à procura de uma linguagem inabitável louca desgarrada é ela que traz água aos moinhos
o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
Poesia como prática = Outridade
(Octavio Paz)
págs. 96-97.
[...] não há poesia sem sociedade, mas a maneira de ser social da poesia é contraditória: afirma e nega simultaneamente a fala, que é palavra social; não há sociedade sem poesia, mas a sociedade não pode realizar-se nunca como poesia, nunca é poética. Às vezes os dois termos aspiram a desvincular-se. Não podem. Uma sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a mesma coisa ou ninguém falaria sociedade transumana em que todos seriam um ou cada um seria um todo auto-suficiente. Uma poesia sem sociedade seria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras. Condenados a uma perpétua conjunção que se resolve em instantânea discórdia, os dois termos buscam uma conversação mútua. Transformação da sociedade em comunidade criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em imagem encarnada.
Uma comunidade criadora seria aquela sociedade universal em que as relações entre os homens, longe de ser uma imposição da necessidade exterior, fossem como um tecido vivo, feito da fatalidade de cada um ao enlaçar-se com a liberdade de todos. Essa sociedade seria livre porque, dona de si mesma, nada exceto ela mesma poderia determiná-la; e solidária porque a atividade humana não consistiria, como ocorre hoje, no domínio de uns sobre outros (ou na rebelião contra esse domínio) e sim procuraria o reconhecimento de cada um por seus iguais, ou melhor, por seus semelhantes. A idéia cardeal do movimento revolucionário da era moderna é a criação de uma sociedade universal que, ao abolir as opressões, desenvolva simultaneamente a identidade ou semelhança original de todos os homens e a radical diferença ou singularidade de cada um. O pensamento poético não tem sido alheio às vicissitudes e aos conflitos dessa empresa literalmente sobre-humana. A gesta da poesia ocidental, desde o romantismo alemão, foi a de suas rupturas e reconciliações com o movimento revolucionário. Em um movimento ou noutro, todos os nossos grandes poetas acreditaram que na sociedade revolucionária, comunista ou libertária, o poema cessaria de ser esse núcleo de contradições que ao mesmo tempo nega e afirma a história. Na nova sociedade a poesia seria por fim prática.
págs.100 e 101
[...] A idéia de uma comunidade universal na qual, pela abolição das classes e do Estado, cesse o domínio de uns sobre outros e a moral da autoridade e do castigo seja substituída pela da liberdade e da responsabilidade pessoal – uma sociedade em que, ao desaparecer a propriedade privada, cada homem seja proprietário de si mesmo e essa propriedade individual seja literalmente comum, compartida por todos graças à produção coletiva; a idéia de uma sociedade na qual se apague a distinção entre o trabalho e a arte, essa idéia é irrenunciável. Não só constitui a herança do pensamento moral e político do ocidente desde a época da filosofia grega, como faz parte da nossa natureza histórica. Renunciar a ela é renunciar a ser o que desejou ser o homem moderno, renunciar a ser. Não se trata unicamente de uma moral nem de uma filosofia política. O marxismo é a última tentativa do pensamento ocidental para conciliar razão e história. A visão de uma sociedade universal comunista está ligada a outra: a história é o lugar da encarnação da razão. Ou mais exatamente: o movimento da história ao desdobrar-se, revela-se como razão universal. Algumas vezes a realidade da história desmente esta idéia; algumas vezes procuramos um sentido para a sangrenta agitação. Estamos condenados, a buscar a razão da desrazão. É verdade que, se há de surgir um novo pensamento revolucionário, terá que absorver duas tradições desdenhadas por Marx e seus herdeiros: a libertária e a poética, entendida esta última como experiência de outridade; não é menos certo que este pensamento, tal como o marxismo, será crítico e criador; conhecimento que abraça a sociedade em sua realidade concreta e em seu movimento geral e a transforma. Razão ativa.
segunda-feira, 22 de outubro de 2012
INVESTIGANDO A VIDA DE UM TEXTO BASTARDO
Paulo Leminski
1
"Joyce é o maior prosador do século XX". Semelhante afirmação está sujeita a dois tipos de contestação, extremos. Não é bem assim. Maior, em que sentido? Afinal, há Proust. Há Kafka. Thomas Mann. – Faulkner! No terreno ideológico, as objeções se multiplicam pela infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideológico. – Solidão aristocrática.– Insensibilidade aos problemas reais do seu povo. – Elitismo hermético.– Intelectualismo pedante e cosmopolita. Do outro lado, cada vez mais abundantes os que objetam. Não é o maior prosador do século XX. É o maior prosador que jamais houve. – Maior que Cervantes? E Quevedo? – E Balzac? – E Stendhal? E Flaubert? – E Dostoievski?! E Tolstoi?! Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser o maior? Primeiro, claro, pelo insuperável domínio dos poderes de som e sentido da língua em que escreve: a máquina material com que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um Stravinski (e esse domínio sobre a arte é um domínio sobre a vida). Depois, pela coerência arquitetônica única que conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra o autor de "Dublinenses" (1906), "Retrato do Artista Quando Jovem" (1914), "Ulysses" (1922) e "Finnegans Wake" (1939). Os dois primeiros livros, um, uma coletânea de contos, e o outro um "romance de formação" (um Bildungsroman, como dizem os alemães, grandes cultores do gênero, que começa, no século V, com as "Confissões", de S. Agostinho), os "Dublinenses" e o "Retrato" ainda cabem dentro da estética textual do século XIX. "Ulysses", porém, é puro século XX, o século das megalópoles, das massas, do comunismo, do fascismo, o século do cinema, do rádio, da psicanálise, da bomba atômica, que encerrou a guerra, que começou no ano em que foi publicado o "Wake". Mas o "Ulysses" ainda é, apesar de tantas inovações, um romance,mesmo que seja o "romance para acabar com todos os romances", do dito célebre. O "Wake" já é um texto para o século XXI, prosa, poesia?, o quê? "Ulysses" foi difícil (é cada vez menos). O "Wake", cápsula do tempo, é ilegível (por enquanto).(1)
A irradiação da obra de Joyce atinge uma área imensa na prosa de ficção do século XX. Suas conquistas técnicas, como o monólogo interior, no "Ulysses", fazem, hoje, parte do repertório comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze seu ofício. Hoje em dia, o monólogo interior já foi incorporado até pela ficção dita comercial, de consumo de massas: em "Xogun", "best-seller" mundial,James Clavell tira um belo partido desse recurso, outrora, de vanguarda."Ulysses"/Joyce é influência determinante na prosa mais criativa deste século. E a lista dos influenciados, clireta ou in-diretamente, impressiona pela excelência literária: Faulkner, Beckett, Virgínia Woolf, Musil ("O Homem Sem Qualidades"), Broch ("A Morte de Virgílio"), Guimarães Rosa, Carlo Emílio Gadda, Augusto Roa Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...
"Joyce é o maior prosador do século XX". Semelhante afirmação está sujeita a dois tipos de contestação, extremos. Não é bem assim. Maior, em que sentido? Afinal, há Proust. Há Kafka. Thomas Mann. – Faulkner! No terreno ideológico, as objeções se multiplicam pela infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideológico. – Solidão aristocrática.– Insensibilidade aos problemas reais do seu povo. – Elitismo hermético.– Intelectualismo pedante e cosmopolita. Do outro lado, cada vez mais abundantes os que objetam. Não é o maior prosador do século XX. É o maior prosador que jamais houve. – Maior que Cervantes? E Quevedo? – E Balzac? – E Stendhal? E Flaubert? – E Dostoievski?! E Tolstoi?! Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser o maior? Primeiro, claro, pelo insuperável domínio dos poderes de som e sentido da língua em que escreve: a máquina material com que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um Stravinski (e esse domínio sobre a arte é um domínio sobre a vida). Depois, pela coerência arquitetônica única que conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra o autor de "Dublinenses" (1906), "Retrato do Artista Quando Jovem" (1914), "Ulysses" (1922) e "Finnegans Wake" (1939). Os dois primeiros livros, um, uma coletânea de contos, e o outro um "romance de formação" (um Bildungsroman, como dizem os alemães, grandes cultores do gênero, que começa, no século V, com as "Confissões", de S. Agostinho), os "Dublinenses" e o "Retrato" ainda cabem dentro da estética textual do século XIX. "Ulysses", porém, é puro século XX, o século das megalópoles, das massas, do comunismo, do fascismo, o século do cinema, do rádio, da psicanálise, da bomba atômica, que encerrou a guerra, que começou no ano em que foi publicado o "Wake". Mas o "Ulysses" ainda é, apesar de tantas inovações, um romance,mesmo que seja o "romance para acabar com todos os romances", do dito célebre. O "Wake" já é um texto para o século XXI, prosa, poesia?, o quê? "Ulysses" foi difícil (é cada vez menos). O "Wake", cápsula do tempo, é ilegível (por enquanto).(1)
A irradiação da obra de Joyce atinge uma área imensa na prosa de ficção do século XX. Suas conquistas técnicas, como o monólogo interior, no "Ulysses", fazem, hoje, parte do repertório comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze seu ofício. Hoje em dia, o monólogo interior já foi incorporado até pela ficção dita comercial, de consumo de massas: em "Xogun", "best-seller" mundial,James Clavell tira um belo partido desse recurso, outrora, de vanguarda."Ulysses"/Joyce é influência determinante na prosa mais criativa deste século. E a lista dos influenciados, clireta ou in-diretamente, impressiona pela excelência literária: Faulkner, Beckett, Virgínia Woolf, Musil ("O Homem Sem Qualidades"), Broch ("A Morte de Virgílio"), Guimarães Rosa, Carlo Emílio Gadda, Augusto Roa Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...
2
Impecável a coerência crescente da engenharia de vôo entre as quatro obras-primas de Joyce.Nos trinta anos entre os "Dublinenses" e o "Wake", sempre escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva arquitetônica.O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda, maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre submissa à Inglaterra, terra de bêbados e excêntricos, de hipócritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um catolicismo retrógrado, castrador, aldeão.O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem horizontes, sem sentido.Joyce só partiu para um exílio espontâneo pela Europa (Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, à distância, sua obsessão pela Irlanda, execrada e idolatrada na própria veemência dessa execração, idéia taxa, "agenbite of inwit", memória, o único tempo possível,Os temas, os tipos, e até frases inteiras se repetem, crescendo, dos "Dublinenses" ao "Wake". Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.
3
"Os Dublinenses": a Irlanda, vista do lado de fora."Retrato do Artista" : a Irlanda, vista de dentro."Ulysses": entrechoque entre o fora e o dentro, "monólogo interior", o Dia, a História."Finnegans Wake": síntese dialética entre o fora e o dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro obras-primas, "Giacomo Joyce" faz as vezes, talvez, de um filho bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de um erro da juventude, de uma fantasia erótica.Alinha, assim, com os livros de poemas, "Chamber Music" e "Pomes Penyeach", performances líricas de uma maestria métrica e verbal extraordinária, mas apenas um pouco mais que isso, no século dos "Cantares" de Ezra Pound e do "Waste Land", de T. S. Eliot.Ou com "Exiles", a peça que Joyce quis fazer, mas o mundo do teatro nunca amou.Mas, por favor, não façamos pouco de "Giacomo Joyce". Quando o escreveu, Joyce, terminando o "Retrato" e grávido do "Ulysses", já era, visivelmente, um dos maiores escritores da Europa.Em "Giacomo Joyce", já dá pra ver o surgimento dos germes do "monólogo interior", a técnica central do "Ulysses" e uma das grandes conquistas da ficção do século XX.Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro romance francês do século passado, "Les Lauriers Sont Coupés" (1887), de Édouard Dujardin, figura de menor importância, ligada ao movimento simbolista.Esse "monólogo interior" parece consistir, sobretudo, numa súbita (e não anunciada) passagem da terceira para a primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta, sem índices do tipo, "disse consigo", "pensou", "refletiu", e outros verbos que acusam a interioridade de um emissor.A ficção clássica, realista, naturalista, repousa sobre a falácia da objetividade, fundada, linguisticamente, na terceira pessoa, no pólo do ELE, o pólo das coisas, como se as próprias coisas falassem de si, em lugar de um narrador. É a linguagem de Deus, o narrador onisciente.O monólogo interior representa um princípio de economia narrativa. E, consequentemente, um aumento de velocidade no tempo do texto e da leitura.Alguns traços dele em "O Vermelho e o Negro", de Stendhal (1830).E em Dostoiesvski (1821-1881).O monólogo interior, de resto, representa uma espécie de carnavalização do eixo pronominal do relato. A tarde está linda. Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Você não perde por esperar. Ela, eu, você: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e da consciência, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no espaçotempo, sem antes nem depois.No quarto bloco de "Giacomo Joyce", a voz que diz "alguém quer falar com a senhorita" já comparece sem aviso, como numa página de "Ulysses".
4
Das circunstâncias particulares em que foi escrito, que fale Richard Ellmann.(2) Da paixão do professor maduro pela bela aluna judia italiana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, não fosse a solicitude de um irmão.Para nós interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que conhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as forças da língua inglesa, num momento fragmentário, em mosaico, isomórfico com a situação pessoal que Joyce vivia naquele momento."Giacomo Joyce" é uma novela, cinematográfica, ideogrâmica, como uma peça Nô, feita de flashes, um grande poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.Neste texto, o arquiteto de "Ulysses" ensaiou, orquestrando relâmpagos.Bem-vindo de volta à casa, Giacomo Joyce.
Impecável a coerência crescente da engenharia de vôo entre as quatro obras-primas de Joyce.Nos trinta anos entre os "Dublinenses" e o "Wake", sempre escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva arquitetônica.O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda, maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre submissa à Inglaterra, terra de bêbados e excêntricos, de hipócritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um catolicismo retrógrado, castrador, aldeão.O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem horizontes, sem sentido.Joyce só partiu para um exílio espontâneo pela Europa (Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, à distância, sua obsessão pela Irlanda, execrada e idolatrada na própria veemência dessa execração, idéia taxa, "agenbite of inwit", memória, o único tempo possível,Os temas, os tipos, e até frases inteiras se repetem, crescendo, dos "Dublinenses" ao "Wake". Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.
3
"Os Dublinenses": a Irlanda, vista do lado de fora."Retrato do Artista" : a Irlanda, vista de dentro."Ulysses": entrechoque entre o fora e o dentro, "monólogo interior", o Dia, a História."Finnegans Wake": síntese dialética entre o fora e o dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro obras-primas, "Giacomo Joyce" faz as vezes, talvez, de um filho bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de um erro da juventude, de uma fantasia erótica.Alinha, assim, com os livros de poemas, "Chamber Music" e "Pomes Penyeach", performances líricas de uma maestria métrica e verbal extraordinária, mas apenas um pouco mais que isso, no século dos "Cantares" de Ezra Pound e do "Waste Land", de T. S. Eliot.Ou com "Exiles", a peça que Joyce quis fazer, mas o mundo do teatro nunca amou.Mas, por favor, não façamos pouco de "Giacomo Joyce". Quando o escreveu, Joyce, terminando o "Retrato" e grávido do "Ulysses", já era, visivelmente, um dos maiores escritores da Europa.Em "Giacomo Joyce", já dá pra ver o surgimento dos germes do "monólogo interior", a técnica central do "Ulysses" e uma das grandes conquistas da ficção do século XX.Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro romance francês do século passado, "Les Lauriers Sont Coupés" (1887), de Édouard Dujardin, figura de menor importância, ligada ao movimento simbolista.Esse "monólogo interior" parece consistir, sobretudo, numa súbita (e não anunciada) passagem da terceira para a primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta, sem índices do tipo, "disse consigo", "pensou", "refletiu", e outros verbos que acusam a interioridade de um emissor.A ficção clássica, realista, naturalista, repousa sobre a falácia da objetividade, fundada, linguisticamente, na terceira pessoa, no pólo do ELE, o pólo das coisas, como se as próprias coisas falassem de si, em lugar de um narrador. É a linguagem de Deus, o narrador onisciente.O monólogo interior representa um princípio de economia narrativa. E, consequentemente, um aumento de velocidade no tempo do texto e da leitura.Alguns traços dele em "O Vermelho e o Negro", de Stendhal (1830).E em Dostoiesvski (1821-1881).O monólogo interior, de resto, representa uma espécie de carnavalização do eixo pronominal do relato. A tarde está linda. Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Você não perde por esperar. Ela, eu, você: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e da consciência, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no espaçotempo, sem antes nem depois.No quarto bloco de "Giacomo Joyce", a voz que diz "alguém quer falar com a senhorita" já comparece sem aviso, como numa página de "Ulysses".
4
Das circunstâncias particulares em que foi escrito, que fale Richard Ellmann.(2) Da paixão do professor maduro pela bela aluna judia italiana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, não fosse a solicitude de um irmão.Para nós interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que conhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as forças da língua inglesa, num momento fragmentário, em mosaico, isomórfico com a situação pessoal que Joyce vivia naquele momento."Giacomo Joyce" é uma novela, cinematográfica, ideogrâmica, como uma peça Nô, feita de flashes, um grande poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.Neste texto, o arquiteto de "Ulysses" ensaiou, orquestrando relâmpagos.Bem-vindo de volta à casa, Giacomo Joyce.
Paulo Leminski Curitiba, 5 de janeiro de 1985.
Do livro "Giacomo Joyce" Editora Brasiliense, 1985
Imagem: Eugenio Recuenco
(1) É preciso entender, é claro, que a incompreensibilidade de uma obra é, como tudo mais, historicamente determinada: questão que sucessivas leituras irão pouco a pouco resolvendo, até criar em torno do corpo estranho certo número suficiente de constelações hermenêuticas, interpretações, diluições, sobretudo, que nos permita pisar no terreno firme da redundância, do já sabido, do "estou começando a entender". Em arte, o novo sempre se manifesta sob a modalidade do difícil.(Nota de Leminski)(2) Referência à introdução de Richard Ellmann ao livro "Giacomo Joyce"
domingo, 21 de outubro de 2012
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Desenho de Giselda
Leirner
|
TODOS CANTAM SUA
SEMANA...
por MAX MARTINS
por MAX MARTINS
Domingo – Compadre,
eufórico, copinho de batida de jenipapo na mão, balançava o copo satisfeito,
sentado na rede armada no quintal. Sacudia a pedra de gelo no copo, semicerrava
os olhos por um instante, como se quisesse ouvir melhor o ciscar das galinhas.
Eram duas horas da tarde. Eu o invejava.
Segunda feira – O
bilhete marcava um encontro para as dez e pedia o endosso de uma promissória.
As dez encontramo-nos. Tudo foi acertado, mais quinhentos cruzeiros que lhe
emprestei. Para os selos.
Terça-Feira –
Debaixo do birô as pontas de cigarro atestavam o meu mau humor. O lápis
arranhava o papel. Os números indo saindo indiferentes, muito cínicos. Iam
alinhando-se na folha comuns diabinhos.
— Clarinha
telefona. Está ainda inconsolável porque domingo não foi a Salinópolis. O
senhor diretor não deu o vale para a compra do maiô. “Fiquei chateadíssima o
domingo todo”. Clarinha tem 22 anos e um precário noivo na Guanabara há seis
meses. Outro dia pediu que eu escrevesse pra ela uma carta “saudosa” ao Luiz.
Clarinha sabe chatear.
Quarta-Feira – José
me escreve do Rio. Fala de coisas “secretíssimas” é a prima Helena, sua atual
amante. Todo mundo sabe. O que se ignora é se ela será a última como ele diz.
“Essa mulher é pra toda vida”. Ela e Mariinha (Mariinha é sua mulher). José é
um pouco complicado, mas boa praça.
Quinta-Feira –
“Camões também tem borradas como toda gente e tem passos no Lusíada que são uma
caceteação, a gente lê porque, por preconceito, quer dizer que leu os Lusíadas.
Eu nunca li o Lusíada inteirinho. Me causa, fica pro dia seguinte e não pego
mais”. Isto foi dito por Mário de Andrade, Escoei a tarde lendo as cartas dele.
Sexta-Feira – Minha
filha menor me pede um laboratório químico de brinquedo para inventar uma droga
que a torne invisível.
O mundo marcha. Com
a idade dela eu queria um avião para descer com ele em frente à escola e raptar
a professora.
Sábado – Porque é
sábado, tome Vinicius. O poeta detesta as mulheres que fazem ginástica. “Ela
era uma madona de formas arredondadas e modelo grande. A mulher não nasceu para
as fitas métricas e, sim, para os homens que as amam”.
— Numa rede,
copinho na mão (batida de maracujá), não mais o compadre. O copo está comigo e
eu na rede, folheando a prova escrita da minha filha mais velha. Bahia, capital
Salvador. Me vem na memória Mario Cravo e o Dr. Rui Barbosa.
— Alguém me
perguntou se vou entrar para Academia. Fico admirado. Se todo mundo pensa que
sou de lá... Não minto nem desminto. A Academia dá um certo cartaz. Na
repartição, no ônibus, entre os vizinhos. Ruim é quando me pedem para escrever
uma mensagem de aniversario para o rádio. “O Sr. Sabe. O Sr. É “imortal”, sabe
manejar as palavras”. Sempre faço as mensagens. Sou uma boa pessoa,
perfeitamente transitável entre meus semelhantes.
— Joca me pede um
soneto para a namorada, Marco Aurélio uma gravata para uma festa. Minha mulher
um pic nic, minha filha uma bicicleta. Maria quer um abraço, Meireles uma carta
de apresentação. Só ainda não dei a bicicleta.
Crônica publicada
no jornal A FOLHA DO NORTE, anos 1940.
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
O JARDIM DO SOLAR
As fontes estão secas e as rosas acabaram.
Incenso da morte. O teu dia aproxima-se.
As peras engordam como pequenos budas.
Uma névoa azul prolonga o lago.
Moves-te através da era dos peixes,
dos presumidos séculos do porco...
A cabeça, os dedos dos pés e das mãos
saem nítidos da sombra. A História
alimenta estas caneluras quebradas,
estas coroas de acantos,
e o corvo vem arranjar as suas vestes.
Tu herdas a urze branca, uma asa de abelha.
Dos suicidas, os lobos da família,
horas de escuridão. Algumas estrelas isoladas
já iluminam os céus.
A aranha na sua própria teia
atravessa o lago. Os vermes
abandonam as suas casas habituais.
As pequenas aves convergem, convergem
com as suas dúvidas para um difícil nascimento.
Sylvia Plath
tradução: Maria de Lourdes Guimarães
imagem: Eugenio Recuenco
Incenso da morte. O teu dia aproxima-se.
As peras engordam como pequenos budas.
Uma névoa azul prolonga o lago.
Moves-te através da era dos peixes,
dos presumidos séculos do porco...
A cabeça, os dedos dos pés e das mãos
saem nítidos da sombra. A História
alimenta estas caneluras quebradas,
estas coroas de acantos,
e o corvo vem arranjar as suas vestes.
Tu herdas a urze branca, uma asa de abelha.
Dos suicidas, os lobos da família,
horas de escuridão. Algumas estrelas isoladas
já iluminam os céus.
A aranha na sua própria teia
atravessa o lago. Os vermes
abandonam as suas casas habituais.
As pequenas aves convergem, convergem
com as suas dúvidas para um difícil nascimento.
Sylvia Plath
tradução: Maria de Lourdes Guimarães
imagem: Eugenio Recuenco
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
ESQUECIMENTO
Há
dúzias de maneiras de se fazer isso –
de uma ponte, da traseira de um barco,
pílulas, cabeça no forno ou
embrulhada no velho casaco mink da mãe,
na garagem, uma pisada no acelerador,
de uma ponte, da traseira de um barco,
pílulas, cabeça no forno ou
embrulhada no velho casaco mink da mãe,
na garagem, uma pisada no acelerador,
o
motor do Cougar rangendo
enquanto ela atravessa.
O que elas deixaram pra trás –
o esboço de um romance protelado, diários,
seus melhores poemas, o bilhete que termina em
agora você acreditará em mim,
descendência de várias épocas, cônjuges
que se preocupavam e ainda choram ou
admitem alívio agora que isso acabou.
Como elas inflamam, os velhos detalhes
expostos à luz com um ícone de vidro colorido – a espingarda na boca, o barbante no dedo do pé ao gatilho; a língua
uma ameixa azul forçada entre os lábios
quando ele se enforcou nos aposentos dela –
(para nós isso nunca acaba)
que roubou a cena, cortou o nariz,
puxou a tomada da banheira na água rósea,
quebrou janelas, fechou o gás,
passeou de ambulância, apenas minutos depois
de carregar o corpo rebentado de más notícias.
Estamos, cada um de nós, presos na armadilha deste enredo.
Deixados para trás, não há esquecimento.
enquanto ela atravessa.
O que elas deixaram pra trás –
o esboço de um romance protelado, diários,
seus melhores poemas, o bilhete que termina em
agora você acreditará em mim,
descendência de várias épocas, cônjuges
que se preocupavam e ainda choram ou
admitem alívio agora que isso acabou.
Como elas inflamam, os velhos detalhes
expostos à luz com um ícone de vidro colorido – a espingarda na boca, o barbante no dedo do pé ao gatilho; a língua
uma ameixa azul forçada entre os lábios
quando ele se enforcou nos aposentos dela –
(para nós isso nunca acaba)
que roubou a cena, cortou o nariz,
puxou a tomada da banheira na água rósea,
quebrou janelas, fechou o gás,
passeou de ambulância, apenas minutos depois
de carregar o corpo rebentado de más notícias.
Estamos, cada um de nós, presos na armadilha deste enredo.
Deixados para trás, não há esquecimento.
Maxine Kumin
tradução: Ney Ferraz Paiva
imagem: Eugenio Recuenco
tradução: Ney Ferraz Paiva
imagem: Eugenio Recuenco
terça-feira, 2 de outubro de 2012
CONTINUUM: UM POEMA DE AMOR
indo para a videira com
a escada de mão e o balde na
primeira chuva cortante
de setembro chuva
embebendo o cisco
Maxine Kumin
tradução: Ney Ferraz Paiva
imagem: Tim Walker
indo para a videira com
a escada de mão e o balde na
primeira chuva cortante
de setembro chuva
embebendo o cisco
num alegre ruído o céu
levantando-se como vapor
de um tacho de uvas
a ferver selvagens uvas azedas
malvadamente altas envolvidas num sumo
de teia de aranha e espuma de inseto
indo para videira ano
após ano nós dois com uma escada de mão e balde manchado
pela chuva de uvas
nossa secreta linguagem
levantando-se como vapor
de um tacho de uvas
a ferver selvagens uvas azedas
malvadamente altas envolvidas num sumo
de teia de aranha e espuma de inseto
indo para videira ano
após ano nós dois com uma escada de mão e balde manchado
pela chuva de uvas
nossa secreta linguagem
tradução: Ney Ferraz Paiva
imagem: Tim Walker
domingo, 23 de setembro de 2012
1.
Primeiros sinais da manhã
na madrugada ainda de mão fechada
sobre a garganta das árvores.
na madrugada ainda de mão fechada
sobre a garganta das árvores.
No escuro antes da alba
de flautas geladas,
flui mais que o orvalho
nublado do piar de pássaros:
uma, duas, três vezes
três aves até ser incontável,
por toda parte, um parque
de canoros fantasmas
na hora da nossa sorte,
amém.
de flautas geladas,
flui mais que o orvalho
nublado do piar de pássaros:
uma, duas, três vezes
três aves até ser incontável,
por toda parte, um parque
de canoros fantasmas
na hora da nossa sorte,
amém.
Morte de horas atrás,
azar recente do ontem
irreal, absurdo
(como a palavra “azar”
afastada do vocabulário
dos supersticiosos).
azar recente do ontem
irreal, absurdo
(como a palavra “azar”
afastada do vocabulário
dos supersticiosos).
Azar, azar, azar.
Piar, piar, piar
e retinir do bronze de sinos
na distância matinal,
enquanto tão próximas
são as dissonantes aves
com o silêncio da solidão
a dois no quarto.
e retinir do bronze de sinos
na distância matinal,
enquanto tão próximas
são as dissonantes aves
com o silêncio da solidão
a dois no quarto.
Um oculto coro
perto
longe
como agora estamos,
unidos
separados
apesar da palavra “amem”
sem o assento de Deus
para sempre esmagando-a
também (o trono da divindade
vazio como a dispensa dos pobres).
perto
longe
como agora estamos,
unidos
separados
apesar da palavra “amem”
sem o assento de Deus
para sempre esmagando-a
também (o trono da divindade
vazio como a dispensa dos pobres).
2.
Os excitados passarinhos
(assim,
no diminutivo das penas)
sabem do coração cerrado
da noite que passou?…
no diminutivo das penas)
sabem do coração cerrado
da noite que passou?…
Na manhã de empoeiradas
árvores,
o rio claro de presente
sucede o escuro mar
do que já foi,
do que ficou para trás,
e não podem saber,
os pássaros,
sobre seus anúncios de cantores
soarem mais fúnebres do que o dobrar
das matinas aos dois ouvidos humanos
divididos pelas sombras do que foi dito
e do que foi calado antes da alva,
na hora anterior ao amanhecer
dos proclamas festivos
de aves invisíveis
como o canário da infância.
o rio claro de presente
sucede o escuro mar
do que já foi,
do que ficou para trás,
e não podem saber,
os pássaros,
sobre seus anúncios de cantores
soarem mais fúnebres do que o dobrar
das matinas aos dois ouvidos humanos
divididos pelas sombras do que foi dito
e do que foi calado antes da alva,
na hora anterior ao amanhecer
dos proclamas festivos
de aves invisíveis
como o canário da infância.
De harmonia furtiva,
a manhã nova continua o breve instante
de acreditar matinalmente em Deus,
para logo maquinalmente desacreditar
Dele,
no seguimento do dia ateu das longas
iniqüidades permitidas se tudo
é apenas e tão somente
o presente interminável
que finge contar as horas
sem contas a ajustar
com nenhuma divindade boa,
má,
antiga,
nova,
impiedosa,
misericordiosa
etc.
a manhã nova continua o breve instante
de acreditar matinalmente em Deus,
para logo maquinalmente desacreditar
Dele,
no seguimento do dia ateu das longas
iniqüidades permitidas se tudo
é apenas e tão somente
o presente interminável
que finge contar as horas
sem contas a ajustar
com nenhuma divindade boa,
má,
antiga,
nova,
impiedosa,
misericordiosa
etc.
3.
Essa também é a hora
de claramente perceber
que tudo se passa na fixidez
do permanente agora
paradoxal nas palavras
ontem
anteontem
semana passada
mês findo
ano passado
décadas atrás…
de claramente perceber
que tudo se passa na fixidez
do permanente agora
paradoxal nas palavras
ontem
anteontem
semana passada
mês findo
ano passado
décadas atrás…
Não há fuga do tempo
que não apaga
o que nem parecia
vir a ser sob as ondas
já borrado?…
que não apaga
o que nem parecia
vir a ser sob as ondas
já borrado?…
Qual era a praia alegre
do ultrapassado dia
datado no falso calendário?
do ultrapassado dia
datado no falso calendário?
“Nos separamos na manhã
de tanto de tanto de ano nenhum”,
está escrito no diário
que será esquecido num navio
afundado na mais funda fossa
dos oceanos de infelicidade.
de tanto de tanto de ano nenhum”,
está escrito no diário
que será esquecido num navio
afundado na mais funda fossa
dos oceanos de infelicidade.
4.
Há (efetivamente há)
o despertar do despertar
menos tímido
do que a própria aurora tateante
sobre as paredes sujas
e as limpas notas dos pássaros
cantando contra os sinos.
o despertar do despertar
menos tímido
do que a própria aurora tateante
sobre as paredes sujas
e as limpas notas dos pássaros
cantando contra os sinos.
As aves avisam sobre um
nascimento
— o da manhã —
e não sobre a morte sem céu
nem inferno,
no vazio de cima e no deserto de baixo
— Tabula Esmeralda —
de janela com vista para a rua lavada
da noite chuvosa.
— o da manhã —
e não sobre a morte sem céu
nem inferno,
no vazio de cima e no deserto de baixo
— Tabula Esmeralda —
de janela com vista para a rua lavada
da noite chuvosa.
A manhã?
A manhã não espera por
nada,
nem traz coisa alguma para ninguém,
oca deusa trocando de roupa
à vista das inocentes aves
cantando porque não sabem
fazer outra coisa.
nem traz coisa alguma para ninguém,
oca deusa trocando de roupa
à vista das inocentes aves
cantando porque não sabem
fazer outra coisa.
Como um autômato de corda
de três voltas,
ela troca de túnica nestas primeiras
horas brancas.
E, como tarde dourada,
veste para a negra noite
um longo entardecer em honra
da festa e do luto,
do mirto e do lírio dos campos.
Porém são, todas, a mesma manhã
disfarçada,
a mesma natureza indiferente
a que a vejam nua,
vestida de sol ou velada
pelo eclipse da porta
do tempo que passa
(ou não passa?)…
de três voltas,
ela troca de túnica nestas primeiras
horas brancas.
E, como tarde dourada,
veste para a negra noite
um longo entardecer em honra
da festa e do luto,
do mirto e do lírio dos campos.
Porém são, todas, a mesma manhã
disfarçada,
a mesma natureza indiferente
a que a vejam nua,
vestida de sol ou velada
pelo eclipse da porta
do tempo que passa
(ou não passa?)…
5.
Vai ser dada a prima volta
do parafuso da manhã
em marcha como marcham
as manhãs de relógios
sem ponteiros
marcando mudanças
somente para a ilusão
da luz neste momento
projetada sobre as árvores.
do parafuso da manhã
em marcha como marcham
as manhãs de relógios
sem ponteiros
marcando mudanças
somente para a ilusão
da luz neste momento
projetada sobre as árvores.
É manhã!: a primeira sessão
do cinema da realidade:
baixa comédia, alto drama,
beleza, feiúra, claridade,
obscuros mictórios públicos,
jardins luxuriantes,
praças apertadas,
ruínas e construções novas,
de cima a baixo também vestidas
de túnicas… ó Manhã!,
que mudanças poderias trazer
para isso tudo que surge
sob os auspícios
claros, claríssimos,
dos trinados da melro de ouro
de Bizâncio sem esperança
ao enviar seus sábios
ao encontro de um mar
de bárbaros?
do cinema da realidade:
baixa comédia, alto drama,
beleza, feiúra, claridade,
obscuros mictórios públicos,
jardins luxuriantes,
praças apertadas,
ruínas e construções novas,
de cima a baixo também vestidas
de túnicas… ó Manhã!,
que mudanças poderias trazer
para isso tudo que surge
sob os auspícios
claros, claríssimos,
dos trinados da melro de ouro
de Bizâncio sem esperança
ao enviar seus sábios
ao encontro de um mar
de bárbaros?
_______________________________
Fragmento do livro Mattinata, de Fernando Monteiro, a quem sempre me refiro como um dos três melhores poetas brasileiros vivos - ainda que a literatura permaneça morta para o grande público no Brasil. E daí? O que se deve entender por isso? Que tudo se amplifica na Grande Máquina de Reprodução da Cultura do Entretenimento, financiada inclusive pelos governos dos estados onde menos se lê? Sim é isso mesmo. Mas o importante aqui é saber que duas editoras se unem para fazer passar essa extraordinária poesia por outros mares que não estes sem rotas-e-encontros em que a mediocridae segue embarcada em direção aos abismos. Trata-se da primeira co-edição de Nephelibata Edições (SC) e Edições Sol Negro (RN), unindo duas pontas extremas do país em torno da literatura. O livro se compõe de dois poemas longos — Mattinata e Para que ser poeta em tempos de penúria? — e um mais curto (Escritos no túmulo), cuja forma semelha à das lápides de necrópoles romanas. O poema que aqui aparece em fragmento é formado por um total de 25 estâncias. A capa de Mattinata é de outro extraordinário artista ignorado pelo grande público, Francisco Brennand.
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
CAUSAS E RAZÕES DAS ILHAS DESERTAS
por Gilles Deleuze
Os geógrafos dizem que há dois
tipos de ilhas. Eis uma informação preciosa para a imaginação, porque ela aí
encontra uma confirmação daquilo que, por outro lado, já sabia. Não é o único
caso em que a ciência torna a mitologia mais material e em que a mitologia
torna a ciência mais animada. As ilhas continentais são ilhas
acidentais, ilhas derivadas: estão separadas de um continente, nasceram de uma
desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, sobrevivem pela absorção daquilo
que as retinha. As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais:
ora são constituídas de corais, apresentando-nos um verdadeiro organismo, ora
surgem de erupções submarinas, trazendo ao ar livre um movimento vindo de
baixo; algumas emergem lentamente, outras também desaparecem e retornam sem que
haja tempo para anexa-las. Esses dois
tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão testemunho de uma oposição
profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lembrar que o mar está sobre
a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estruturas mais elevadas; as
outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e congrega suas forças
para romper a superfície. Reconheçamos que os elementos, em geral, se detestam,
que eles têm horror uns dos outros. Nada de tranquilizador nisso tudo. Do mesmo
modo, deve parecer-nos filosoficamente normal que uma ilha esteja
deserta. O homem só pode viver bem, e em segurança, ao supor findo (pelo menos
dominado) o combate vivo entre a terra e o mar. Ele quer chamar esses dois
elementos de pai e mãe, distribuindo os sexos à medida do seu devaneio. Em
parte, ele deve persuadir-se de que não existe combate desse gênero; em parte,
deve fazer de conta que esse combate já não ocorre. De um modo ou de outro, a
existência das ilhas é a negação de um tal ponto de vista, de um tal esforço e
de uma tal convicção. Será sempre causa de espanto que a Inglaterra seja
povoada, já que o homem só pode viver sobre uma ilha esquecendo o que ela
representa. Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem.
Mas tudo o que nos dizia a
geografia sobre dois topos de ilhas, a imaginação já o sabia por sua conta e de
uma outra maneira. O impulso [NT] do
homem, esse que o conduz em direção às ilhas, retoma o duplo movimento que
produz as ilhas em si mesmas. Sonhar ilhas, com angústia ou alegria, pouco
importa, é sonhar que se está separando, ou que já se está separado, longe dos
continentes, que se está só ou perdido; ou, então, é sonhar que se parte de
zero, que se recria, que se recomeça. Havia ilhas derivadas, mas a ilha é também
aquilo em direção ao que se deriva; e havia ilhas originárias, mas a ilha é
também a origem, a origem radical e absoluta. Separação e recriação não se
excluem, sem dúvida: é preciso ocupar-se quando se está separado, é preferível
separar-se quando se quer recriar; contudo, uma das duas tendências domina
sempre. Assim, o movimento da imaginação das ilhas retoma o movimento de sua
produção, mas ele não tem o mesmo objeto. É o mesmo movimento, mas não o mesmo
móbil. Já não é a ilha que se separou do continente, é o homem que, estando
sobre a ilha, encontra-se separado do mundo. Já não é a ilha que se cria do
fundo da terra através das águas, é o homem que recria o mundo a partir da ilha
e sobre as águas. Então, por sua conta, o homem retoma um e outro dos movimentos
da ilha e o assume sobre uma ilha que, justamente, não tem esse movimento:
pode-se derivar em direção a uma ilha todavia original, e criar numa ilha
tão-somente derivada. Pensando bem, encontrar-se-á aí uma nova razão pela qual
toda ilha é e permanecerá teoricamente deserta.
Para que uma ilha deixe de ser
deserta, não basta, com efeito, que ela seja habitada. Se é verdade que o
movimento do homem em direção à ilha retoma o movimento da ilha antes dos
homens, ela pode ser ocupada por homens em geral, mas é ainda deserta,
mais deserta ainda, desde que eles estejam suficientemente, isto é, absolutamente separados, desde que eles sejam suficientemente, isto é,
absolutamente criadores. Sem dúvida, de fato, isso nunca é assim, se bem que o
náufrago se aproxime de uma tal condição. Mas, para que isso seja assim, há de
se impelir na imaginação o movimento que conduz o homem à ilha. É só em aparência que um tal
movimento vem romper o deserto da ilha; na verdade, ele retoma e prolonga o
impulso que a produzia como ilha deserta; longe de compromete-la, esse
movimento leva-a à sua perfeição, ao seu apogeu. Em certas condições que o atam
ao próprio movimento das coisas, o homem não rompe o deserto, sacraliza-o. Os
homens que vêm à ilha, ocupam-na realmente e a povoam; mas, na verdade, se
estivessem suficientemente separados, se fossem suficientemente criadores, eles
apenas dariam à ilha uma imagem dinâmica dela mesma, uma consciência do
movimento que a produziu, de modo que, através do homem, a ilha, enfim, tomaria
consciência de si como deserta e sem homens. A ilha seria tão-somente o sonho
do homem, e o homem seria a pura consciência da ilha. Para tanto, ainda uma
vez, uma única condição: seria preciso que o homem se sujeitasse ao movimento
que o conduz à ilha, movimento que prolonga e retoma o impulso que produzia a
ilha. Então, a geografia se coligaria com o imaginário. Desse modo, a única
resposta à questão cara aos antigos exploradores (“que seres existem na ilha
deserta?”) é que o homem já existe aí, mas um homem pouco comum, um homem
absolutamente separado, absolutamente criador, uma ideia de homem, em suma, um
protótipo, um homem que seria quase um deus, uma mulher que seria uma deusa, um
grande Amnésico, um puro Artista, consciência da Terra e do Oceano, um enorme
ciclone, uma bela bruxa, uma estátua da Ilha de Páscoa. Eis o homem que precede
a si mesmo. Na ilha deserta, uma tal criatura seria a própria ilha deserta na
medida em que ela se imagina e se reflete em seu movimento primeiro.
Consciência da terra e do oceano, tal é a ilha deserta, pronta para recomeçar o
mundo. Porém, dado que os homens, mesmo voluntários, não são idênticos ao
movimento que os põe na ilha, eles não reatam o impulso que a produz; é sempre
de fora que encontram a ilha e o fato de sua presença contraria, nela, o
deserto. Portanto, a unidade da ilha deserta e do seu habitante não é real, mas
imaginária, como a ideia de ver atrás da cortina quando ali não se está. E
mais: é duvidoso que a imaginação individual possa por si mesma elevar-se até
essa admirável identidade; veremos que isso requer a imaginação coletiva no que
ela tem de mais profundo, nos ritos e nas mitologias.
A confirmação, pelo menos
negativa, de tudo isso pode ser encontrada nos próprios fatos, quando se pensa
naquilo que uma ilha deserta é realmente, geograficamente. A ilha e ilha
deserta, com mais forte razão, são noções extremamente pobres ou frágeis do
ponto de vista da geografia; elas têm apenas um fraco teor científico. Isso é
um privilégio para elas. Não há unidade objetiva alguma no conjunto das ilhas.
Menos ainda nas ilhas desertas. Sem dúvida, a ilha deserta pode ter um solo
extremamente pobre. Deserta, ela pode ser um deserto, mas isso não é
necessário. Se o verdadeiro deserto é inabitado, isso ocorre na medida em que
não apresenta as condições de direito que tornariam possível a vida, vida
vegetal, anima ou humana. Contrariamente, que a ilha deserta esteja inabitada
mantém-se como puro fato devido às circunstâncias, isto é, aos arredores. A
ilha é o que o mar circunda e aquilo em torno do que se dão voltas, é como um
ovo. Ovo do mar, ela é arredondada. Tudo se passa como se ela tivesse posto em
torno de si o seu deserto, fora dela. O que está deserto é o oceano que a
circunda inteiramente. É em virtude das circunstâncias, por razões distintas do
princípio do qual ela depende, que os navios passam ao largo e não param. Mais
do que ser um deserto, ela é desertada. Desse modo, mesmo que ela, em si mesma,
possa conter as mais vivas fontes, a fauna mais ágil, a flora mais colorida, os
mais surpreendentes alimentos, os mais vivos selvagens e, como seu mais
precioso fruto, o náufrago, além de contar, finalmente, por um instante, com o
barco que a vem procurar, apesar de tudo isso ela não deixa de ser a ilha deserta.
Para modificar tal situação, seria preciso operar uma redistribuição geral dos
continentes, do estado dos mares, das linhas de navegação.
Novamente, isso quer dizer que
a essência da ilha deserta é imaginária e não real, mitológica e não
geográfica. Simultaneamente, seu destino está submetido às condições humanas
que tornam possível uma mitologia. A mitologia não nasceu de uma simples
vontade, e os povos admitiram bem cedo não compreender seus mitos. É nesse
mesmo momento que uma literatura começa. A literatura é o ensaio que
procura interpretar muito engenhosamente os mitos que já não se compreende, no
momento em que eles já não são compreendidos, porque já não se sabe sonha-los e
nem reproduzi-los. A literatura é o concurso dos contra-sensos que a consciência
opera naturalmente e necessariamente sobre os temas do inconsciente; como todo
concurso, ela tem seus preços. Seria preciso mostrar como a mitologia entra em
falência nesse sentido e morre em dois romances clássicos da ilha deserta,
Robinson e Suzana. Suzana e o Pacífico [DL]
acentua o aspecto separado das ilhas, a separação da moça que aí se encontra; Robinson [NT] acentua o outro aspecto, o da
criação, o do recomeço. É
verdade que são bem diferentes as maneiras pelas quais a mitologia entra em
falência nesses dois casos. Com a Suzana de Giraudoux a mitologia sofre a morte
mais bonita, a mais graciosa. Com Robinson, a mais penosa. É difícil imaginar um romance
tão aborrecido, e é uma tristeza ver ainda crianças lendo-o. A visão de mundo
de Robinson reside exclusivamente na propriedade e jamais se viu proprietário
tão moralizante. A recriação mítica do mundo a partir da ilha deserta cede
lugar à recomposição da vida cotidiana burguesa a partir de um capital. Tudo é
tirado do barco, nada é inventado, tudo é penosamente aplicado na ilha. O tempo
é tão-só um tempo necessário ao capital para obter um ganho ao final de um
trabalho. E a função providencial de Deus é garantir o lucro. Deus reconhece os
seus, as pessoas de bem, porque elas têm belas propriedades, ao passo que os
maus têm péssimas propriedades, maltratadas. A companhia de Robinson não é Eva,
mas Sexta Feira, dócil ao trabalho, feliz por ser escravo, muito rapidamente
enfastiado de antropofagia. Todo leitor sadio sonharia vê-lo finalmente comer Robinson.
Esse romance representa a melhor ilustração da tese que afirma o liame entre
capitalismo e protestantismo. Robinson Crusoe desenvolve a falência e a
morte da mitologia no puritanismo. Tudo muda com Suzana. Com ela, a ilha
deserta é um conservatório de objetos já prontos, de objetos luxuosos. A ilha
já é imediatamente portadora daquilo que a civilização levou séculos para
produzir, para aperfeiçoar, amadurecer. Porém, com Suzana, a mitologia
também morre, é verdade que de uma maneira parisiense. Suzana nada tem para
recriar; a ilha deserta lhe dá o duplo de todos os objetos da cidade, de todas
as vitrines de magazines, duplo inconsistente, separado do real, pois ele não
recebe a solidez que os objetos ganham ordinariamente nas relações humanas, no
seio das vendas e compras, das trocas e dos presentes. É uma moça insípida.
Seus companheiros não são Adão, mas jovens cadáveres; e quando reencontrar os
homens vivos, ela os amará com um amor uniforme, à maneira de párocos, como se
o amor fosse o limiar mínimo de sua percepção.
Trata-se de reencontrar a vida
mitológica da ilha deserta. Contudo, na própria falência, Robinson nos dá uma
indicação: inicialmente, ele precisaria de um capital. Quanto à Suzana, antes
de tudo, ela estava separada. E nem ele nem ela, finalmente, poderiam ser o
elemento de um par. É preciso restituir essas três indicações à sua pureza
mitológica e retornar ao movimento da imaginação que faz da ilha deserta um
modelo, um protótipo da alma coletiva. Primeiramente, é verdade que não se
opera a própria criação a partir da ilha deserta, mas a re-criação, não o
começo, mas o re-começo. Ela é a origem, mas origem segunda. A partir dela tudo
recomeça. A ilha é o mínimo necessário para esse recomeço, o material
sobrevivente da primeira origem, o núcleo ou o ovo irradiante que deve bastar
para re-produzir tudo. Evidentemente, isso tudo supõe que a formação do mundo
se dê em dois tempos, em dois estágios, nascimento e renascimento; supõe que o
segundo seja tão necessário e essencial quanto o primeiro; supõe, portanto, que
o primeiro esteja necessariamente comprometido, que ele tenha nascido para uma
retomada e já re-negado numa catástrofe. Somente há um segundo nascimento
porque houve uma catástrofe e, inversamente, há catástrofe após a origem porque
deve haver, desde a origem, um segundo nascimento. Podemos encontrar em nós a
fonte desse tema: para apreciar a vida, nós a alcançamos não em sua produção,
mas em sua reprodução. O animal, cujo modo de reprodução se ignora, ainda não
ocupou lugar entre os vivos. Não basta que tudo comece, é preciso que tudo se
repita, uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis. O segundo momento
não é aquele que sucede o primeiro, mas é o reaparecimento do primeiro
quando se encerrou o ciclo dos outros momentos. A segunda origem, portanto, é
mais essencial que a primeira, porque ela nos dá a lei da série, a lei da
repetição, da qual a primeira origem apenas nos dava os momentos. Porém, mais
ainda do que nos nossos devaneios, esse tema se manifesta em todas as
mitologias. Ele é bem conhecido como mito do dilúvio. O arco se detém na única
porção da terra que não está submersa, lugar circular e sagrado de onde o mundo
recomeça. É uma ilha ou uma montanha, ambas ao mesmo tempo, pois a ilha é uma
montanha marinha e a montanha é uma ilha ainda seca. Eis a primeira criação
tomada numa recriação que se concentra numa terra santa ou no meio do oceano.
Segunda origem do mundo, mais importante do que a primeira é a ilha santa:
muitos mitos nos dizem que aí se encontra um ovo, um ovo cósmico. Como ela
forma uma segunda origem, ela é confiada ao homem, não aos deuses. Ela está
separada, separada por toda a espessura do dilúvio. O oceano e a água, com
efeito, são o princípio de uma tal segregação que, nas ilhas santas, são
constituídas por comunidades exclusivamente femininas, como as de Circe e
Calipso. Enfim, o começo partia de Deus e de um par, mas não o recomeço, que
parte de um ovo, de modo que a maternidade mitológica é freqüentemente uma
partenogênese. A ideia de uma segunda origem dá todo seu sentido à ilha
deserta, sobrevivência da ilha santa num mundo que tarda para recomeçar. No
ideal do recomeço há algo que precede o próprio começo, que o retoma para
aprofunda-lo e recua-lo no tempo. A ilha deserta é a matéria desse imemorial ou
desse mais profundo.
Tradução de
Luiz B. L. Orlandi
Texto manuscrito dos anos 50, inicialmente destinado a um número especial
consagrado às ilhas desertas pelo magazine Nouveau Fémina. Esse texto
nunca foi publicado. Na bibliografia esboçada por Deleuze em 1989 ele figura
sob a rubrica “Diferença e repetição”.
DL [L. Giraudoux, Suzanne et lê
Pacifique , Paris, Grasset, 1922, reeditado em Oeuvres
romanesques complètes,vol. I, Paris, Gallimard, col. “Bibliothèque de la Pléiade ”].
NT [Daniel Defoe (1660-1731), Robinson Crusoe (1719-1722)].
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
A alta costura de Giselle Ribeiro vai parar no Hospício
Prêt-à-porter
Primeiro leia este livro
sem compromisso maior.
E se algum poema
nele contido
lhe vestir bem,
sem precisar de ajustes,
ele será todo seu.
Para ir à igreja,
um encontro marcado,
um passeio no bosque,
uma reunião de negócios,
piscina, praia ou cinema.
Para fazer cooper, yoga
ou jogar sinuca.
Afinal, para que mais serve o poema?
Tarefas da vida cotidiana
Lavamos
todos os dias
a palavra amor
até desbotar.
Passamos a ferro
todos os dias
a palavra desejo
até evaporar.
Depois,
lavamos as mãos.
E quando a iluminura
do amor se apaga,
gradativamente,
dizemos aos sonhos:
a convivência mata.
Desintoxicação
ela amava as coisas.
As máquinas todas
eram as suas pulsações:
máquina de calcular
máquina de escrever
máquina de fazer filmes e fotografias
máquina de lavar
máquina de secar...
Mas quando viu
que o coração e os olhos
já estavam secos
Ela quis se descoisar.
Giselle Ribeiro, Pequeno livro de poemas para vestir bem, 2011.
imagem: ney ferraz paiva
domingo, 16 de setembro de 2012
Uma criança
Em pensamento, minha mãe montava a casa para seus pais. Isso dá uma biblioteca magnífica, disse ela. De fato, era uma biblioteca magnífica aquela em que, já poucas semanas depois de pago o adiantamento do aluguel, e graças a minha mãe e à mudança para ali de meus avós, se transformou o cômodo da casa de Ettendorf que dava para o sudeste. Com um adiantamento pago pelo editor, um carpinteiro foi incumbido de construir o que meu avô projetara. Um caminhão de livros e manuscritos estacionou diante da casa e as estantes se encheram. Desde o início da juventude, desde a Basiléia, como sempre ele dizia, meu avô juntava livros, não tinham dinheiro, mas cada vez um número maior de livros. Milhares deles. No escritório da cabana do Mirtel não havia lugar para eles, que, em grande parte tinham sido abrigados no sótão. Agora, as paredes do novo escritório em Ettendorf estavam lotadas. Eu nem sabia que tinha juntado tanta riqueza intelectual, disse ele, e tanta pobreza também. Hegel, Kant, Schopenhauer eram nomes que eu conhecia e que para mim sempre haviam ocultado enorme mistério. E Shakespeare, então!, disse meu avô. São luminares, inatingíveis. Sentado ali, ele fumava seu cachimbo, tinha sido melhor eu não ter me matado, mas esperado por ele, disse a mim mesmo. Estávamos prestes, a partir de Ettendorf, a descortinar um novo paraíso para nós, como o de Seekirchen, o fato de ser agora um paraíso bávaro, e não austríaco, já não incomodava. A lembrança de Seekirchen e, no tocante ao meu avô, a de Viena continuavam a ser fundamentais. Mas pouco a pouco a transição para o idílio bávaro se completou com sucesso. Teve lá suas grandes vantagens. Decerto a Baviera era católica, arquicatólica, e nazista, arquinazista, mas como na região em torno do Wallersee, estava ali em terras pré-alpinas, e portanto inteiramente profícuas às intenções do meu avô; seu pensamento, ao contrário do que se temia, não foi sufocado, mas ganhou asas, como se verificou mais tarde. Ele trabalhava com ímpeto maior do que em Seekirchen e afirmava ter, de fato, entrado agora em sua fase decisiva como escritor, alcançara determinado patamar filosófico. Eu não sabia o que aquilo significava. Sempre se dizia apenas que ele estava trabalhando em seu grande romance, e minha avó sublinhava essa observação constantemente sussurrada dizendo vai ter mais de mil páginas. Para mim era um completo mistério como uma pessoa podia se sentar e escrever mil páginas. Que escrevesse cem já me era totalmente incompreensível. Por outro lado, ainda ouço meu avô dizendo que tudo que escreve é besteira. De onde, então, ele tinha ido tirar aquela ideia de escrever mil páginas de besteira? Ele sempre tinha ideias as mais incríveis, mas sentia que elas eram o motivo do seu fracasso. Fracassamos todos, dizia sempre. E esse é também o meu pensamento central constante. Naturalmente, eu não imaginava o que era fracassar, o que isso significava ou podia significar, embora eu próprio atravessasse um processo rumo ao fracasso, ininterrupto, fracassava inclusive com incrível consistência: na escola. Meus esforços de nada adiantavam, minhas tentativas sempre renovadas de me corrigir morriam ainda no nascedouro. Os professores não tinham paciência e me afundavam cada vez mais no pântano do qual deveriam me resgatar. Pisavam-me onde podiam. Também eles gostavam de me chamar de Esterreicher, atormentavam-me com isso, perseguiam-me dia e noite, eu não tinha sossego. Errava na hora de somar, errava ao dividir e logo já não distinguia o direito do avesso. Escrevia com uma caligrafia que, tão logo entregue a tarefa, era alardeada como exemplo supremo de dispersão e negligência ilimitadas. Praticamente não se passava um único dia em que eu não tivesse de me apresentar para levar alguns golpes de vara. Sabia por quê, mas nãos sabia como fora parar ali. Logo fui relegado à categoria dos chamados piores alunos, à horda dos idiotas, que acreditavam que eu fosse um deles. Para mim não havia escapatória. Os ditos inteligentes me evitavam. Não demorou muito para que eu percebesse que não pertencia nem a um grupo nem ao outro, que não me encaixava em nenhum deles. A isso veio se somar o fato de eu não ter pais de respeito, como se dizia, de ser, por assim dizer, o rebento de gente pobre, filho de ninguém. Não tínhamos uma casa, apenas morávamos numa casa, e aquilo já dizia tudo.
Thomas Bernhard, Origem, Companhia das Letras, 2006.
Foto: Erika Smith
Em pensamento, minha mãe montava a casa para seus pais. Isso dá uma biblioteca magnífica, disse ela. De fato, era uma biblioteca magnífica aquela em que, já poucas semanas depois de pago o adiantamento do aluguel, e graças a minha mãe e à mudança para ali de meus avós, se transformou o cômodo da casa de Ettendorf que dava para o sudeste. Com um adiantamento pago pelo editor, um carpinteiro foi incumbido de construir o que meu avô projetara. Um caminhão de livros e manuscritos estacionou diante da casa e as estantes se encheram. Desde o início da juventude, desde a Basiléia, como sempre ele dizia, meu avô juntava livros, não tinham dinheiro, mas cada vez um número maior de livros. Milhares deles. No escritório da cabana do Mirtel não havia lugar para eles, que, em grande parte tinham sido abrigados no sótão. Agora, as paredes do novo escritório em Ettendorf estavam lotadas. Eu nem sabia que tinha juntado tanta riqueza intelectual, disse ele, e tanta pobreza também. Hegel, Kant, Schopenhauer eram nomes que eu conhecia e que para mim sempre haviam ocultado enorme mistério. E Shakespeare, então!, disse meu avô. São luminares, inatingíveis. Sentado ali, ele fumava seu cachimbo, tinha sido melhor eu não ter me matado, mas esperado por ele, disse a mim mesmo. Estávamos prestes, a partir de Ettendorf, a descortinar um novo paraíso para nós, como o de Seekirchen, o fato de ser agora um paraíso bávaro, e não austríaco, já não incomodava. A lembrança de Seekirchen e, no tocante ao meu avô, a de Viena continuavam a ser fundamentais. Mas pouco a pouco a transição para o idílio bávaro se completou com sucesso. Teve lá suas grandes vantagens. Decerto a Baviera era católica, arquicatólica, e nazista, arquinazista, mas como na região em torno do Wallersee, estava ali em terras pré-alpinas, e portanto inteiramente profícuas às intenções do meu avô; seu pensamento, ao contrário do que se temia, não foi sufocado, mas ganhou asas, como se verificou mais tarde. Ele trabalhava com ímpeto maior do que em Seekirchen e afirmava ter, de fato, entrado agora em sua fase decisiva como escritor, alcançara determinado patamar filosófico. Eu não sabia o que aquilo significava. Sempre se dizia apenas que ele estava trabalhando em seu grande romance, e minha avó sublinhava essa observação constantemente sussurrada dizendo vai ter mais de mil páginas. Para mim era um completo mistério como uma pessoa podia se sentar e escrever mil páginas. Que escrevesse cem já me era totalmente incompreensível. Por outro lado, ainda ouço meu avô dizendo que tudo que escreve é besteira. De onde, então, ele tinha ido tirar aquela ideia de escrever mil páginas de besteira? Ele sempre tinha ideias as mais incríveis, mas sentia que elas eram o motivo do seu fracasso. Fracassamos todos, dizia sempre. E esse é também o meu pensamento central constante. Naturalmente, eu não imaginava o que era fracassar, o que isso significava ou podia significar, embora eu próprio atravessasse um processo rumo ao fracasso, ininterrupto, fracassava inclusive com incrível consistência: na escola. Meus esforços de nada adiantavam, minhas tentativas sempre renovadas de me corrigir morriam ainda no nascedouro. Os professores não tinham paciência e me afundavam cada vez mais no pântano do qual deveriam me resgatar. Pisavam-me onde podiam. Também eles gostavam de me chamar de Esterreicher, atormentavam-me com isso, perseguiam-me dia e noite, eu não tinha sossego. Errava na hora de somar, errava ao dividir e logo já não distinguia o direito do avesso. Escrevia com uma caligrafia que, tão logo entregue a tarefa, era alardeada como exemplo supremo de dispersão e negligência ilimitadas. Praticamente não se passava um único dia em que eu não tivesse de me apresentar para levar alguns golpes de vara. Sabia por quê, mas nãos sabia como fora parar ali. Logo fui relegado à categoria dos chamados piores alunos, à horda dos idiotas, que acreditavam que eu fosse um deles. Para mim não havia escapatória. Os ditos inteligentes me evitavam. Não demorou muito para que eu percebesse que não pertencia nem a um grupo nem ao outro, que não me encaixava em nenhum deles. A isso veio se somar o fato de eu não ter pais de respeito, como se dizia, de ser, por assim dizer, o rebento de gente pobre, filho de ninguém. Não tínhamos uma casa, apenas morávamos numa casa, e aquilo já dizia tudo.
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Thomas com Ferdl, Graml e Franziska no pátio Wieland Schmied, 1971. |
Thomas Bernhard, Origem, Companhia das Letras, 2006.
Foto: Erika Smith
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