JEAN-JACQUES ROUSSEAU – PRECURSOR DE KAFKA, DE CÉLINE E DE
PONGE [1962]
por Gilles Deleuze
Arriscamo-nos
de duas maneiras a ignorar um grande autor. Por exemplo, ao desconhecer sua
lógica profunda ou o caráter sistemático de sua obra. (Falamos, então, de suas,
“incoerências”, como se elas nos dessem um prazer superior). Ou, de outro modo,
ao ignorar sua potência e seu gênio cômicos, de onde a obra retira geralmente o
máximo de sua eficácia anticonformista. (Preferimos falar das angústias e do
aspecto trágico). Na verdade, não se pode admirar Kafka sem rirmos ao lê-lo.
Estas duas regras valem eminentemente para Rousseau.
Em uma de suas teses mais célebres, Rousseau explica que o homem no estado de
natureza é bom, ou pelo menos não é mau. Isso não é uma declaração generosa nem
uma manifestação de otimismo; é um manifesto lógico extremamente preciso.
Rousseau quer dizer: o homem, tal como se pode supô-lo em um estado de
natureza, não pode ser mau, pois as condições objetivas que tornam possíveis a
maldade e seu exercício não existem na própria natureza. O estado de natureza é
um estado no qual o homem está em relação com as coisas, e não com outros
homens (salvo de maneira fugaz). “Os homens, se quisermos, se agrediam ao se
encontrarem, mas eles pouco se encontravam. Por toda parte reinava o estado de
guerra, e toda a terra estava em paz” (DLa). O estado de
natureza não é somente um estado de independência, mas de isolamento. Um dos
temas constantes de Rousseau é que a necessidade não é um fator de aproximação:
ela não reúne, ao contrário, isola. Por serem moderadas, nossas necessidades no
estado de natureza entram necessariamente em uma espécie de equilíbrio com
nossos poderes, adquirem uma espécie de auto-suficiência. Mesmo a sexualidade,
no estado de natureza, apenas engendra aproximações fugazes ou nos deixa na
solidão. (Rousseau tem muito a dizer, e diz muito sobre este ponto, que é como
o reverso humorístico de uma teoria profunda.)
Como os homens poderiam ser maus quando lhes faltam as condições para tanto? As
condições que tornam a maldade possível confundem-se com um estado social
determinado. Não há maldade desinteressada, embora seja isso o que dizem os
próprios malvados e os imbecis. Toda maldade é lucro ou compensação. Não há
maldade humana que não se inscreva em relações de opressão, conforme interesses
sociais complexos. Rousseau é um desses autores que souberam analisar a relação
opressiva e as estruturas sociais que ela supõe. Será preciso esperar Engels
para que se relembre e renove este princípio de uma lógica extrema: que a
violência e a opressão não formam um fato primeiro, mas supõem um estado civil,
situações sociais, determinações econômicas. Se Robinson escravizou
Sexta-Feira, não foi por gosto natural, não foi nem mesmo à força; foi com um
pequeno capital e meios de produção, que ele salvou das águas, e para submeter
Sexta-Feira a tarefas sociais que não se apagaram da memória de Robinson
durante o naufrágio.
A sociedade nos coloca constantemente em situações em que temos interesse em
ser malvados. Por vaidade, adoraríamos crer que somos maus naturalmente. Mas,
na verdade, é bem pior: nós nos tornamos maus sem saber, sem mesmo nos darmos
conta disso. É difícil ser herdeiro de alguém sem desejar inconscientemente sua
morte por este ou aquele motivo. “Em tais situações, apesar de nos conduzir um
sincero amor pela virtude, mais cedo ou mais tarde, sem que se perceba,
fraquejamos, e nos tornamos injustos e maus ao agir, sem deixarmos de ser
justos e bons na alma” (DLb). Ora, parece
que, por um estranho destino, a bela alma é constantemente empurrada para
situações das quais ela não sai sem grande sofrimento. A bela alma usará de sua
ternura e sua timidez para extrair das piores situações os elementos que, não
obstante, lhe permitirão conservar sua virtude. “Desta oposição contínua entre
minha situação e minhas inclinações, nascem pecados enormes, desgraças
inauditas, e todas as virtudes, exceto a força, que podem honrar a adversidade” (DLc).
Achar-se em situações impossíveis é o destino da bela alma. Toda a verve de
Rousseau vem de ser ele um extraordinário cômico de ocasião. Ora, As
Confissões acabam como um livro trágico e alucinado, mas começam como um
dos livros mais alegres da literatura. Mesmo os vícios preservam Rousseau da
maldade para a qual eles o deveriam arrastar; e Rousseau se esmera na análise
desses mecanismos ambivalentes e salutares.
A bela alma não se contenta com o estado de natureza; ela sonha afetuosamente
com as relações humanas. Ora, essas relações sempre se encarnam em situações
delicadas. Sabe-se que o sonho apaixonado de Rousseau é reencontrar as figuras
de uma Trindade perdida: seja a mulher amada que ama outro, que será como um
pai ou irmão mais velho: sejam duas mulheres amadas, uma como uma mãe severa e
que castiga, a outra como uma mãe terna que faz renascer. (Rousseau já persegue
essa busca apaixonada de duas mães, ou de um duplo nascimento, em um de seus
amores de infância.) Mas as situações reais onde esta fantasia se encarna são
sempre ambíguas. Elas acabam mal: ou nós nos conduzimos mal ou nos excedemos,
ou ambas as alternativas ao mesmo tempo. Rousseau não reconhece seu terno
devaneio quando ele se encarna em Teresa e na mãe Teresa, antes mulher ávida e
desagradável do que mãe severa. Nem quando Madame de Warens quer que ele
desempenhe o papel de irmão mais velho com relação a um novo favorito.
Rousseau explica com frequência e com alegria que ele tem as ideias lentas e os
sentimentos rápidos. Mas as ideais, de formação lenta, emergem subitamente na
vida, dão-lhe novas direções, inspiram-lhe estranhas invenções. Nos poetas e
nos filósofos, nós devemos apreciar mesmo as manias, as bizarrices que
testemunham combinações da ideia e do sentimento. Baseado nisso, Thomas de
Quincey criou um método apropriado para nos levar a amar os grandes autores. Em
um pequeno livro sobre Kant (“Os últimos dias de Emmanuel Kant”, que Schwob
traduziu) (DLd). Quincey
descreve o aparelho extremamente complexo que Kant inventou para lhe servir
como suporte para meias. O mesmo se pode dizer do traje de armênio de Rousseau
quando ele morava em Motiers e amarrava os sapatos nos degraus de entrada de
sua casa enquanto conversava com as moças. Há aí verdadeiros modos de vida, são
anedotas de “pensador”.
Como evitar as situações em que nos interessa ser maldosos? Sem dúvida, uma
alma forte pode, por um ato de vontade, agir sobre a própria situação e
modificá-la. Por exemplo, pode-se renunciar a um direito de herança para não
estar na situação de desejar a morte de um pai. Da mesma forma, em A
Nova Heloísa, Júlia compromete-se a não se casar com Saint-Preux, mesmo que seu
marido venha a morrer: assim “ela troca o interesse que ela tinha em sua perda
pelo interesse em conservá-la” (Dle). Mas
Rousseau, segundo seu próprio testemunho, não é uma alma forte. Ele ama a
virtude mais do que é virtuoso. Salvo em matéria de herança, ele tem imaginação
demais para renunciar por antecipação e por vontade. Ele precisa de mecanismos
mais sutis para evitar as situações tentadoras ou para delas sair. Ele tudo
arrisca, mesmo sua frágil saúde, para preservar suas aspirações virtuosas. Ele
próprio explica como a doença de sua bexiga foi um fator essencial em sua
grande reforma moral: por medo de não se aguentar em presença do rei, ele prefere
renunciar à pensão. A doença o inspira como fonte de humor (Rousseau relata
seus problemas de audição com uma verve semelhante à de Céline mais tarde). Mas
o humor é o contrário da moral: melhor ser copista de música que pensionista do
rei.
Em Nova
Heloísa, Rousseau elabora um método profundo, apto para conjurar o perigo das
situações. Uma situação não nos tenta unicamente por ela mesma, mas devido a
todo o peso de um passado que nela se encarna. É a procura do passado nas
situações presentes, é a repetição do passado que nos inspira nossas paixões e
nossas tentações mais violentas. É sempre no passado que amamos, e as
paixões são doenças próprias à memória. Para curar Saint-Preux e para trazê-lo
ou convertê-lo à virtude, M. de Wolmar emprega um método pelo qual ele conjura
os prestígios do passado. Ele força Julie e Saint-Preux a se beijar no mesmo
bosque que viu seus primeiros amores: “Julie não mais temia esse asilo, ela
acabara se ser profanado” (DLf). É necessário
fazer da virtude o interesse presente de Saint-Preux: “não é por Julie de
Wolmar que ele está apaixonado, mas por Julie d’Etange; ele não me odeia
absolutamente como o que se apossou da pessoa que ele ama, mas como o raptor
daquela que ele amou... Ele a ama no tempo passado; eis a chave do enigma:
corte-lhe a memória, ele não terá mais amor” (DLg). É na relação
com os objetos, com os lugares, por exemplo um bosque, que conhecemos a fuga do
tempo e que saberemos, enfim, querer no futuro, em lugar de nos apaixonarmos no
passado. Isso é o que Rousseau chamava de “o materialismo do sábio” (DLh) ou
cobrir o passado com o presente.
Os dois polos da obra filosófica de Rousseau são o Emílio e o Contrato
social. O mal, na sociedade contemporânea, é que nós não somos mais nem homem
privado nem cidadão: o homem tornou-se “homo oeconomicus”, isto é, “burguês”,
animado pelo dinheiro. As situações em que há interesse em sermos maus implicam
sempre relações de opressão, nas quais o homem entra em relação com homem para
obedecer ou comandar, senhor ou escravo. O Emílio é a reconstituição
do homem privado, o Contrato social, a do cidadão. A primeira regra
pedagógica de Rousseau é esta: nós chegaremos a nos constituir enquanto homens
privados quando restaurarmos nossa relação natural com as coisas, com isso
preservando-nos das relações artificiais demasiado humanas que, desde a
infância, acarretam em nós uma perigosa tendência a comandar. (E é a mesma
tendência que nos faz escravo e que nos faz tirano.) “Ao exercer o direito de
serem obedecidas, as crianças saem do estado de natureza quase ao nascer” (Dli). A
verdadeira correção pedagógica consiste em subordinar a relação dos homens à
relação do homem com as coisas. O gosto das coisas é uma constante na obra de
Rousseau (os exercícios de Francis Ponge têm algo de rousseauniano). Daí a
famosa regra de Emílio, regra que requer apenas vigor: jamais trazer
as coisas para a criança, mas levar a criança até as coisas.
O homem privado é aquele que, devido à sua relação com as coisas, conjurou a
situação infantil que lhe confere o interesse em ser mau. Mas o cidadão é aquele
que entra em relações com os homens, onde ele tem exatamente interesse em ser
virtuoso. Instaurar uma situação objetiva e atual em que a justiça e o
interesse se reconciliem, parece ser, segundo Rousseau, a tarefa efetivamente
política. E a virtude retoma aqui seu sentido mais profundo, que remete à
determinação pública do cidadão. O Contrato social é, com certeza, um
dos grandes livros da filosofia política. Um aniversário de Rousseau é a
ocasião certa de ler ou de reler o Contrato social. Nele, o cidadão
aprende qual é a mistificação da separação dos poderes; como a República
define-se pela existência de um único poder, o legislativo. A análise do
conceito de lei, tal como aparecia em Rousseau, dominará por muito tempo a
reflexão filosófica e a domina ainda.
. . .
Tradução de Hélio
Rebello Cardoso Júnior
Toxic Boy , Jee Young Lee |
Arts, nº 872, 6-12
junho, 1962, p. 3 (Por ocasião do 250º aniversário do nascimento de
Rousseau). Em 1959-1960, Deleuze, assistente na Sorbonne, consagrou um ano de
curso à filosofia política de Rousseau do qual existe um resumo datilografado
editado pelo Centro de Documentação Universitária da Sorbonne.
(DLa) Essai sur
l’origine des langues, IX, in Oeuvres complètes, vol. V, Paris, Gallimard,
coll. “Bibliothèque de la Pléiade”, 1995, p. 396.
(DLb) Les Confessions,
II, in Oeuvres complètes, vol. I, Paris, Gallimard, coll.“Bibliothèque de la
Pléiade”, 1959, p. 56.
(DLd) Texto reeditado
em volume: T. de Quincey, Les derniers jours d’Emmanuel Kant, Toulouse,
Ombres, 1985.
(DLe) La Nouvelle
Heloïse, terceira parte, carta XX, in Oeuvres complètes, vol. II,
Paris, Gallimard, col. “Bibliothèque de la Pléiade”, 1961, p. 1558 n.
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