O POETA E O LANDAU
Rogério A. Tancredo
Imagem: Jean Baudrillard
Entre
os lançamentos da ótima safra de livros de poesia dos últimos anos – alimentada
por editoras “menores” que vão na contramão do mercado editorial – um chama
atenção não só pela força e beleza de seus poemas, mas por seu título, falo do
instigante Arrastar um landau debaixo
d’água, de Ney Ferraz Paiva, lançado em 2015 pela jovem e corajosa editora
Patuá. Conhecido por seus títulos que remetem às suas preferências e
influências poéticas como Nave do Nada tirado
de um verso de Paulo Plínio Abreu (seu conterrâneo), Arrastar um landau debaixo d’água não foge à regra, fora tirado de um
poema do francês Henry Michaux. Não vamos nos deter aqui em falar sobre suas
preferências – se o faço é apenas como forma de introdução – e sim do título
curioso (assim como Uma faca só lâmina ou
O cão sem plumas) que nos remete a
pensarmos o atual, ou seja, o contemporâneo. Se destacarmos do nome do livro a
palavra que mais chama atenção nos deparamos com a figura do landau, carro
outrora luxuoso, cheio de pompa, que hoje não passa de uma “banheira”, “lata velha”
emprestando os termos dos apaixonados por carro, ou de artigo de colecionador
para embelezar os salões. Tal qual, o poeta não é diferente do famoso carro,
que nos dias atuais, segue encarquilhado, sem uso prático, de serventia de
pouco valor, a não ser ornar as estantes cheias de livros não lidos. Isso se
pensarmos a palavra landau separadamente, e logo fazendo uma analogia com a
figurado do poeta, já daria o que falar, imagine se nos debruçarmos sobre o
criativo título Arrastar um landau
debaixo d’água aí a coisa começa a ficar interessante porque já não estamos
falando de figuras obsoletas, como queiram alguns, mas do fazer poético
propriamente dito, do “arrastar” para ilustrar esse fazer.
Todos
sabemos que a contemporaneidade se constitui como uma dobra da modernidade por
acentuar a dimensão melancólica e desesperada da irmã mais velha. Além disso, podemos
notar um afunilamento em relação às exigências profissionais, é uma época
marcada pelo pensar prático e objetivo, onde as coisas têm de ter uma função,
desconsiderando àquelas que não tem função alguma – como a poesia – mas são o
que são e se explicam por si só. Fazer poesia nessa época que não pensa mais o
mito como verdade e sim como uma função prática, onde você tem e deve ser o
melhor, acaba sendo um grande sacrifício, como matar um leão a cada dia, ou
seja, é arrastar um landau debaixo d’água. Quem aceita sacrificar-se assim
acaba como um cavaleiro de armadura andando pela cidade cheia de máquinas e
arranha-céus. O poeta é o fantasma fora de seu tempo, sob o elmo tem uma visão
distorcida e disforme, mais próxima do que chamamos realidade. No poema “A LOUCURA
SEM REPOUSO”, título que remete ao sacrifico de escrever, espécie de doença que
move o poeta, podemos notar em seus versos como este vê a cidade através do limiar
que a razão tenta esconder: [...] a
paisagem de uma cidade/ enfermaria a
céu aberto/ é feita de carne/ deteriora
despedaça separa [...] A cidade,
é o palco dos dramas a serem vividos, seus cidadãos vivem sufocados pelas
exigências que esta impõe: [...] tosses
suores asfixias/ em busca de ar
fresco pessoas descem ruas/ mercados
rios praças/ uma musculatura louca/
também isso a arte faz/ traz cadáveres à rua/ pra revoar os pássaros do horror ...
A
arte serve para pensarmos o agora, o que fora dado, imposto, amplia o que a
história tenta diminuir. Precisamos voltar a um ponto de partida para recomeçarmos,
se é que existe esse ponto. O contemporâneo – neste caso o poeta – é aquele
capaz de ver para além do clarão que nos ofusca, é como nos diz Agamben: “o
contemporâneo é aquele que percebe o escuro de seu tempo como algo que lhe
concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirigi-se
direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o
facho de trevas que provém do seu tempo.” Arrastar um landau debaixo d’água é estar
fora e dentro do seu tempo. Fora porque ainda se escreve poemas apesar das adversidades
e exigências impostas pelos novos tempos, e dentro porque aquele que os escreve
é capaz de enxergar os males de sua época. Aliás, o tempo inexorável, que a
tudo corrói e no qual estamos imersos é um tema constante no livro: acende meu cigarro Augusto dos Anjos/ fim de
semana fumo a ruína dos anos/ viro duas páginas (sábado & domingo) / não
mantenho mais a casa limpa/ não me alimento não verifico o correio/ você se
apressa a me oferecer fogo/ fumo pra escamar o dia o beijo a faísca. Para suportar tanta loucura e doença,
além da poesia, temos os vícios, que ajudam a seguir adiante, nesses dias
difíceis em “IMAGEM DO VELHO POETA QUE SE EXERCITA COM PESO DE PEDRAS DO MUSEU
DE OLYMPIA”, espécie de Ode ao cigarro (companheiro fiel do ato de solidão que
a escrita exige) o poeta diz: tenho
fumado uns cigarros um pouco de/ tabaco faz eu me sentir menos esquisito/ sem
cigarros não consigo escrever aquele/ prefácio
nem consigo fazer a barba ficar/ bonito
tenho uns amigos que sem fumar/ conseguem
ser bons poetas em Curitiba/ em Belém
não consigo escrever uma linha...
Debaixo
d’água o landau segue falando do peso de se viver o contemporâneo, da luta do
poeta para suportar os dias – cheios de angústias – que se repetem incessantemente:
era
o rádio sintonizado num som aleijado/ era o rádio mergulhado no vômito no sofá/
era o rádio insaciável embriagado censurado/ era o rádio paralisado por um
câncer devastador/ era o rádio indo
às montanhas respirar o ar da vida
[...] E
dentro dele estão todos e niguém, principalmente aqueles que se retiraram para
dar voz a outros como Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Ana Cristina C, Bukowski, Fernando Pessoa, Adília Lopes, Silvia
Plath, Anne Sexton, Francesca Woodman, Frank Gehry... personas que através de sua arte propunham outra coisa, não esta
que nos arrasta para um fim desconhecido, nebuloso. Igualmente a eles, Paiva se
coloca contra a mesmice contemporânea com uma força poética de rara beleza que
questiona, insurge-se contra o presente. Em tempos onde tudo está sujeito a um
mercado, cheio de “Escritores” que produzem para agradar a X e a Y, o autor vai
contra esse movimento “por uma literatura menor”, para viver submerso na
essência da poesia, no subterrâneo da linguagem.
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