Florêncio tinha família
grande. O negro do cilindro sustentava um familião. Aquela gente passava mesmo
necessidade. Ali eles tinham que comprar tudo, pagavam o casebre onde moravam.
Pior que no engenho. Eles passavam mais fome que no engenho. Lá pelo menos
plantavam para comer, tinham as suas espigas de milho, a sua fava para encher a
barriga. No Recife tudo se comprava. Estivera na casa do Florêncio para não ir
mais. O masseiro, a mulher, e quatro filhos, dormindo numa tapera de quatro
paredes de caixão, coberta de zinco. Custava doze mil-réis por mês. A água do
mangue, na maré cheia, ia dentro de casa. Os maruins de noite encalombavam o
corpo dos meninos. O mangue tinha ocasião que fedia, e os urubus faziam ponto
por ali atrás dos petiscos. Perto da rua lavavam couro de boi, pele de bode
para o curtume de um espanhol. Morria peixe envenenado, e quando a maré secava,
os urubus enchiam o papo, ciscavam a lama, passeando bameiros pelas biqueiras
dos mocambos. Comiam as tripas de peixe que sacudiam pela porta afora. Os filhos
de Florêncio passavam o dia pelo lixo que as carroças deixavam num pedaço de
maré que estavam aterrando. Chegavam em casa, às vezes, com presas magníficas:
botinas velhas, roupas rasgadas, trapos que serviam para forrar o chão, tapar
os buracos que os caranguejos faziam dentro de casa. Eram bons companheiros os
caranguejos. Viviam deles, roíam-lhes as patas, comiam-lhes as vísceras
amargas. [...] Morar na beira do mangue só tinha esta vantagem: os caranguejos.
Com o primeiro trovão que estourava, saíam doidos dos buracos, enchiam as casas
com o susto. Os meninos pegavam os fugitivos e quando havia de sobra encangavam
para vender. Para isto andavam de noite na lama com lamparina acesa na
perseguição. Caranguejo ali era mesmo que vaca leiteira, sustentava o povo. Ricardo
ficou com o pensamento na casa de Florêncio. Os meninos eram amarelos como os
do engenho, mas eram mais infelizes ainda. E agrega: [...] pobre não tinha
direito de reclamar. Pobre não nascera para ter direito. [...] Ricardo achou
então que havia gente mais pobre do que os pobres do Santa Rosa. Mãe Avelina
vivia de barriga cheia na casa-grande. Se ela viesse para ali e caísse naquela
vida? Se os seus irmãos saíssem para o lixo, ciscando com os urubus? Florêncio
ganhava quatro mil-réis por noite. O que eram quatro mil réis no Recife? Uma
miséria. Por isso o outro falava em greve com aquela força, aquela vontade de
vencer.
José Lins do Rego, O Moleque Ricardo, 1935.
Imagem: Boris Kosoy, Salvador, 1972.
Imagem: Boris Kosoy, Salvador, 1972.
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