettis
(não vive sem eles)
           mangas arregaçadas até o cotovelo 
finalmente arremessa taca
           o umbigo estala trinca explode
agora se pode ir a todo lugar
           agora se pode ir em toda direção
           breve virá o dilúvio



ney ferraz paiva

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

VICIADO EM AUGUSTO DOS ANJOS


acendo meu cigarro Augusto dos Anjos

fim de semana fumo a ruína dos anos

viro duas páginas (sábado & domingo)

espalho o lixo indecifrável da memória

não mantenho mais a casa limpa

não me alimento não verifico o correio

você se apressa a me oferecer fogo


fumo pra escamar o dia o beijo a faísca





Da Série Dervixe, ney ferraz paiva, 2014.




Ney Ferraz Paiva


terça-feira, 2 de julho de 2013

RAYMOND ROUSSEL OU O HORROR DO VAZIO (DL)




Gilles Deleuze, 1963

Daido Moriyama


            A obra de Raymond Roussel, cuja publicação foi retomada pelas edições Pauvert, compreende dois tipos de livros: os livros-poemas, que traçam a minuciosa descrição de objetos miniaturas (por exemplo, todo um espetáculo sobre uma etiqueta de garrafa de água de Evian) ou objetos dublês (atores, maquinários e máscaras de carnaval). Um segundo tipo são os livros-procedimento: partindo, explicitamente, ou não, de uma frase indutora (ex. “les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard”), acaba-se por reencontrar a mesma frase ou quase (les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard”), mas no intervalo terá surgido todo um mundo de descrições e enumerações, onde duas palavras tomadas em dois sentidos vivem vidas diferentes, ou melhor, são deslocadas para comporem outras palavras (“j’ai du bon tabac...” = “jade tube onde aubade...”)1.

                  Este autor, que tanta influência teve sobre os surrealistas e hoje a tem sobre Robbe-Grillet, continua pouco conhecido. Michel Foucault publica um comentário impressionante, de uma grande força poética e filosófica. Ele encontra as chaves da obra em uma direção bastante diferente da que os surrealistas haviam indicado. Parece indispensável associar a leitura do livro de Foucault àquela do próprio Raymond Roussel. Como explicar o “procedimento”? Segundo Michel Foucault, existe na linguagem uma espécie de distância essencial, de deslocamento, de desmembramento ou de rasgão. Acontece que as palavras são menos numerosas que as coisas e que cada palavra tem vários sentidos. A literatura do absurdo acreditava que faltava sentido; de fato, o que falta são os signos.

            Há, então, um vazio que se abre no interior de uma palavra: a repetição de uma palavra deixa escancarada a diferença de seus sentidos. Seria a prova de uma impossibilidade da repetição? Não, e é aí que aparece a tentativa de Roussel: trata-se de aumentar esse vazio ao máximo, tornando-o determinável e mensurável, e de preenchê-lo, então, com toda uma maquinaria, com toda uma fantasmagoria que religa e integra as diferenças à repetição.

           Por exemplo, as palavras “demoiselle à prétendant” induzem “demoiselle (hie) à reitre en dents” e, como numa equação, o problema torna-se o da execução de um mosaico com a ajuda de um maço NRT. É preciso que a repetição se torne uma repetição paradoxal, poética e compreensiva. É preciso que ela compreenda em si a diferença, ao invés de a reduzir. É preciso que a pobreza da linguagem se torne sua própria riqueza. Foucault diz: “Não a repetição lateral das coisas reditas, mas a repetição radical que passou por cima da não-linguagem e que deve a esse vazio transposto o seu ser poesia DLa.”.

O vazio será preenchido e transposto pelo quê? Por extraordinárias máquinas, por estranhos atores-artesãos. As coisas e os seres seguem aqui a linguagem. Tudo nos mecanismos e nos comportamentos é imitação, reprodução, récita. Mas récita de uma coisa única, de um acontecimento incrível, absolutamente diferentes. Como se as máquinas de Roussel tivessem tomado para si a técnica do procedimento: a exemplo do trabalho de turbina, que remete por sua vez a uma profissão que nos força a levantar cedo NT. Ou o verme que toca cítara arremessando gotas de água sobre cada corda. Roussel elabora várias séries de repetição que liberam: os prisioneiros salvarão sua vida através da repetição e da récita, pela invenção de máquinas correspondentes.

        Precisamente, estas repetições liberadoras são poéticas, porque elas não suprimem a diferença, mas, ao contrário, a experimentam e a autenticam ao interiorizar o Único. Quanto ás obras sem procedimento, obras-poema, elas se explicam de uma maneira análoga. Desta feita, são as próprias coisas que se abrem em favor de uma miniaturização, ou melhor, à custa de um dublê, de uma máscara. E o vazio é agora atravessado pela linguagem, que dá surgimento a todo um mundo no interstício dessas máscaras e dublês. Desta forma, as obras sem procedimento são como o avesso do próprio procedimento. Em ambos os casos o problema é o de falar e fazer ver ao mesmo tempo, falar e dar a ver.

       O que dissemos ainda está aquém da riqueza e da profundidade do livro de Foucault. Esse enlace da diferença com a repetição contém também a vida, a morte e a loucura. Pois parece que o vazio interior às coisas e às palavras é um signo de morte e aquilo que o preenche é presença da loucura.

     Todavia, isso não quer dizer que a loucura individual de Raymond Roussel e sua obra poética tenham um elemento positivamente comum. Ao contrário, seria necessário falar de um elemento a partir do qual a obra e a loucura se excluem mutuamente. Ele é comum apenas nesse sentido; esse elemento é a linguagem. Pois a loucura pessoal e a obra poética, o delírio e o poema representam dois investimentos da linguagem, em níveis diversos, exclusivos.

         Foucault, em seu último capítulo, esboça, a partir desse ponto de vista, toda uma interpretação das relações obra-loucura, que se aplicaria, e que talvez aplicará a outros poetas (Artaud?). O livro de Foucault não é decisivo somente em função de Roussel; ele marca uma etapa importante nas pesquisas pessoais do autor, dedicadas, em primeiro lugar, às relações entre a linguagem, o olhar, a morte e a loucura2.

. . .

Tradução de

Hélio Rebello Cardoso Júnior



DL  Arts, 23-29 outubro 1963, p. 4 (Sobre o livro de M. Foucault, Raymond Roussel, Paris, Gallimard, 1963). Deleuze e Foucault se haviam encontrado na casa do filósofo e epistemólogo Jules Vuillemin, em Clermont-Ferrand, no ano anterior (eles haviam se encontrado alguns anos antes, em Lille, por intermédio de um amigo, Jean-Pierre Bamberger). Foucault sugeriu que Deleuze se juntasse a ele na Universidade de Clermont-Ferrand, mas foi finalmente Roger Garaudy quem seria nomeado com o apoio do Ministério (Deleuze será nomeado para Lyon). Tal episódio é o início de uma amizade e de uma admiração recíproca entre Deleuze e Foucault que se prolongará até finais dos anos 70. Ver DRF, o texto “Désir et Plaisir”.
1 Já lançado pela Pauvert: Comme j’ai écrit certains de mes livres?; la Doublure; Impression d’Afrique. [NRT: embora insuficiente para reproduzir a aplicação desse procedimento em língua portuguesa, eis a tradução literal dos exemplos aí citados: “as letras em branco nas tabelas do velho bilhar” / “as letras em branco nas costas do velho ladrão”; “tenho bom tabaco...” = “jade tubo onda alvorada”. Notar, em francês, o duplo uso de “bandes” como tabela e costado, assim como o jogo sonoro/surdo das consoantes b/p em “billard”/”pillard” (bilhar/ladrão)].
NRT [Eis apenas a tradução literal dos exemplos: “senhorita para pretendente” / “senhorita (maça) para experimentado em dentes”. Em francês, a inteligibilidade dos exemplos depende do emprego do termo “demoiselle” tanto no sentido de “senhorita” quanto no sentido de “hie”, isto é, de maça ou maço, instrumento usado para embutir, implantar guias de calçada, segmentos que se sucedem como dentes separando a calçada do leito da rua].
DLa RR, p. 63.
NT [Trata-se de um procedimento lingüístico de difícil tradução, posto que a expressão “trabalho de turbina” (“métier à aubes”), contém o vocábulo “aube”, que serve ao mesmo tempo para pá de uma turbina e alvorada].
2 Cf. Michel Foucault: Maladie mental et psychologie (PUF, 1954); Histoire de la folie à l’âge classique (Plon, 1961) e, recentemente, Naissance de la clinique (PUF, 1963), onde o autor pode dizer: “Neste livro está em questão o espaço, a linguagem e a morte,  está em questão o olhar.”


segunda-feira, 29 de abril de 2013


A AUTO-EXPRESSÃO É SAGRADA E VITAL
Depoimentos escolhidos, publicados pela primeira vez em 1992 por Ammann Verlag, Zurique, em Louise Bourgeois: Desenhando em queda livre, de Christiane Meyer-Thoss.

1.
Meu trabalho inicial é o modo de cair. Depois se tornou a arte de cair. Como cair sem se machucar. Mais tarde é a arte de se manter no ar.
4.
Quando eu estava crescendo, todas as mulheres em minha casa usavam agulhas. Sempre tive fascínio pela agulha, o poder mágico da agulha. A agulha é usada para consertar os danos. É um pedido de perdão. Nunca é agressiva, não é uma ponta perfurante.
5.
Minhas facas são como uma língua - eu te amo, eu te odeio. Se você não me ama, estou pronta para atacar. Elas têm fio duplo.
10.
As espirais - em que sentido girar - representam a fragilidade num espaço aberto. O medo faz o mundo girar.
20.
O falo é um tema de minha ternura. Tem a ver com vulnerabilidade e proteção. Afinal, vivi com quatro homens, meu marido e três filhos. Eu era a protetora...
29.
Eu preciso de minhas memórias. Elas são meus documentos. Eu as vigio. São minha privacidade e tenho um ciúme intenso delas. Cézanne disse: "Tenho ciúme de minhas pequenas sensações". Lembrar-se e devanear é negativo. É preciso diferenciar entre as lembranças. Você vai na direção delas ou elas vêm em sua direção. Se vai à elas, está perdendo tempo. A saudade não é produtiva. Se elas vêm à você, são as sementes da escultura.
49.
Se uma pessoa é artista, é uma garantia de sanidade. Ela é capaz de suportar seu tormento.
54.
A auto-expressão é sagrada e fatal. É uma necessidade. A sublimação é um dom, um golpe de sorte. Uma não tem nada a ver com a outra.
Hoje digo com a minha escultura o que não podia no passado. Era o medo que me impedia de entender. O medo é o inferno. É paralisante. 
Minha escultura me permite experimentar o medo, dar-lhe um caráter físico para que eu possa destruí-lo. O medo se torna uma realidade manipulável. A escultura me permite reviver o passado, ver o passado em sua proporção objetiva e realista.
O medo é um estado passivo. O objetivo é ser ativo e tomar o controle. O movimento é do passivo para o ativo. Se o passado não é negado no presente, você não vive. Passa pelas emoções como um zumbi e a vida passa por você.
Como no passado os medos estavam ligados às funções corporais, eles reaparecem por meio do corpo. Para mim, a escultura é o corpo. Meu corpo é minha escultura.
75.
Breton e Duchamp me tornaram violenta. Eram próximos demais de mim e eu discordava deles violentamente - de sua pontificação. Como sou uma fugitiva, figuras paternas nestas praias me marcavam de maneira errada. "The blind leading the blind" (1947-49) se refere aos homens velhos que a conduzem para o precipício.


LOUISE BOURGEOIS

sexta-feira, 15 de março de 2013

RITUAIS APÓCRIFOS DA POESIA

PARADIGMA, ERNESTO TIMOR

Palavra de lesma numa lâmina de grama?
Não é minha. Não aceite.
Sylvia Plath, Os Mensageiros

Guardada por duplos leões monumentais de mármore, o que pode a poesia? Essa que frequentemente pretende ser ainda alguma memória do céu: crédula, pitoresca, meiga – jamais bárbara. Reaproveito aqui um dos motes de Oswald de Andrade ao se referir aos leitores de jornal. Por este ser hoje um espaço onde a poesia não-consagrada dificilmente terá acesso. Para entrar em certos lugares a poesia precisou civilizar-se. No Paraíso das Bienais, Feiras e Festas, e, sobretudo nos roteiros tradicionais, aí não há lugar para Bárbaros. Como nunca, poetas são confrontados com a cobrança cultural do sucesso: o pedestal, a moldura. Algo como um Arnaldo Antunes das Multidões. Incensado pelos comunicadores ávidos do sempre novo, porque sempre o Mesmo e único poeta “concretista desta nova geração”. Algo como chamar Rousseau de Modernista – ainda que por aí tudo ande realmente russo. Vejam o que pode o trocadilho. Nada. O trocadilho não pode nada. Mas já na Farra dos Incensados... Sem pestanejar, o velho vira novo entre os (incautos) novatos. O novo não é mais a Criatividade. O novo é a Moda. Porque antes de tudo se trata das demandas vigentes do mercado, das sobrecargas da institucionalização, das forças que salvaguardam discursos, e não das exigências conceituais e artísticas que se ampliam, vivas, variadas e diversas no ambiente da criação. O ir com tudo, o ir-Bárbaro das multiplicidades e singularidades. Cabe, aqui, intensificar outra abordagem, quase sempre negligenciada pelas análises culturais: num país de desigualdade social brutal, nem de longe, nem mesmo por concessão acidental, muito menos como Projeto, diferença-variedade-diversidade cultural podem entrar na cena para a eclosão dos sistemas de fluxos. Boa parte dos leitores vão continuar pensando que a solidão ou a tristeza vêm do coração do poeta. Que elas não fazem parte de uma textura perversa e dominadora. E para sustentar tal estrutura há um sistema de interpretação implacável, que perdura, irremovível. Cabe a ele a tarefa de encantar os leitores. Nem tanto ler, reler, escolher. Esse leitor menor é que vai interessar cada vez mais ao mercado de livros de poesia. Totalmente indiferente à estruturação da obra poética e à sua feição linguística. Que acredita que o poeta para completar sua obra precisa apenas amar e ser da paz. Que é possível escrever poesia sem enlouquecer. Essa proposição é, na verdade, a menos obscura para os espíritos estáticos. Eles não se colocarão a ler uma elegia em pleno café da manhã. Eis a alma e o segredo do negócio: a sensibilidade também pode ser corrompida. Assim, seguem fascinados à próxima Farra dos Incensados... à modorra acadêmica... ao cochilo da crítica. À cata não dos Bárbaros, mas dos Astuciosos. Sem desconfiar que o mundo dos melhores e mais influentes autores, dos mais vendidos e prolíficos, geralmente nada tem a ver com escrever um bom poema e fazer com eles não só o conjunto de um livro, mas também de uma obra. Com os rituais apócrifos da grande escrita. Na Farra dos Incensados – quem fará ainda voar em estilhaços a palavra bárbara?


Ney Ferraz Paiva, Belém 14.03.2013

domingo, 17 de fevereiro de 2013


roupas usadas para vestir a áfrica

guardar um pouco para o telhado
do fardo de roupas
ou dos peixes guardar um pouco
do refugo do mundo
é assim por enquanto a vida
quem se importa
minha mãe eu não posso deixar
sem um telhado de zinco
uma muda de roupas usadas
para encobrir as vergonhas do mundo
ou um casaco de pele para os animais

ney ferraz paiva

sábado, 16 de fevereiro de 2013


SOLETRAR ADENSAR NÃO INTERPRETAR JOÃO CABRAL

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la
captar sua voz inenfática, impessoal,
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada,
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições d pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Certo está que poesia não educa - nem poeta é educador. Essa não é uma questão para João Cabral. Pelo que consta em sua biografia, ele nunca se pôs a falar a pedagogos. Acontece que ele, de alguma maneira, parece querer fazer uma inversão nas funções de poder, nas suas regras metodológicas. Ele declina da "pedra" sua carnadura feminina, sua fluição, sua voz. Estabelece um contraste, e mais, uma antítese entre o ambiente viril de quem aprende e o modo de abordagem de quem ensina. E quem saberá captar, aqui-agora, nestes Brasis e Espanhas, a música da "cartilha muda"? Soletrar. Adensar. Não interpretar. O agravo objetivamente feito contra o discurso. Gemidos ao invés de música/ gritos que escapam à representação /que reagem a qualquer significação. E para onde terá ido aquela semelhança, ou melhor, similitude atribuída ao discurso verdadeiro e falso por Hesíodo? Atos de pensamento, mais do que figuras retiradas do cotidiano através do olhar, de uma tagarelice do vivido. Seriam estas as lições? As visões? Participar do "escrevível" a partir de um olhar descentrado das formas reinantes da escrita, que tratam a todos como expectadores da história, habilmente negociada pelas moedas do certo e do errado, da lei, da justiça. Pelo que esses mesmos seriam os mecanismos revertedores da Máquina que tudo arquiva, empenhada em fazer proliferar uma unidade insustentável do discurso. A essa máquina outra - a máquina de comover (expressão de Le Corbusier), a que João Cabral não cessa de operar em O Engenheiro (1945). Fazedor de imagens insólitas, deformadas, sem nenhuma sublimação.

Ney Ferraz Paiva

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Henry Miller e Eve McClure, 1953, ano em que se casaram.

PARA CONVENCER O ARTISTA A COMETER SUICÍDIO


Por Henry Miller

– Detesto pensar no que um artista sem recursos tem de enfrentar! – disse o doutor Souchon. Não existe inferno pior, no meu entender. – Como toda grande cidade da América, Nova Orleans está cheia de artistas morrendo de fome, ou quase. O bairro em que moram vem sendo regularmente demolido e pulverizado pelas grandes armas dos vândalos e bárbaros do mundo industrial. Gritamos contra o vandalismo dos hunos, nossos inimigos de antanho, dos alemães, e, no entanto, em nosso próprio meio, no último refúgio arquitetônico da América, o jardim de um mundo que destruímos com nossas próprias mãos, o insidioso trabalho de destruição continua. Ao ritmo em que estamos indo, dentro de cem anos dificilmente haverá neste continente algum traço ou prova da única cultura que fomos capazes de produzir – a rica cultura escrava do sul. Nova Orleans venera o passado, no entanto assiste impassível aos bárbaros do futuro cínica e impiedosamente enterrarem o passado. Quando o belo Bairro Francês não existir mais, quando todo o laço com o passado tiver sido destruído, haverá prédios de escritórios limpos e estéreis, monumentos e prédios públicos horrendos, poços de petróleo, chaminés, aeroportos, cadeias, manicômios, hospitais de caridade, filas do pão, os cinzentos barracos do povo negro, brilhantes esqueletos carros, trens enferrujados, comidas enlatadas, lanchonetes, vitrines iluminadas a neon para inspirar o artista a pintar. Ou, o que é mais provável, para convencê-lo a cometer suicídio. Poucos homens terão coragem de esperar até os sessenta anos para pegar o pincel. Menos ainda terão a chance de se tornar cirurgiões. Quando um famoso dentista tem a audácia de dizer que para o homem trabalhador os dentes – os dentes da própria pessoa – são um luxo econômico, aonde estamos chegando? Logo psiquiatras e cirurgiões estarão dizendo: “Por que preservar a vida se não existe razão para viver?”. Logo, por simples bondade humana, estarão se juntando para formar uma sociedade da eutanásia com a finalidade de eliminar aqueles que não se adaptam aos terrores da vida moderna. O campo de batalha, ao lado do campo industrial, lhes fornecerá todos os pacientes que forem capazes de atender. O artista, assim como o indígena, pode se tornar tutelado do governo; poderá ter licença para zanzar por aí sem rumo, simplesmente porque, assim como no caso dos indígenas, não temos coragem de matá-lo. Ou talvez só depois de ter prestado “serviços úteis” à sociedade ele possa ter permissão de praticar sua arte. Parece-me que estamos chegando a um impasse assim. Só a obra de artistas mortos parece ter alguma atração ou valor para nós. Os ricos sempre podem ser levados a dar apoio a mais de um museu; sempre é possível contar com as academias para nos fornecer os cães de guarda e as hienas; sempre se pode comprar os críticos que matarão o que é fresco e vital; sempre haverá educadores que mal informarão os jovens quanto ao sentido da arte; os vândalos sempre podem ser instigados a destruir o que é poderoso e perturbador. Os pobres não conseguem pensar em nada além de comida e casa; os ricos se divertem colecionando investimentos seguros que lhes são fornecidos pelos demônios devoradores de cadáveres que comerciam com o sangue e o suor de artistas; a classe média paga ingresso para ficar de boca aberta e criticar, orgulhosa de seu conhecimento requentado da arte e tímida demais para defender o homem que no fundo do coração ela teme, sabendo que o inimigo verdadeiro não é o homem acima, que tem de bajular, mas o rebelde que expõe em palavras ou tintas a podridão do edifício que eles, a classe média covarde, são obrigados a sustentar. Os únicos artistas no presente que vêm sendo regiamente recompensados por seu trabalho são os charlatães; entre eles estão não apenas a variedade importada, mas também os filhos nativos que são capazes de levantar uma nuvem de poeira quando se trata de questões reais.

O homem que quer pintar não aquilo que vê, amas aquilo que sente não ter lugar em nosso meio. Ele pertence à cadeia ou ao manicômio. A menos, como no caso do doutor Souchon, que possa provar sua sanidade e integridade com trinta ou quarenta anos de serviços prestados à humanidade no papel de cirurgião.

É esse o estado da arte na América de hoje. Quanto tempo mais vai resistir? Talvez a guerra seja uma benção disfarçada. Talvez, depois de termos atravessado mais um banho de sangue, possamos dar atenção aos homens que procuram arranjar sua vida em outros termos que não ambição, rivalidade, ódio, morte e destruição. Talvez...

Pesadelo Refrigerado. Editora Francis, 2006.
Tradução de José Rubens Siqueira

sábado, 2 de fevereiro de 2013


Na noite em que Edgar Poe falhou ao ler o Corvo

Por Charles Baudelaire

Nessa última visita a Richmond ele fez duas leituras públicas. É preciso dizer uma palavra a respeito dessas leituras que representam um grande papel na vida literária dos Estados Unidos. Nenhuma lei opõe-se a que um escritor, um filósofo, um poeta, alguém que saiba falar, anuncie uma leitura, uma dissertação pública sobre um objeto literário ou filosófico. Ele aluga uma sala. Cada um paga uma contribuição pelo prazer de ouvir emitir ideias e compor frases tais quais. O público comparece ou não. Neste último caso, é uma especulação fracassada como qualquer outra especulação comercial aventurosa. Apenas quando a leitura é feita por um escritor célebre há fluência, e é uma espécie de solenidade literária. Vê-se que essas são as cátedras do Collège de France postas à disposição de todo mundo. Isso faz pensar em Andrieux, em La Harpe, em Baour-Lormian, e lembra essa espécie de restauração literária, que se fez após o apaziguamento da Revolução Francesa nos liceus, ateneus e cassinos.

Edgar Poe escolhe como objeto de seu discurso um tema que é sempre interessante e que foi muito debatido entre nós. Ele anunciou que falaria do princípio da poesia. Existe há muito tempo, nos Estados Unidos, um movimento utilitário que quer arrastar a poesia como o resto. Há poetas humanitários, poetas do sufrágio universal, poetas abolicionistas das leis sobre os cereais, e poetas que querem que se construam work-houses. Juro que não faço nenhuma alusão a pessoas deste país. Não é culpa minha se as mesmas disputas e as mesmas teorias agitam diferentes nações. Em suas leituras, Poe declara-lhes guerra. Ele não defendia, como alguns sectários fanáticos insensatos de Goethe e outros poetas marmóreos e anti-humanos, que toda coisa bela é essencialmente inútil; mas ele se propunha sobretudo como objeto e refutação do que ele chamava espirituosamente a grande heresia poética dos tempos modernos. Essa heresia é a ideia de utilidade direta. Vê-se que, de um certo ponto de vista, Edgar Poe dava razão ao movimento romântico francês. Ele dizia: nosso espírito possui faculdades elementares cujo objetivo é diferente. Umas aplicam-se a satisfazer a racionalidade, as outras preenchem um objetivo de construção. A lógica, a pintura e a mecânica são os produtos dessas faculdades. E como temos nervos para aspirar os bons odores, nervos para sentir as belas cores, e para nos deleitar ao contato dos corpos lisos, possuímos uma faculdade elementar para perceber o belo; ela tem seu próprio objetivo e seus próprios meios. A poesia é o produto dessa faculdade; ela se dirige ao sentido do belo e não a um outro. É fazer-lhe injúria submetê-la ao critério das outras faculdades, e ela nunca se aplica a outras matérias senão àquelas que são necessariamente o alimento do órgão intelectual ao qual ela deve seu nascimento. Que a poesia seja posterior e consequentemente útil isso está fora de dúvida, mas não é esse seu objetivo; isso vem a mais! Ninguém se surpreende que um mercado, um embarcadouro ou qualquer outra construção industrial satisfaça às condições do belo, embora não seja esse o objetivo principal e a ambição primeira do engenheiro ou do arquiteto. Poe ilustrou sua tese através de diferentes trechos de crítica aplicados aos poetas, seus compatriotas, e por recitações de poetas ingleses. Foi-lhe pedido a leitura do seu Corvo. É um poema do qual os críticos americanos falam muito. Falam dele como de uma notável peça de versificação, de ritmo vasto e complicado, um sábio entrelaçamento de rimas que satisfaz seu orgulho nacional um pouco invejoso das proezas européias. Mas parece que o auditório ficou desapontado com a declaração do seu autor, que não sabia fazer brilhar sua obra. Uma dicção pura, mas uma voz surda, uma melopeia monótona, uma negligência muito grande dos efeitos musicais que sua pena sábia tinha de certo modo indicado, satisfizeram pouco aqueles que tinham pensado como uma festa a oportunidade de comparar o leitor com o autor. Isso não me surpreende de modo algum. Com frequência notei que poetas admiráveis eram execráveis atores. Isso acontece muito com os espíritos sérios e concentrados. Os escritores profundos não são oradores, e infelizmente é assim.

Obras Estéticas, Filosofia da imaginação criadora. Editora Vozes, 1993.
Tradução de Edison Darci Heldt