Poesia como trilha
sonora para um filme
Edição de 2003, pela editora Francis.
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eu fui artista de teatro, conhece teatro?, pois é, eu fui um artista,
um ator…
Harmada, João Gilberto Noll
Harmada, João Gilberto Noll
Gosto de Harmada (Francis, 1993) do escritor João Gilberto Noll. Da
chuva caindo, da chuva que acreditamos ter caído na véspera, torrencial,
evanescente, devastadora, fatal. “Aproveitar a terra que virou lama depois do
temporal”, diz o personagem, misturado à terra, à água, à lama, ao
matagal, enrodilhado em volta de um tronco, a um passo de virar um animal. A
experiência de ser arrancado, expelido, dissolvido de si. Tomado pelo escuro da
terra. O assombro e o prazer da noite, vento, bruma, o que mais? Uma misteriosa
escrita ativada por lâminas de imagens em ziguezagues, blocos desviantes,
passagens planas fatiadas. Como resgatar um animal da água? Opera-se o
desmembramento dos fatos, registros, acontecimentos. Aquele que teria sido
ator — teria sido apenas o que representava de si a cronologia amesquinhada de
a cada movimento recorrer à datas e horas e fotos nas paredes? Ou aquele ator
entraria no roteiro aleatoriamente? O fluxo das imagens multiplicado ao ritmo
tenso, como se auxiliado por um disparador automático, formando um mosaico.
Seria isto uma escrita encenada — fotografada par a par com a narrativa? João
Gilberto Noll gera em Harmada um campo magnético capaz de interagir
com qualquer outra linguagem também magnetizada, num estado próximo à intimidade
e à dispersão. Neste país ou cidade — Harmada — há mentiras, segredos e farsas;
todos os sinais de vida sugados para fora das janelas, dispersando a todos. A
cidade atrai e repele. Não é uma estrutura apenas para harmonizar paisagens,
construções e indivíduos de acordo com as leis do acaso e da sorte. Sabe-se
para onde ir, mas não se tem exatamente a certeza de onde se pode chegar. E
tudo que não se viabiliza nesse transcurso é a elaboração de mapas. Antes a
fadiga, o adormecer:
“e o sono sobrevinha a tudo, e a vigília agora não era mais do que
águas passadas”.
Aquele ator trancafiado no asilo, albergado, retirado de circulação.
Para ele não há caminho mais curto entre dois pontos. Direções interrompidas.
Sônia, Amanda e Cris impregnadas no pequeno quarto de hotel; o terreiro de
galos de rinha; o escritório de representação comercial, e aí Jane, o
casamento, os filhos a que esse ator e homem de entrecortantes palavras não
pode ter… As intempéries que conhecera até ali.
“Eu era aquele homem no espelho, eu era quase um outro, alguém que eu
não tivera a chance de conhecer”.
Aquele ator estagnado sob inúmeros aspectos. Alguns pequenos extras
constituem a expressão máxima do caminho tomado por ele. Aquele ator, um
canastrão… Por um lado, os tipos típicos de atuações que permaneceram
inalteradas — paradas no tempo do herói cercado por fantasmas à espera de uma
saída que nunca veio. Por outro lado, se ligarmos falas e pontas, teremos
talvez um plano ousado de atuação de um norte que há muito não é visitado:
“eu era então tomado por um desprezo absoluto pelo sofredor”, “eu sou
um homem mau”, “há de tudo sobre a Terra, inclusive eu”.
Falas de um personagem associado ao misererere nobis de um
teatro de racionamento e impossibilidades as mais diversas. Um prisioneiro de
circunstâncias. Aquele ator é o próprio teatro. Quase sempre como o circo,
o mais pé-rapado dos mambembes. O que tem a ver com a forma que a cultura trata
o artista. E o que pode ser a arte. Nesse ponto fugidio do livro até mesmo os
cães se tornam memorialistas e recordam se poderia ter ocorrido a evolução a
que o autor recorreria para resgatar as linhas tortuosas de sua escrita, e como
reorganizar isto com um personagem à beira do desastre? Com a ruptura entre
fato e ficção? De volta a Harmada, chegaria a hora e a vez de acertar do
personagem? Ele e uma Cris reencontrada. Seria, então, ela o incomparável que
lhe acontecera? Seria? Ou bem ao contrário, ela o paradoxo, a contradição? Cris
juntou a ele a sua voz, nada mais que pudesse conciliar ou limitar os estragos
em que ele está metido.
“eu talvez esteja metido em uma espécie de morte, digamos desta
maneira, de morte, mas que é apenas um estado mínimo, extraordinariamente
concentrado, e que mesmo sendo invisível como um grão de poeira no escuro,
atrai, atrai os outros corpos, e nesta atração todos os componentes se chocam e
se atritam tanto, que das fagulhas provenientes destes choques e atritos nascem
outras galáxias que gerarão outras através da sempre mesma atração e repulsa
dos corpos…”.
Com efeito, os caminhos entrechocam-se, precipitam-se, o que nos
tornamos, o que podemos pensar em ser, tamanha é a vontade de viver
rigorosamente o mesmo momento e as mesmas pegadas — como animais em fuga.
…
Harmada, romance de João Gilberto Noll, marcou o retorno do veterano
Maurice Capovilla à direção de filmes. Ele estava afastado desta atividade há
mais de 20 anos. É uma bela incursão sobre a obra de Noll. O ator Paulo César
Peréio ganhou o Candango de melhor ator no Festival de Brasília de 2003. As
filmagens foram feitas em 2002 em Parati, no Rio de Janeiro.
Ney Ferraz Paiva
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