Henry Miller e Eve McClure, 1953, ano em que se casaram. |
PARA CONVENCER O ARTISTA A COMETER SUICÍDIO
Por Henry
Miller
– Detesto
pensar no que um artista sem recursos tem de enfrentar! – disse o doutor
Souchon. Não existe inferno pior, no meu entender. – Como toda grande cidade da
América, Nova Orleans está cheia de artistas morrendo de fome, ou quase. O
bairro em que moram vem sendo regularmente demolido e pulverizado pelas grandes
armas dos vândalos e bárbaros do mundo industrial. Gritamos contra o vandalismo
dos hunos, nossos inimigos de antanho, dos alemães, e, no entanto, em nosso
próprio meio, no último refúgio arquitetônico da América, o jardim de um mundo
que destruímos com nossas próprias mãos, o insidioso trabalho de destruição
continua. Ao ritmo em que estamos indo, dentro de cem anos dificilmente haverá
neste continente algum traço ou prova da única cultura que fomos capazes de produzir
– a rica cultura escrava do sul. Nova Orleans venera o passado, no entanto assiste
impassível aos bárbaros do futuro cínica e impiedosamente enterrarem o passado.
Quando o belo Bairro Francês não existir mais, quando todo o laço com o passado
tiver sido destruído, haverá prédios de escritórios limpos e estéreis,
monumentos e prédios públicos horrendos, poços de petróleo, chaminés, aeroportos,
cadeias, manicômios, hospitais de caridade, filas do pão, os cinzentos barracos
do povo negro, brilhantes esqueletos carros, trens enferrujados, comidas
enlatadas, lanchonetes, vitrines iluminadas a neon para inspirar o artista a
pintar. Ou, o que é mais provável, para
convencê-lo a cometer suicídio. Poucos homens terão coragem de esperar até os
sessenta anos para pegar o pincel. Menos ainda terão a chance de se tornar
cirurgiões. Quando um famoso dentista tem a audácia de dizer que para o homem
trabalhador os dentes – os dentes da própria pessoa – são um luxo econômico,
aonde estamos chegando? Logo psiquiatras e cirurgiões estarão dizendo: “Por que
preservar a vida se não existe razão para viver?”. Logo, por simples bondade
humana, estarão se juntando para formar uma sociedade da eutanásia com a
finalidade de eliminar aqueles que não se adaptam aos terrores da vida moderna.
O campo de batalha, ao lado do campo industrial, lhes fornecerá todos os
pacientes que forem capazes de atender. O artista, assim como o indígena, pode
se tornar tutelado do governo; poderá ter licença para zanzar por aí sem rumo,
simplesmente porque, assim como no caso dos indígenas, não temos coragem de matá-lo.
Ou talvez só depois de ter prestado “serviços úteis” à sociedade ele possa ter
permissão de praticar sua arte. Parece-me que estamos chegando a um impasse
assim. Só a obra de artistas mortos parece ter alguma atração ou valor para
nós. Os ricos sempre podem ser levados a dar apoio a mais de um museu; sempre é
possível contar com as academias para nos fornecer os cães de guarda e as
hienas; sempre se pode comprar os críticos que matarão o que é fresco e vital;
sempre haverá educadores que mal informarão os jovens quanto ao sentido da
arte; os vândalos sempre podem ser instigados a destruir o que é poderoso e
perturbador. Os pobres não conseguem pensar em nada além de comida e casa; os
ricos se divertem colecionando investimentos seguros que lhes são fornecidos
pelos demônios devoradores de cadáveres que comerciam com o sangue e o suor de
artistas; a classe média paga ingresso para ficar de boca aberta e criticar,
orgulhosa de seu conhecimento requentado da arte e tímida demais para defender o
homem que no fundo do coração ela teme, sabendo que o inimigo verdadeiro não é
o homem acima, que tem de bajular, mas o rebelde que expõe em palavras ou
tintas a podridão do edifício que eles, a classe média covarde, são obrigados a
sustentar. Os únicos artistas no presente que vêm sendo regiamente
recompensados por seu trabalho são os charlatães; entre eles estão não apenas a
variedade importada, mas também os filhos nativos que são capazes de levantar
uma nuvem de poeira quando se trata de questões reais.
O homem que
quer pintar não aquilo que vê, amas aquilo que sente não ter lugar em nosso
meio. Ele pertence à cadeia ou ao manicômio. A menos, como no caso do doutor Souchon,
que possa provar sua sanidade e integridade com trinta ou quarenta anos de
serviços prestados à humanidade no papel de cirurgião.
É esse o
estado da arte na América de hoje. Quanto tempo mais vai resistir? Talvez a
guerra seja uma benção disfarçada. Talvez, depois de termos atravessado mais um
banho de sangue, possamos dar atenção aos homens que procuram arranjar sua vida
em outros termos que não ambição, rivalidade, ódio, morte e destruição.
Talvez...
Pesadelo Refrigerado. Editora Francis, 2006.
Tradução de José Rubens Siqueira
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