ENCONTRO ENTRE CAUBY CRUZ
E OSWALDO GOELDI
O silêncio, e o que mais aconteça.
Antonio Gamoneda
O silêncio, e o que mais aconteça.
Antonio Gamoneda
Começo o meu relato. Um rascunho. Um esboço. Uma atmosfera. Vou tentar aproximar alguns turnos de escrita e gravura. Cauby Cruz e
Oswaldo Goeldi. Tantas histórias houve, há entre eles. É só deixar haver. O
rosto, o traço. Ver que estão num mesmo sonho. Neste sonho é sempre noite.
Num primeiro momento pressente-se o lugar, e a textura desolada da paisagem se
abre sobre dorsos de corpos que vagam como espectros, vivendo de pequenos
afazeres, bicos, ocupações incertas e daí de
volta ao mais miserável dos quartos. O legado sombrio que se esparrama pelo
mundo e pela história que os cerca. O legado que nada deixa além da escuridão.
Uma espécie de errância fundamental paira sobre eles e o mundo
deles. Depois da porta, há a noite, através da qual os indeléveis passos vão se
tornando progressivamente mais intensos, tentando culminar num desfecho. Mas o
mundo de sombras permanece inescrutável. Todos seguem ligados aos mesmos
destroços da noite. Estamos no distante centro de uma cidade que é toda ela um
submundo. Virada contra si mesma. Sem respirar o tempo presente e deteriorada
pelo futuro. Apagada de sua própria vida. Tudo é operado para que a cidade não
surja de dentro do habitante. No sonho, como na vida, o enredo pode resultar um
curto-circuito... De repente, surge um homem sobre um trecho de trilhos, ele
assinala para a locomotiva que se aproxima e que nem em cem anos vai tornar-se
um TGV (sigla do trem-bala francês). Move no breu o braço inútil. No sonho, ele
é o poeta. Pelo avesso, na vida, nós somos ele. No sonho, que permanece noite,
o homem e a máquina refletem a ordem e a conexão vigente de uma realidade
injusta. Noutro ponto da paisagem, outro homem ostenta um guarda chuva vermelho
aberto. Uma cena que não se refere ainda a um alerta das previsões climáticas. Antes, perscruta todo cenário de mudança, transformação ao mesmo tempo criadora,
intelectual e artística, e que talvez acentue ainda mais o contexto de espera inquietante. A
chuva surpreende e aprisiona a um canto, como um perigo que está
progredindo. Não se sabe o que é, está apenas lá, de longe, com as garras
abertas. Um vislumbre. Uma fantasmagoria. “O inseto em si não pode ser
mostrado”, opina Kafka. A forma como o artista, e sobretudo o escritor, se
envolve com a própria criação o vincula ao mundo que avista. Cauby se retirou
por mais de vinte anos para escrever – e escrevendo fez cessar a escrita. Escrever
é um aborrecimento. Logo ao se iniciar deve-se retomar o silêncio. Goeldi, que
nunca foi um buscador, um que estivesse à procura, tornou-se cada vez mais
recuado e distante. “Tão solitário, Goeldi!”, grita Drummond. Fez longa carreira
pelo mundo, ainda que o mundo lhe fosse um lugar distante, de poucas e raras aproximações.
Como Cauby, sentia-se à parte da confraria. Com efeito, criar não é nada dócil,
mesmo se a criação for gentilmente autorizada pelos herdeiros, mesmo se
patrocinadores institucionais forem honrados (e ironia maior: ainda bem que no
nosso caso não são, não podem ser, nos impõem a fazer e pronto!) ou se por uma
série de razões se concorda em não pensar no assunto – sem se mover do luto, da
vergonha, do pudor, saudosos de todos os falecimentos. E joga-se os velhos
jogos. E fica-se do lado da lei. E toma-se parte do mesmo núcleo da moral
oficial & do poder. E a arte vira esse lugar de cavaleiros pomposos. Arte
Filosofia Religião Ciência produzidas em cadeia para abastecer os mercados da
beleza e do cosmético, da diversão e do laser, do luxo e do bom gosto
exacerbado - dominador - amado - cultuado. O convite de Cauby e de Goeldi é
outro: não apenas sentir a verdade na carne; ela como algo mantida conservada
em álcool – e sim de forma nietzschiana: a verdade devorada nos rituais da
fome... “sofrer a mesma fome” (Cauby nos impele), engolir e ser engolido na
longa noite de antropofagia que é o paraíso...
Ney Ferraz Paiva
Belém, janeiro, 2015.
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