ECOS DE
BLANCHOT & MAX
Contentar-se com os homens, manter a casa aberta com seu coração, isso é liberal, mas isso é meramente liberal. Reconhecem-se os corações que são capazes de uma nobre hospitalidade nas muitas janelas cobertas por cortinas e nas persianas fechadas: eles mantêm seus melhores lugares vazios. Mas por quê? - Porque esperam os hospedes com os quais não "se contentam"...
NIETZSCHE, "Incursões de um extemporâneo", Crepúsculo dos Ídolos.
Não há espaço,
sem tempo. Não há tal coisa como espaço em branco. Sempre se poderá imaginar a
vinda – a chegada. Que alguma coisa ainda esteja por acontecer. Dois homens, um
romancista & um poeta, venham estabelecer paralelamente um passível jogo.
Que estejam tensos, pois o tempo constitui a tensão. Espaço-tempo se abrindo em
dois. A respiração realizada entre um & outro evoca um tempo de silêncio,
um espaço de silêncio – a literatura. Um dos homens atende à porta. Olha para
baixo. A cabeça inclinada para o chão como um guardião na sala da hospedaria do
Castelo. Apenas que aqui ele não está num retrato. Observado, sua imagem não o
confirma numa morfologia para os olhos, essa que se tornará o Demônio de uma
longa época. Um certo estrabismo a certa semiótica da reflexividade. Ele se
desprende da foto sem, no entanto avançar no espaço. O outro, frente à porta
semiaberta, não questiona a importância de ficar parado, uma vez que veio até
ali por também estar há muito imóvel e recolhido em si. Sem rasgar a ilusão de
espaço, na distância limite em que um pode saltar até o outro e apertarem-se as
mãos: ocorre o duplo desvio. As mãos estendidas e abertas em silêncio criam
lacunas, desprendem-se, desvanecem. Eles que sempre estiveram além do horizonte
da aparência, agora, face a face, não têm como pronunciar um discurso de
circunstância e lançar âncora entre os musgos. Só um rastreou o outro, é
verdade, mas sem nunca o mapear. Leu “Thomas, o Obscuro” quando ainda escrevia
seu segundo livro e entregava-se definitivamente à feitiçaria do poema. O outro
nunca o avistou. Esse poderia ser o cenário tardio entre os dois homens. A
respiração para eles sempre foi o maior problema. Passeando a vida, o fim à
vista. O desastre sempre cuidou de tudo. Mesmo um rápido sorriso corajoso não
os salvaria da iminente queda. Antes a não aquiescência da cabeça. Um olhar
reto. Tudo que assusta o inferno dentro deles. Por certo, ele, ao abrir a
porta, deveria estar dizendo que teria gostado de ler com minúcia e atenção
insuplantáveis o Anti-Retrato ou o Caminho de Marahu. A escrita
do desterro que tanto o agradou sempre. Teria visto Kafka & Paul Celan, em
alguns versos e gostado. A experiência do desmoronamento. Os signos da solidão.
A falta vivente do ser. Essa não teria sido exatamente a escrita desse outro
que, alheio, estranho, lhe bate à porta, num fim de outono? E que talvez seja o
mesmo que dizer: desde que entrou para a poesia? O homem de uma terra
desfalecente, onde a vida e a cultura não passam de uma quimera? Onde o poema,
justamente depois do amplo movimento internacional de três poetas, passa a
valer bem menos que qualquer slogan publicitário? Ele, fora do mercado, ter que
ganhar a vida – trocar, vender, perder, dar, recuperar, perder outra vez.
Amores & alegrias insensatas. As grandes dores. E daí ser impelido a dar
largos passos em direção ao ócio e ao silêncio – o desvio. Para quem a amizade
pela poesia não se constituiu em ter que percorrer caminhos já abertos. Amizade
pela poesia é mudar o caminho. Errá-lo. Ir. Não entrar na geração. Surpreendê-la
pelos flancos. Sobretudo não esperar que se confirme a Revelação. E como
aquelas doze badaladas a que Nietzsche se refere que contamos sempre errado...
não há o encontro marcado, sequer conosco mesmo... “Mas como eu, ele foi
parecido comigo”. De onde poderá ter ecoado isso?
Ney Ferraz Paiva
Imagem: ney ferraz paiva, "blanchot recebe max", colagem 40x30 cm, 2016.