o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Visão de São Paulo à noite
Poema Antropófago sob Narcótico


Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se como raízes
Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apoia em nada
eu não me apoio em nada
sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola
eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta
chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
correias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em voltas das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
e o Estrondo










Roberto Piva
Ernesto Timor


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

FALA 

Tudo 
será difícil de dizer: 
a palavra real nunca é suave. 

Tudo será duro: 
luz impiedosa 
excessiva vivência 
consciência demais do ser. 

Tudo será 
capaz de ferir. Será 
agressivamente real. 
Tão real que nos despedaça. 
Não há piedade nos signos 
e nem no amor: o ser 
é excessivamente lúcido 
e a palavra é densa e nos fere. 

(Toda palavra é crueldade.)






Orides Fontela

sábado, 8 de outubro de 2016

PARA UMA FOTO DE OTTO STUPPAKOF


Nunca aprendi a pescar
Nunca aprendi a ouvir os pássaros
– paciência pousar manso recolhimento –
Nunca me desviei dos caminhos do sucesso



Ney Ferraz Paiva
Imagem: Otto Stuppakof 

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

MÍMESIS


quando esqueço
as grandes assombrações
e beijo teu regaço escuro, tua pequena
pele surpreendente
temo que o meu rosto se desfigure e volte
a imitar
os mistérios da noite e a trágica história do malabarista




ana cristina cesar, antigos e soltos - poemas e prosas da pasta rosa, são paulo: ims, 2008
imagem: ney ferraz paiva, "as grandes assombrações", colagem, 2009

domingo, 25 de setembro de 2016

Testamento do Homem Cansado


Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: Ele era assim...
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.





         Carlos Pena Filho
         Imagem: Dionysos

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

disseram: mande um poema para a revista onde colaboram todos
e eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque
nada se reparte: ou se devora tudo
ou não se toca em nada,
morre-se mil vezes de uma só morte ou
uma só vez das mortes todas juntas:
só colaboro na minha morte:
e eles entenderam tudo, e pensaram: que este não colabore nunca,
que o demônio o leve, e foram-se,
e eu fiquei contente de nada e de ninguém,
e vim logo escrever este, o mais curto possível, e depressa, e
vazio poema de sentido e de endereço e
de razão deveras,
só porque sim, isto é: só porque não agora






HERBERTO HELDER, Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013.
Imagem: Igor Malaschenko, da série "back to babel - back and forth from babel", 2015.


domingo, 11 de setembro de 2016

EM ALGUM LUGAR SECO E ENORME, 1949


Você e eu vestidos confortavelmente observando a linha reta
enquanto no céu as nuvens correm como no filme
que às vezes Você sonha fazer comigo sem os filhos olhando
a linha reta entre dois amarelos que antes foram
a massa amarela e que nunca saberemos em que demônios
se converteram (nem nos importa!) Você e eu na casa alugada
sentados junto ao janelão a verdade dizes é que poderia
chorar por toda a tarde a verdade é que não tenho fome e sim
um pouco de medo de embebedar-me outra vez sentados junto
a um janelão reto, não? enquanto atrás de nós
os pássaros saltam de galho em galho e a luz da cozinha
pisca Você e eu em uma cama, ali estamos! Observando
as paredes brancas – dois contornos que se misturam – ajudados
pela luz da rua e pela luz de nossos corações frios
que se negam a morrer.






ROBERTO BOLAÑO
        Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Eugenio Recuenco

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Dá-me um poema
Para despedaçar o coração dos homens
Puro como lâminas
Como o som de um relógio
Sobre o pântano.
Diz-me o significado, espectro,
E diz-me a hora
Em que me perco,
E em que quarto serei encontrado outra vez.
Dá-me o poder da minha mão
E que as minhas palavras sejam sãs
E fortes como o voo.
Conduz o meu aparo,
Ajuda-me a escrever,
Mostra-me as portas
Onde estão as ordens;
E a prisão
Que a minha alma contempla,
Onde a minha coragem
Ruge entre as grades.








Malcolm Lowry
Imagem: Ernesto Timor, 2012-2014

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

SEM TÍTULO

Agora teu corpo é sacudido por
pesadelos. Já não és
o mesmo: o que amou,
que se arriscou.
Já não és o mesmo, ainda que
talvez amanhã tudo se desvaneça
como um sonho ruim e comeces
de novo. Talvez
amanhã comeces de novo.
E o suor, o frio,
os detetives erráticos,
sejam como um sonho.
Não desanimes.
Agora tremes, mas talvez
amanhã tudo comece de novo.




Roberto Bolaño
Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Tempos Modernos, Charles Chaplin, 1936

sábado, 3 de setembro de 2016

AMANHECER


Creia-me, estou no centro de minha casa
esperando que chova. Estou só. Não me importa
terminar ou não meu poema. Espero a chuva,
tomando um café e olhando pela janela uma bela paisagem
de pátios internos, com roupas penduradas e imóveis,
silenciosas roupas de mármore na cidade, onde não existe
o vento e ao longe só se escuta o zumbido
da televisão em cores, assistida por uma família
que também, a esta hora, toma café reunida em volta
de uma mesa: creia-me: as mesas de plástico amarelo
se estendem até a linha do horizonte e mais além:
até os bairros distantes onde se constroem edifícios
de apartamentos, e um garoto de 16 sentado sobre
ladrilhos vermelhos contempla o movimento das máquinas.
O céu na hora do garoto é um enorme
parafuso oco com quem a brisa brinca. E o garoto
brinca com ideias. Com ideias e com cenas congeladas.
A imobilidade é uma neblina transparente e dura
que sai de seus olhos.
Creia-me: não é o amor que vai chegar,
mas a beleza com sua estola de alvoradas mortas.





ROBERTO BOLAÑO
Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Elaine Pessoa, Tempo Arenoso, São Paulo, Edições Olhavê, 2015.

sábado, 13 de agosto de 2016

ABAIXO A DITADURA FORA TEMER

Brasil, 1968





















Brasil, 2016






















O Brasil recluso no labirinto da crise da ganância global e do
entreguismo da direita local – trapaceira corrupta e golpista.