Clarice é chamada ao telefone
Alô,
Clarice, é você?..
Eu
estava pensando, ou melhor, eu estava tentando pensar sobre você e a sua
escrita, alguma coisa a partir de Maurice Blanchot… mas o pouco que pude se
reduziu à minha escuta longeva de você mesma.
Como?
Há quanto tempo nos falamos? Você não se lembra? Desde aquela primeira vez na
escola, quando você veio, ou melhor, trouxeram o livro. Nós ainda líamos na
escola. Aquela foi a sua vez. A primeira. E diante do livro aberto eu te achei
bem esquisita, lia e não entendia nada. Naquela época eu tinha dez pra onze
anos, momento em que começava a experimentar a sensação de estar e não estar;
de distância com respeito ao que me rodeava; de indefinida fragilidade. Era
minha vez de viver o exílio: a minha infância estrangeira em países distantes.
Quando criança somos sempre todos viajantes.
Cúmplices?…
Sim, cúmplices!
(Tratava-se do livro Água viva, lançado em agosto de 1973. Clarice tinha pela
primeira vez um livro inteiramente entregue à desocultadora materialidade
da linguagem.)
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra
pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra — a entrelinha — morde a isca, alguma
coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio
jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a
isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.
— — — — — — — —
Clarice,
hoje se sabe bem, o problema enfrentado por você era o de como escrever numa
língua (fosse o português, o inglês ou até mesmo o russo) abrindo brechas que
lhe permitissem remoldar essa língua e reconstruir seu pensamento. O contato
com a obra dos autores de língua inglesa, sua rede de afinidades — em especial Katherine
Mansfield e Virginia Woolf — para tanto foi decisivo: através de uma prática de
leitura, escrita e tradução. E nesses termos, escrever a partir apenas da
escrita, colocou você ainda na categoria de uma anunciante da palavra. De
um mundo para o qual o principal resíduo de memória é a palavra. O testemunho.
Como em Kafka, sobretudo…
O
que? Sim, sei, sei, você detesta todas essas aproximações. Perdoe-me. Estou
quase repetindo a estrutura de uma crítica que você rejeitava ativamente.
Quando se apontou a náusea sartriana para demonstrar a estranheza latente de
sua obra…
É, você não estava interessada nas engrenagens filosóficas
existencialistas. Para você era mais um traço de inadaptação das personagens — as que querem e não
querem; as que mostram e não mostram; as que recuam a cada passo que tentam dar
adiante. Conteúdo e forma a se imiscuir. Clarice para construir sua própria língua
dentro da língua brasileira terá que passar por outras línguas e por
outras poéticas e narrativas por meio da revisita à ficção já escrita numa
língua estrangeira. Que poderá ir se metamorfoseando a seu corpo de mulher como
também conter a sua assinatura. Produzir uma dicção própria, que não se
distancie da sua necessidade de sobrevivência, de produzir brechas, espaços de
respiração e, ao repetir o gesto de escrita kafkiano, inscrever-se também numa
espécie de genealogia, o que é decisivo para que qualquer pretendente se torne
um escritor…
(Clarice, pela sua relação com o passado ou fazendo contas com ele,
nunca pretenderia escrever como os russos modernos, nem como palavra de ordem,
nem como revolução — sua escrita
foi, isto sim, permanentemente radical — sem ser feroz, nem implacável — e ao mesmo
tempo fina, tênue, precisa como um estilete).
— — — — — — — -
Olha,
Clarice, você na Suíça. Você achou mesmo bem espantosas aquelas mulheres com
chapéus espalhafatosos?
Ah,
contida Clarice… Eu estava pensando esses dias na sua estada em Berna e fiz um
poema. Procuro conferir ao corpo — que não se separa da dimensão da escrita — um lugar privilegiado.
ABOMINÁVEL
CLARICE
Esquiando
na Suíça
Avessa a qualquer exagero
Delicado difícil equilíbrio
Não pisoteia a neve
Não espera um guia
Consegue parar fixa
Leve parece meditar
A face barbeada da
Mulher barbada tão
Abominável como um sorriso
Para que sombra se evade?
Leva o incerto na esportiva
Avessa a qualquer exagero
Delicado difícil equilíbrio
Não pisoteia a neve
Não espera um guia
Consegue parar fixa
Leve parece meditar
A face barbeada da
Mulher barbada tão
Abominável como um sorriso
Para que sombra se evade?
Leva o incerto na esportiva
Oi, Clarice, diga… Sim, sim, o mundo pegava fogo e você esquiava na
Suíça (risos). Kafka não teria sentido o mesmo em relação
à guerra? Ele o descreve com suposto descaso em seu diário: “A Alemanha
declarou guerra à Rússia. À tarde, escola de natação”. Ele nadava, você
esquiava. Temos cada um a sua forma de alienação.
Sim, sim,
eu sei, você preferia dizer “pulsação estranha”.
Olha,
depois você me diz o que achou do poema — que
você anda ocupada, fadigada, é claro.
O que? Que
diferente de Kafka, em A paixão segundo G. H. sua metamorfose
propicia não a transformação num inseto gigantesco e sim que o inseto seja
provado, deglutido…
(Estamos
sempre de volta ao quarto de Gregor Samsa para vivenciar a mesma
irreversibilidade da transformação. Mas para Clarice escrever é comer o
interior da barata. Experimentação. Autoconhecimento. Liberdade……………) (nesse
ponto a ligação cai……………)
No túmulo de Clarice não há data de
falecimento. Ao que parece ela saltou também essa etapa. Nesse ponto ela
corrige Ângela Parlini (ou será Ângela Parlini a me corrigir?): “Não — para falar sinceramente — não permito
que o mundo exista depois de minha morte. Dou remorsos a quem eu deixar vivo e
vendo televisão, remorsos porque a humanidade e o estado de homem são culpados
sem remissão de minha morte.” Para Clarice morte e vida sempre se embaralharam,
se misturaram num mesmo mistério. Ela nasce dia 10 e morre dia 9. Como pode uma
pessoa ser e não estar? Se ainda nem havia deixado de escrever, se sabia que
nunca deixaria. Um sopro de vida: pulsações (1978) será lançado quando já
está completamente livre, abandonada ao proibido.
Claricedespadronizada.
Clariceconsternada.
Clariceassustadiça.
A sorte vem, cedo ou tarde, de
voltar ao nuncanada.
Sim, você me disse para não
escrever mais “num tempo etc.”, não vou realmente mais dizer “num tempo” — porque nunca se sabe direito que tempo é agora. O que se
consegue fazer como poeta, o que se pode fazer como poeta sem cair no
retrospectivo ou no resgate, é evocar, lembrar.
Lembro agora aquela sua última
entrevista à tevê Cultura, em novembro de 1977. Há um pequeno trecho no qual
você se refere a um conto seu sobre o José Rosa de Miranda, o mineirinho, morto
pela polícia do Rio de Janeiro com 13 tiros — Você diz
que ao passo que os tiros são disparos 1–2–3–4–5–6–7–8–9–10–11–12, finalmente,
no 13º você é atingida. “É, suponho que é em mim”. Quando a situação nos reduz
a uma pessoa qualquer. Isso é o intolerável.
A literatura é uma religião. Mas há
certo número reduzido de escritores que não se rende à celebração de nenhum dos
cultos literários. Clarice nem mesmo chegava a seguir a liturgia própria do
escritor, muito menos a do autor. Acreditava que escrever era comer o interior
da barata. Definiu a escrita por um ângulo antropófago ainda mais absurdo e
desconcertante que Oswald: Tomai e comei a barata.
Lúcio Cardoso |
Amiga de Lúcio Cardoso, autor que não só foi um dos primeiros a comer da barata como integralmente, de cabo a cabo, em Crônica da Casa Assassinada(1959) se misturou às secreções selvagens da existência para alcançar, a partir dessa insaciabilidade, uma escrita que é rebelião e catástrofe…
Cúmplices?… Sim, muitos cúmplices!
Atingida pelo 13º tiro ela não quer morrer. Uma escritora não
canonizada, truculentamente não morta, se fazendo, refazendo, sempre por
nascer.
Comei da barata!
Ney Ferraz Paiva
Nenhum comentário:
Postar um comentário