TODOS SÃO POETAS, EXCETO
OS QUE NÃO SÃO
aqui onde o escuro
chegou rente
então aqui deve ser onde
se encerra o escuro
doris lessing
chegamos a mais um dezembro e
convém não só puxar conversa, mas também avaliar e fazer prognósticos. e
aproveitem, eu estou otimista. penso que a poesia está em excelente forma. dá
sinais de uma exuberância surpreendente. ainda que outro dia, ou melhor, há um ano, por aí, fiquei mesmo
impressionado, e talvez um pouco perturbado... a posse de ferreira gullar à
academia brasileira de letras. eu, que sou perfeitamente mortal, esperava
morrer sem ver isso. e não sei se realmente vi, ou se estava, como aquele
acadêmico na plateia, com os olhos fechados e parecendo dormir. gullar ainda é
capaz dessa ironia. mas, de dentro daquele fardão asséptico ao novo, o que mais
terá a dar à poesia? mudar-se para a casa de machado, para um gullar muito à
vontade lendo ali o seu discurso, faz parecer o “destino” natural do poeta (de
todo poeta; o que não consegue fracassa). ao mesmo tempo não se pode ficar sem
perceber a verdadeira força do que gullar vive. ele não deixa dúvidas de que é
capaz de continuar. de ir adiante. ainda que sobre isso ele não tenha dito
nada, e eu tenha a mente tomada por essas fantasias. me concentrei nos
sintomas. a posse, a festa, a pose. já as fraturas, as lesões, os cortes me escaparam. o modo
lento e cauteloso. as frases breves. a fadiga. o poeta em seu triunfo ameaçado
pela pacata pungência. tudo tão pequeno e tão grandioso ronda o poeta para
fechar a sua obra. seu destino verdadeiro. o que inclui rastrear os próprios
insucessos e colapsos até o êxito e a ascensão. a poesia está em excelente
forma porque pode estar em forma. bem como a minha contínua incapacidade de
prever – e, pior, avaliar – está aí porque está aí. tão certo como não ocorre
mais a ninguém ir a uma banca de jornal comprar uma revista de mulher nua, e ter que disfarçar a compra “imoral” tendo que ao mesmo tempo adquirir outras publicações “sérias”. coube à revista playboy vestir as “coelhinhas” para termos outra vez que imaginar a silhueta do
mistério. por sua vez a literatura terá que vir com toda a carga de variadas, revezadas e
diversas pirações. em 2015 a editora autêntica extraordinariamente republicou numa só caixa – por amor ao deus dos hospícios – a esgotadíssima maura lopes cançado. o anúncio infernal, perturbador, amargo da vida. e para além da
loucura, venha a nós, leitores do abismo, o erotismo da grande poesia, do
romance, do teatro a partir das ruas, das noites, dos precipícios – e não da insuportável
modelagem comercial da obra, desde a capa, como ainda se faz impunemente à clarice, a machado e a outros tantos.
puxar esse pesado véu para revelar o imprevisto, o inesperado, de uma só vez, como faz com a fotografia a mexicana graciela iturbide: vestir uma mulher (a obra) de iguana em vez de um prosaico chapéu. estranho & bonito, terno & perverso. que na arte os extremos se encontrem; os extremos se
transformem em seus opostos.
Ferreira Gullar toma posse na Academia. Foto: Fábio Mota/Estadão Conteúdo |
Hospício é Deus e O Sofredor do Ver, de Maura Lopes Cançado, pela Editora Autêntica. |
ney ferraz paiva
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