o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

terça-feira, 8 de novembro de 2016

                                             25 de novembro de 1976


Caro Vadim Kosovoi,

Sim, recebi teu livro sobre Paul Valéry. Quero
agradecer, dizendo-te o quão fui tocado por teu sinal
de solidariedade. Recebe-o de mim também. Sim, es-
tejamos unidos pelos valores de liberdade, de frater-
nidade, e desejemos que a cultura, sendo intercambi-
ada ajude a nós todos a melhor compreender  o  que
está em jogo nas palavras e para além delas.
           com meus mais cordiais pensamentos.


                                                        Maurice Blanchot



CARTAS A VADIM KOZOVOI, Maurice Blanchot, Lumme Editor, 2012
Tradução: Amanda Mendes Casal e Eclair Antonio Almeida Filho
Imagem: ney ferraz paiva

sábado, 5 de novembro de 2016

...
Juventude –
a jusante a maré entrega tudo –
maravilha do vento soprando sobre a maravilha
de estar vivo e capaz de sentir
maravilhas no vento –
amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rasto –
maravilha de estar ensimesmado
(a maravilha: vivo!)
tragado pelo vento, assinalado
nos pélagos do vento, recomposto
nos pósteros do tempo, assassinado
na pletora do vento –
maravilha de ser capaz,
maravilha de estar a postos,
maravilha de em paz sentir
maravilhas no vento
e apascentar o vento,
encapelado vento –
mar à vista da ilha,
eternidade à vista
do tempo –

o tempo: sempre o sopro
etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento,
do montuoso vento –
e a terna idade amarga – juventude –
êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido,
vento salgado, paz de sentinela
maravilhada à vista
de si mesma nas algas
do tumultuoso vento,
de seus restos na mágoa
do tumulário tempo,
de seu pranto nas águas do mar justo –
maravilha de estar assimilado
pelo vento repleto e pelo mar completo – juventude –
a montante a maré apaga tudo –
...



Mário Faustino, O Homem e Sua Hora, 1955
Imagem: Ernesto Timor, Limites

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Minha mãe enterrada
é exumada para reprises
[...]

Agora querem fazer um filme
Para os incapazes
De imaginar o corpo
Com a cabeça no forno.
Os comedores de amendoim, divertindo-se
Com a morte de minha mãe, irão para casa...
Talvez compreendam o filme.
Só precisarão pressionar 'pause'
Se quiserem colocar a chaleira no fogo
Enquanto minha mãe segura sua respiração na tela
Para terminar de morrer depois do chá.
[...]

Eles pensam que eu deveria adorar
Eles pensam
Que eu deveria lhes dar as palavras de minha mãe
Para encher a boca de seu monstrengo
Sua Boneca Sylvia Suicida
Que vai saber andar, falar
E morrer quando eles quiserem
Morrer e morrer de novo
Viver sempre morrendo.






Frieda Hughes, fragmentos
Imagem: Sylvia Plath, Frieda Hughes ladeda pelo busto do pai Ted Hughes.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Lady Lázaro




Fiz novamente
Um ano em cada dez
Eu tento...
Uma espécie de milagre ambulante, minha pele
Brilha como uma lanterna nazista,
Meu pé direito
Um peso de papel,
Minha face apática, delicado
Linho judeu.
Cedem as cortinas
Oh meu inimigo.
Eu te assusto?...
O nariz, a cova dos olhos, todos os dentes?
O hálito azedo
Irá dissipar-se algum dia.
Muito, muito em breve a carne
Que o túmulo consumiu voltará
Ao lar, em mim.
E eu, uma mulher sorridente.
Eu tenho apenas trinta anos
E como um gatos, tenho nove vidas para morrer.
Esta é a Número Três.
Que bobagem
Aniquilar-se a cada década.
Um milhão de filamentos.
A multidão comendo amendoim
aproxima-se para ver
Desenfaixarem-me as mãos e os pés
O grande Strip-tease.
Senhoras e senhores!
Eis minhas mãos
Meus joelhos
Posso ser apenas pele e osso,
Mas eu sou a mesma,
A mesma mulher.
Na primeira vez eu tinha apenas dez anos.
Foi um acidente.
Na segunda eu desejei
Levar até o fim e não retornar.
Insegura, tranquei-me
Como uma concha do mar.
Tiveram que chamar e chamar
E tirar-me os vermes como pérolas grudentas.
Morrer
É uma arte, como qualquer outra,
Eu sou excepcionalmente boa nisso.
Eu faço isso parecer tão infernal
Eu faço isso parecer tão real
Aposto que vocês vão dizer que é minha vocação
É muito fácil fazer isso numa cela
É tão fácil fazer isso e permanecer nela
É teatral.
Retorno sob a luz do sol
Para o mesmo lugar, com o mesmo rosto
O mesmo grito
Divertidamente irracional:
“Um milagre!”
Que me deixa mal.
Há um preço
Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração -
Ele bate, deveras.
E há um preço, um preço muito alto
Para uma palavra ou um toque
Ou uma mancha sangue
Ou uma mecha do meu cabelo ou minhas roupas
Então, então, senhor doutor.
E então, senhor inimigo.
Eu sou sua obra-prima,
Eu sou seu tesouro,
O bebê de puro ouro
Que se mistura num grito.
Eu viro e queimo.
Não pense que subestimo sua grande preocupação
Cinza, cinza...
Você remexe e atiça
Carne, osso, não há mais nada ali...
Uma barra de sabão
Uma aliança de casamento
Um obturação de ouro.
Senhor Deus, Senhor Lúcifer
Cuidado
Cuidado
Saída das cinzas
Ergo-me com os cabelos escarlates
E devoro homens como se fossem ar.





Sylvia Plath
Tradução de Samantha de Sousa
Imagem: ney ferraz paiva, colagem, 2016


À espera



À espera, de pé, na pedra
entre a esfera verde do mar

e a estrela que a cada
noite se aproxima, falas

cada vez mais mudo,
numa voz que escuta o fundo

de outra voz que vem
e diz-não-diz em eco,

hein, idioma de algas
algo assim num som surdo:

nada, vestido de corpo e carma,
enquanto se dissolve o mundo









Antônio Moura
Imagem: ney ferraz paiva, “sei que tu estais muito fatigada”, colagem, 2016.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

POEMA DE OUTUBRO


Era o meu trigésimo ano rumo ao céu
Quando chegou aos meus ouvidos, vindo do porto
e do bosque ao lado,
E da praia empoçada de mexilhões
E sacralizada pelas garças
O aceno da manhã

Com as preces da água e o grito das gralhas e gaivotas
E o chocar-se dos barcos contra o muro emaranhado de redes
Para que de súbito
Me pusesse de pé
E descortinasse a imóvel cidade adormecida.

Meu aniversário começou com as aves marinhas
E os pássaros das árvores aladas esvoaçavam o meu nome
Sobre as granjas e os cavalos brancos
E levantei-me
No chuvoso outono
E perambulei sem rumo sob o aguaceiro de todos os meus dias.
A garça e a maré alta mergulhavam quando tomei a estrada
Acima da divisa
E as portas da cidade
Ainda estavam fechadas enquanto o povo despertava.

Toda uma primavera de cotovias numa nuvem rodopiante
E os arbustos à beira da estrada transbordante de gorjeios
De melros e o sol de outubro
Estival
Sobre os ombros da colina,
Eram climas amorosos e houve doces cantores
Que chegaram de repente na manhã pela qual eu vagava e ouvia
Como se retorcia a chuva
O vento soprava frio no bosque ao longe que jazia a meus pés.

Pálida chuva sobre o porto que encolhia
E sobre o mar que umedecia a igreja do tamanho de um caracol
Com seus cornos através da névoa e do castelo
Encardido como as corujas mas todos os jardins
Da primavera e do verão floresciam nos contos fantásticos
Para além da divisa e sob a nuvem apinhada de cotovias.
Ali podia eu maravilhar-me
Meu aniversário Ia adiante mas o tempo girava em derredor.

Ao girar me afastava do país em júbilo
E através do ar transfigurado e do céu cujo azul se matizava
Fluía novamente um prodígio do verão
Com maçãs
Pêras e groselhas encarnadas
E no girar do tempo vi tão claro quanto uma criança
Aquelas esquecidas manhãs em que o menino passeava com sua mãe em meio às parábolas
Da luz solar
E às lendas da verde capela

E pelos campos da infância duas vezes descritos
Pois suas lágrimas me queimavam as faces e seu coração
se enternecia em mim.
Esses eram os bosques e o rio e o mar
Ali onde um menino
À escuta
Do verão dos mortos sussurrava a verdade de seu êxtase
Às árvores e às pedras e ao peixe na maré.
E todavia o mistério
Pulsava vivo Na água e nos pássaros canoros.

E ali podia eu maravilhar-me com meu aniversário
Que fugia, enquanto o tempo girava em derredor. Mas a verdadeira
Alegria da criança há tanto tempo morta cantava
Ardendo ao sol.
Era o meu trigésimo ano
Rumo ao céu que então se imobilizara no meio-dia do verão
Embora a cidade repousasse lá embaixo coberta de folhas no sangue de outubro.

Oh, pudesse a verdade de meu coração
Ser ainda cantada
Nessa alta colina um ano depois.





Dylan Thomas

Tradução de Ivan Junqueira
Imagem: Ernesto Timor, Infusão

domingo, 23 de outubro de 2016

Vivissecção



Li numa antologia de poetas norte-americanos                                          
Você foi a única a morrer
Olhos vazados cor de fogo de jacinto & enxofre                                              
Ainda dispostos a se irar
Coração arrancado bem na frente dos filhos                                                 
Você nem teve tempo de gritar
Ovelha na cerração
Desorientada & com medo
Trinta anos apenas & já sacrificada
Golpeada por machado
Comida por ervas daninha













Ney Ferraz Paiva

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Sol da morte


A voz sempre volta ao subterrâneo de onde saiu
O que sobe aos céus gera morte
Embaixo da terra de nenhum modo escurece





Ney Ferraz Paiva
Imagem: Ernesto Timor, meus campos visuais [aparições e reconstruções] Ciclo 1, 2014

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Estamos aqui talvez para dizer água



As palavras desistem
São poucas eu muito
Apesar de ficar longe
De mim esse tempo todo
O silêncio voz dos introvertidos
Pode durar dez anos
O resto são fragmentos
De uma longa tarde
Ou das graves sombras do rio
Por onde me seguem
Os líquidos passos da morte
Meu caminho ondeia & despista
Sabe eu vivo sempre nas margens
Sob a chuva vermelha das metáforas
Apenas um dos meus pés está no fogo
Perto daqui não há consolo
As gaivotas no inverno fogem para as águas doces
Nunca retornei




Ney Ferraz Paiva
Imagem: Marepe

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

SOBRETUDO NO INSTANTE EM QUE O VENTO DE OUTUBRO 

  



Sobretudo no instante em que o vento de Outubro
vem com os dedos de geada flagelar os meus cabelos
e eu, preso pelas garras do sol, caminho sobre as chamas
e estendo sobre a terra uma garra sombria
junto à orla do mar, ouvindo o ruído dos pássaros
e o crocitar do corvo nas ramarias de Inverno,
é que mais estremece o meu coração com a sua voz
e se derrama o sangue silábico ou as suas palavras perdidas

Assim encerrado numa torre de palavras eu desenho
sobre o horizonte, ao caminhar como as árvores,
os perfis verbais de mulheres e, num parque, as filas longas
das crianças cujos gestos se assemelham a estrelas.
Há quem pretenda que eu te crie das faias vocálicas,
das vozes dos carvalhos ou que te conte uma narrativa
a partir das raízes de muitas províncias espinhosas,
e há quem pretenda que te crie das palavras de água.
Através de um vaso de fenos, o relógio que oscila
pronuncia a palavra das horas, o sentido enervado
paira sobre o círculo do pêndulo, declama a manhã
e vem anunciar no cata-ventos a tempestade.
Há quem pretenda que dos sinais do prado eu te crie;
a erva memorável que me diz tudo o que já sei
rompe através do olhar com o Inverno cheio de vermes.
E há quem pretenda que eu te conte os pecados do corvo.
Sobretudo no instante em que o vento de Outubro
(há quem pretenda que te crie de uma outonal magia,
dos sonoros montes do país de Gales ou da baba das aranhas)
vem com o punho dos bolbos flagelar a terra,
há quem pretenda que te crie com palavras sem coração.
O coração esgota-se estremecendo com a fuga
do sangue químico, consciente de como a agitação chega.
Junto à orla do mar, escuta as negras vogais dos pássaros.



Dylan Thomas
Tradução de Fernando Guimarães
Imagem: Francesca Woodman

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Visão de São Paulo à noite
Poema Antropófago sob Narcótico


Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se como raízes
Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apoia em nada
eu não me apoio em nada
sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola
eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta
chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
correias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em voltas das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
e o Estrondo










Roberto Piva
Ernesto Timor


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

FALA 

Tudo 
será difícil de dizer: 
a palavra real nunca é suave. 

Tudo será duro: 
luz impiedosa 
excessiva vivência 
consciência demais do ser. 

Tudo será 
capaz de ferir. Será 
agressivamente real. 
Tão real que nos despedaça. 
Não há piedade nos signos 
e nem no amor: o ser 
é excessivamente lúcido 
e a palavra é densa e nos fere. 

(Toda palavra é crueldade.)






Orides Fontela