o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

MÍMESIS


quando esqueço
as grandes assombrações
e beijo teu regaço escuro, tua pequena
pele surpreendente
temo que o meu rosto se desfigure e volte
a imitar
os mistérios da noite e a trágica história do malabarista




ana cristina cesar, antigos e soltos - poemas e prosas da pasta rosa, são paulo: ims, 2008
imagem: ney ferraz paiva, "as grandes assombrações", colagem, 2009

domingo, 25 de setembro de 2016

Testamento do Homem Cansado


Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: Ele era assim...
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.





         Carlos Pena Filho
         Imagem: Dionysos

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

disseram: mande um poema para a revista onde colaboram todos
e eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque
nada se reparte: ou se devora tudo
ou não se toca em nada,
morre-se mil vezes de uma só morte ou
uma só vez das mortes todas juntas:
só colaboro na minha morte:
e eles entenderam tudo, e pensaram: que este não colabore nunca,
que o demônio o leve, e foram-se,
e eu fiquei contente de nada e de ninguém,
e vim logo escrever este, o mais curto possível, e depressa, e
vazio poema de sentido e de endereço e
de razão deveras,
só porque sim, isto é: só porque não agora






HERBERTO HELDER, Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013.
Imagem: Igor Malaschenko, da série "back to babel - back and forth from babel", 2015.


domingo, 11 de setembro de 2016

EM ALGUM LUGAR SECO E ENORME, 1949


Você e eu vestidos confortavelmente observando a linha reta
enquanto no céu as nuvens correm como no filme
que às vezes Você sonha fazer comigo sem os filhos olhando
a linha reta entre dois amarelos que antes foram
a massa amarela e que nunca saberemos em que demônios
se converteram (nem nos importa!) Você e eu na casa alugada
sentados junto ao janelão a verdade dizes é que poderia
chorar por toda a tarde a verdade é que não tenho fome e sim
um pouco de medo de embebedar-me outra vez sentados junto
a um janelão reto, não? enquanto atrás de nós
os pássaros saltam de galho em galho e a luz da cozinha
pisca Você e eu em uma cama, ali estamos! Observando
as paredes brancas – dois contornos que se misturam – ajudados
pela luz da rua e pela luz de nossos corações frios
que se negam a morrer.






ROBERTO BOLAÑO
        Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Eugenio Recuenco

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Dá-me um poema
Para despedaçar o coração dos homens
Puro como lâminas
Como o som de um relógio
Sobre o pântano.
Diz-me o significado, espectro,
E diz-me a hora
Em que me perco,
E em que quarto serei encontrado outra vez.
Dá-me o poder da minha mão
E que as minhas palavras sejam sãs
E fortes como o voo.
Conduz o meu aparo,
Ajuda-me a escrever,
Mostra-me as portas
Onde estão as ordens;
E a prisão
Que a minha alma contempla,
Onde a minha coragem
Ruge entre as grades.








Malcolm Lowry
Imagem: Ernesto Timor, 2012-2014

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

SEM TÍTULO

Agora teu corpo é sacudido por
pesadelos. Já não és
o mesmo: o que amou,
que se arriscou.
Já não és o mesmo, ainda que
talvez amanhã tudo se desvaneça
como um sonho ruim e comeces
de novo. Talvez
amanhã comeces de novo.
E o suor, o frio,
os detetives erráticos,
sejam como um sonho.
Não desanimes.
Agora tremes, mas talvez
amanhã tudo comece de novo.




Roberto Bolaño
Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Tempos Modernos, Charles Chaplin, 1936

sábado, 3 de setembro de 2016

AMANHECER


Creia-me, estou no centro de minha casa
esperando que chova. Estou só. Não me importa
terminar ou não meu poema. Espero a chuva,
tomando um café e olhando pela janela uma bela paisagem
de pátios internos, com roupas penduradas e imóveis,
silenciosas roupas de mármore na cidade, onde não existe
o vento e ao longe só se escuta o zumbido
da televisão em cores, assistida por uma família
que também, a esta hora, toma café reunida em volta
de uma mesa: creia-me: as mesas de plástico amarelo
se estendem até a linha do horizonte e mais além:
até os bairros distantes onde se constroem edifícios
de apartamentos, e um garoto de 16 sentado sobre
ladrilhos vermelhos contempla o movimento das máquinas.
O céu na hora do garoto é um enorme
parafuso oco com quem a brisa brinca. E o garoto
brinca com ideias. Com ideias e com cenas congeladas.
A imobilidade é uma neblina transparente e dura
que sai de seus olhos.
Creia-me: não é o amor que vai chegar,
mas a beleza com sua estola de alvoradas mortas.





ROBERTO BOLAÑO
Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Elaine Pessoa, Tempo Arenoso, São Paulo, Edições Olhavê, 2015.

sábado, 13 de agosto de 2016

ABAIXO A DITADURA FORA TEMER

Brasil, 1968





















Brasil, 2016






















O Brasil recluso no labirinto da crise da ganância global e do
entreguismo da direita local – trapaceira corrupta e golpista.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

SINTAXE DA LINGUAGEM VISUAL


gatos roeram a cara de Picasso numa revista
gatos deram a Picasso uma sepultura rasa de
arranhaduras cortes pontapés na cara o que era
pra ser só brincadeira acabou em morte quando
o corpo não é realmente nada belo faz-se outro
corpo Picasso não estava nem aí pra beleza mas
gatos não passam sem ela se param se despistam
não vão a outro lugar onde ela não esteja Picasso
se deixava derreter na praia sob o sol gatos odeiam










Ney Ferraz Paiva, Arrastar um landau debaixo d'água, 2015

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

os vocábulos
                    fúnebres
quando se juntam
                          ocultos dentro de nós
só os olhos
                 podem tocar
isto poderia ter sido dito por rosário fusco
mas foi por mim
                         ou terá sido por ti?
                         nem estou mais certo
                         [teus olhos ainda escutam?]




ney ferraz paiva, nave do nada, 2004

quarta-feira, 27 de julho de 2016

KAFKA E SEUS PRECURSORES


  Certa vez premeditei um exame dos precursores de Kafka. A princípio, pude considerá-lo tão singular como a fênix dos louvores retóricos; do pouco que o li, pensei reconhecer sua voz, ou seus hábitos, em textos de diversas literaturas e de diversas épocas. Registrarei alguns deles aqui, em ordem cronológica.
  O primeiro é o paradoxo de Zenão contra o movimento. Um móvel que está em A (declara Aristóteles) não poderá alcançar o ponto B, porque antes deverá percorrer a metade do caminho entre os dois, e antes a metade da metade, e antes a metade da metade da metade, e assim até o infinito; a forma desse ilustre problema é, exatamente, a de O castelo, e o móvel e a flecha e Aquiles são os primeiros personagens kafkianos da literatura. No segundo texto que me trouxe o acaso dos livros, a afinidade não está na forma, mas no tom. Trata-se de um apólogo de Han Yu, prosador do século IX, e consta na admirável Anthologie raisonnée de la littérature chinoise (1948), de Margouliès. É este o parágrafo que marquei, misterioso e tranquilo: “Universalmente se admite que o unicórnio é um ser sobrenatural e de bom agouro; assim declaram as odes, os anais, as biografias de varões ilustres e outros textos cuja autoridade é indiscutível. Até os parvos e as mulheres do povo sabem que o unicórnio constitui um presságio favorável. Porém, esse animal não figura entre os animais domésticos, e encontrá-lo não é fácil, não se presta a classificações. Não é como o cavalo ou o touro, o lobo ou o corvo. Em tais condições, poderíamos estar diante de um unicórnio e não saberíamos com segurança que se trata dele. Sabemos que um animal com crina é cavalo e que um animal com chifres é touro. Não sabemos como é o unicórnio”.
  O terceiro texto procede de uma fonte mais previsível: os escritos de Kierkegaard. A finalidade mental desses dois escritores é coisa que ninguém ignora; o que ainda não se destacou, pelo que sei, é a recorrência de Kierkegaard, como Kafka, em parábolas religiosas de tema contemporâneo e burguês. Lowrie, em seu Kierkegaard (Oxford University Presss, 1938), transcreve duas. Uma é a história de um falsificador que examina, incessantemente vigiado, as cédulas do Banco da Inglaterra; Deus, de igual modo, desconfiaria de Kierkegaard e lhe teria confiado uma missão, justamente por sabê-lo habituado ao mal. O assunto da outra são as expedições ao polo Norte. Os párocos dinamarqueses teriam declarado desde os púlpitos que participar de tais expedições convém à salvação eterna da alma. Não obstante,  teriam admitido que chegar ao polo é difícil e talvez impossível, e que nem todos podem intentar a aventura. Finalmente, anunciaram que qualquer viagem – da Dinamarca a Londres, digamos, de barco a motor –, ou um passeio dominical em carro de praça,  são, analisando-se bem, verdadeiras expedições ao polo Norte. A quarta das prefigurações a encontrei no poema “Fears and Scruples”, de Browning, publicado em 1876. Um homem tem, ou acredita ter, um amigo famoso. Nunca o viu e o fato é que, até agora, ele não pôde ajudá-lo, embora atribuam a ele gestos muito nobres, e circulem cartas autênticas com seu nome. Há quem ponha em dúvida os gestos, e os grafólogos afirmam o caráter apócrifo das cartas. O homem, no último verso, pergunta: “E se esse amigo for Deus?”.
   Minhas notas registram igualmente dois contos. Um pertence às Histories désobligeantes de León Bloy e alude ao caso de pessoas que colecionam globos terrestres, atlas, guias ferroviários e baús, e que morrem sem jamais ter conseguido deixar sua cidade natal. O outro se intitula “Carcassonne” e é obra de lorde Dunsany. Um invencível exército de guerreiros parte de um castelo infinito, subjuga reinos e vê monstros e se exaure nos desertos e nas montanhas, mas nunca chega a Carcassonne, ainda que chegue a divisá-la. (Este conto é, como facilmente se advertirá, o exato reverso do anterior; no primeiro, nunca se sai de uma cidade; no último, nunca se chega).
  Se não me engano, as heterogêneas peças que enumerei se assemelham a Kafka; se não me engano, nem todas se parecem entre si. Este último fato é o mais significativo. Em cada um desses textos está a idiossincrasia de Kafka, em grau maior ou menor, mas se Kafka não tivesse escrito, não a perceberíamos; vale dizer, não existiria. O poema “Fears and Scruples” de Browning, profetiza a obra de Kafka, mas nossa leitura de Kafka apura e desvia sensivelmente nossa leitura do poema. Browning não o lia como nós agora o lemos. Ao vocabulário crítico, a palavra precursor é indispensável, mas é preciso tentar purificá-la de toda conotação polêmica ou rivalidade. O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro. Em nada importa, nessa correlação, a identidade ou a pluralidade dos homens. O primeiro Kafka de Betrachtung é menos precursor do Kafka dos mitos sombrios e das instituições atrozes do que Browning ou lorde Dunsany.


Kafka e sua irmã Otlla

Jorge Luis Borges
Buenos Aires, 1951