UM HORIZONTE PROVÁVEL:
AUTOMÓVEIS SUBMERSOS
Redemoinhos de vida se alastram.
A noite ferve o mundo.
Imergir
para outros trânsitos. A imagem do automóvel submerso funciona como umbral,
enlace para curvas sem consolo, talvez mais, para os lados, para o subterrâneo.
Finalmente evadir-se dos pontos. Pontos fixos embaraçam as linhas, obliteram
ondas. É preciso escapar do foco, sobretudo dos mapas e mapas do mesmo.
Desenhando uma outra cartografia, Ney Ferraz Paiva nos diz sem receios:
“escrever é não ter chaves/ dos mares portos ilhas/ périplo a esmo no
Pacífico”. A poesia de Ney Ferraz Paiva se desloca num ciclo vicioso cuja
persistência equivale a uma vontade de despertencimento, força [in] transitiva
que não cessa de se perder, acontecimento que desata num desejo escapadiço,
movimento no qual escrever se consagra num erro essencial. Sim, o jogo se
deflagra ainda na literatura, é disso que se trata, de escrever como questão do
escrever, demanda da escrita. Demanda que na poesia de Paiva acontece com
exigência de uma experiência de descriação, que consiste em subverter os
pontos, des-criar o real, ser mais sensível do que o fato que ‘aí’ se posta [a
escrita vigente] e imergir para as bordas de um horizonte outro, da escrita na
sua possibilidade plural. Ou seja, da escrita como deslizamento sem fim,
imanente à liberdade selvagem do escrever. É assim que a poesia se efetua em Arrastar um landau debaixo d’água:
fértil de encontros, cesuras, derivações, se arrastando “contra maré”, mas
ainda “na correnteza”. Portanto, na contramão, mas resvalando numa linha (de
possível) que se desdobra num duplo processo de recusa – do galardão e do senso
comum – numa negação que afirma outras aberturas. Já não se trata do possível
como mero campo de possibilidades, fortuito, gratuito, mas o possível criado
necessariamente, mesmo que a partir de uma impossibilidade. É a poesia irrompendo
numa situação de combate: “arrasto um Landau debaixo d’água/ contra maré na
correnteza/ não me agarro a mais nada/ o vento é meu desafeto/ me afoga o
quanto pode/ o cérebro os intestinos/ num câncer que vai metamorfoseando/
enferrujando secretamente/ mas muito de propósito/ [...] um Landau afogado vai
passando rasteiro/ o passeio que homem algum jamais teve/ – suave amável
mórbido/ Landau para doentes/ levados para fora do alcance”. “Suave amável...
Landau para doentes”. Essa passagem não deixa de ser uma imagem que remete ao
‘filósofo vitalista’, aquele para quem a compreensão da doença se amálgama a
uma potência de vida, a algo que entende a doença não como inimiga, pois a
doença em si, segundo o filosofo, não traz a sensação da morte e sim aguça a
vontade da vida. Mas quem são os doentes? São aqueles marcados por uma força,
os “grandes viventes”: são artistas, poetas, pensadores, corpos sensíveis,
cujas vidas se atravessam na fronteira entre doença e saúde, oscilando numa
alternância entre a potência e a debilidade. E quem são? Fotógrafas, Poetas,
Reclusos, Dramaturgas, Perdedores, Escritores, Suicidas, Suspeitos, Náufragos,
Desertores; uma raça forte, poderosa constelação: “todos aqueles que deixaram a
sanidade para trás”. O Landau e seus doentes, tal como a nau dos loucos, se
arrastam para fora do alcance da vida ordinária, para dentro de outra
compreensão da vida, sem subterfúgios, total, fora dos dispositivos de
controle, fora do alcance dos poderes, dentro dos abismos da experiência
literária. Experiência oscilante entre escrita e furor, engendrada sob o signo
de uma força bruta – força não corpórea (que age contra o corpo), cujos
enunciados embaralham os contornos do mundo, desfiguram identidades,
desmantelando as fronteiras e os códigos literários, alcançando imagens das
quais o reflexo causa uma sensação de inquietação: “O poema é cama para
transportar alguém ferido ou morto/ arte pode ser velha e ter algo de extrema
violência e revolta/ [...] rogai pela carne crua da noite quebrai meus ossos ao amanhecer”.
Na poesia de Paiva prevalece um movimento no qual a experiência de escrever não
é ainda senão uma violência que tende a se abrir e a se fechar. Acontecimento
que se abre, mas que tende a se retirar para o infinito de outras margens, num
retorno excessivo. Nessa esfera, a poesia torna-se então a intimidade em luta
por momentos irreconciliáveis, experiência dilacerada entre a efetuação da obra
como origem e a fratura onde ela reina como ilimitada. É, portanto, a essa
direção [o ilimitado] que a poesia de Paiva nos arrasta e é precisamente a essa
direção que ela se desloca. Arrastar um
landau debaixo d’água: momento solene cuja estranheza angustiante todo
aquele que atravessá-la, de algum modo, o reconhecerá. Não se trata da aflição
diante da obra, mas o desassossego diante daquilo que se arrasta com a obra: o
ingovernável, fotogramas do imperceptível, o jogo das margens áridas. São
experiências possíveis senão por um intenso e exaltante movimento da poesia.
Nilson Oliveira, Prefácio, Arrastar um landau debaixo d'água
Capa: Leonardo Mathias
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