o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 15 de maio de 2016

 A CRUZ DE FERRO


Em abril de 1945 em Stargard, Mecklenburg, um comerciante de papéis decidiu matar a tiros sua mulher, sua filha de quatorze anos e a si próprio. Através de clientes tinha ouvido falar do casamento e do suicídio de Hitler.
Oficial da reserva na Primeira Guerra, ainda tinha um revólver e dez balas de munição.
Quando sua mulher saiu da cozinha com o jantar ele estava de pé junto à mesa limpando a arma. Trazia a Cruz de Ferro na lapela, como em dias de festa.
O Führer tinha escolhido o suicídio e ele manteria a lealdade, explicou respondendo à sua pergunta. Se ela, sua mulher, estaria disposta a segui-lo também nisso. Com relação à filha, não tinha dúvidas de que ela preferia uma morte honrada pela mão do pai a uma vida indigna.
Chamou-a. Ela não o decepcionou.
Sem esperar pela resposta da mulher, ordenou às duas que vestissem seus casacos, já que ele, para evitar serem vistos, iria leva-las a um local apropriado, fora da cidade. Elas obedeceram. Carregou então o revólver, deixou que a filha o ajudasse a vestir o casaco, trancou a casa e jogou a chave pela abertura da caixa postal.
Chovia quando saíram da cidade pelas ruas escuras, o homem na frente, sem voltar-se para as mulheres, que o seguiam à distância. Ele ouvia os passos delas no asfalto.
Depois de deixar a estrada e tomar o atalho para o faial, virou-se sobre os ombros e pediu pressa. No vento noturno que soprava cada vez mais no descampado, os passos delas não fazia ruído sobre o chão molhado de chuva.
Gritou para que elas fossem na frente. Seguindo-as, não sabia: tinha medo que elas pudessem fugir, ou desejava fugir ele mesmo. Não demorou muito e elas estavam bem na frente. Assim que não podia mais vê-las, ficou claro que tinha muito medo de simplesmente fugir, e desejava muito que elas o fizessem. Parou e deu uma urinada. Carregava o revólver no bolso da calça, sentia-o frio pelo tecido fino. Andou mais depressa a fim de alcançar as mulheres; a arma batia a cada passo em sua perna. Diminuiu o passo. Mas, quando pôs a mão no bolso para jogar a arma fora, viu sua mulher e a filha. Estavam no meio do caminho à sua espera.
Queria fazê-lo no bosque, mas o perigo de os tiros serem ouvidos aqui não era maior.
Quando tomou o revólver na mão e o destravou a mulher enroscou-se, soluçante, em seu pescoço. Ela era pesada; teve que esforçar-se para desvencilhar-se dela. Dirigiu-se à filha, ela o olhava fixamente, apontou o revólver para suas têmporas e disparou de olhos fechados. Tinha esperança de que o tiro não saísse, mas ele o ouviu e viu a menina cambalear e cair.
A mulher tremia e gritava. Tinha de segurá-la. Somente do terceiro tiro ela silenciou.
Estava só.
Não havia ninguém que lhe ordenasse apontar a boca do revólver para as próprias têmporas. Os mortos não o viam, ninguém o via.
Guardou o revólver e curvou-se sobre sua filha. Em seguida começou a correr.
Voltou pelo caminho até a estrada e percorreu um trecho dela, mas não em direção à cidade, foi para oeste. Sentou-se então na beira da estrada, as costas apoiadas numa árvore, e com a respiração pesada pensou em sua situação. Achou que não era desesperadora.
Tinha apenas que continuar sempre para oeste e evitar os próximos vilarejos. Em algum lugar poderia submergir, numa cidade grande de preferência, com cognome, um fugitivo desconhecido, mediano e trabalhador.
Jogou o revólver no acostamento e levantou-se.
Ao caminhar ocorreu-lhe que tinha esquecido de jogar fora a Cruz de Ferro. Ele o fez. 





Heiner Müller
Tradução: Christine Roehrig e Marcos Renaux

sexta-feira, 13 de maio de 2016


CRÔNICA DE VIAGEM
 

Há cinco anos só ando a pé ou de bicicleta viajo a cidade sem poluí-la sigo o signo zodiacal não atropelo ninguém quando bêbado me dirijo a pé pra casa não me envolvo em acidentes quando me envolvo são aventuras tremendas olho o cair da tarde sinto o coração contrair-se dolorosamente ante um ipê na calçada um jasmim no quintal vibra a cidade desembarco no cais estudo os letreiros os limites entre bairros os níveis das marés os deslocamentos da chuva dos ventos cavalgo como um indígena me perco entre os aglomerados não carrego mapa bússola buzina pelo mar no fundo do oceano ou pelo deserto enfrento temerários perigos o ronco surdo da tarde umidade excessiva articulações doloridas extraordinariamente fatigado visito os amigos por numerosas aberturas vão se abrindo outra vez os caminhos... 





Ney Ferraz Paiva
Max Martins, "bicicletando", colagem, 27 de abril de 1989.

 Descida ao limbo, excerto


Aqui estamos no espaço vazio
no vazio nem sabemos onde estamos
e animais tentam preencher o vazio –
animais cada vez maiores
com esqueletos crescentes...
Os monstros cambaleiam
não se conhecem as suas espécies
parecem óleo derramado
suas enormes línguas deslizam sobre nós
como roupa molhada
e através de tudo a tinta iletrada da treva,
espanta-nos – a visão ainda funciona
e aconselha a ocultar-nos sob a terra
não é uma guerra, mas vem esconder-se
entre os animais...
e todos os olhos são zarolhos...
Aqui a mensagem não penetra mais
nem como faca em nosso coração
Mas lá no fundo do recinto, vejam,
Abre-se a portinhola do ninho do camundongo
e luz minúscula e minúsculo ser
procuram alcançar-nos à força.





Miodrag Pávlovitch Tradução Aleksandar Jovanovc
Ney Ferraz Paiva, "banquete das ratazanas", colagem, 2016


terça-feira, 3 de maio de 2016

A VERDADE

Como posso saber se o que vejo desta janela é de fato a paisagem que vejo?... Há muito, finjo acreditar em coisas que o homem teima em trocar pela fragilidade do vidro. Deus existe?... Deus não existe?... Ambas as coisas são verdade ao mesmo tempo. Pergunto-me e pergunto-lhe se a verdade existe mais que um milésimo de segundo. Nada é eterno. A eternidade passa depressa como a ciência.




Artur Cruzeiro Seixas 
Imagem: ney ferraz paiva, "a janela a verdade", colagem, 40 x 30cm, 2016

terça-feira, 19 de abril de 2016

Florêncio tinha família grande. O negro do cilindro sustentava um familião. Aquela gente passava mesmo necessidade. Ali eles tinham que comprar tudo, pagavam o casebre onde moravam. Pior que no engenho. Eles passavam mais fome que no engenho. Lá pelo menos plantavam para comer, tinham as suas espigas de milho, a sua fava para encher a barriga. No Recife tudo se comprava. Estivera na casa do Florêncio para não ir mais. O masseiro, a mulher, e quatro filhos, dormindo numa tapera de quatro paredes de caixão, coberta de zinco. Custava doze mil-réis por mês. A água do mangue, na maré cheia, ia dentro de casa. Os maruins de noite encalombavam o corpo dos meninos. O mangue tinha ocasião que fedia, e os urubus faziam ponto por ali atrás dos petiscos. Perto da rua lavavam couro de boi, pele de bode para o curtume de um espanhol. Morria peixe envenenado, e quando a maré secava, os urubus enchiam o papo, ciscavam a lama, passeando bameiros pelas biqueiras dos mocambos. Comiam as tripas de peixe que sacudiam pela porta afora. Os filhos de Florêncio passavam o dia pelo lixo que as carroças deixavam num pedaço de maré que estavam aterrando. Chegavam em casa, às vezes, com presas magníficas: botinas velhas, roupas rasgadas, trapos que serviam para forrar o chão, tapar os buracos que os caranguejos faziam dentro de casa. Eram bons companheiros os caranguejos. Viviam deles, roíam-lhes as patas, comiam-lhes as vísceras amargas. [...] Morar na beira do mangue só tinha esta vantagem: os caranguejos. Com o primeiro trovão que estourava, saíam doidos dos buracos, enchiam as casas com o susto. Os meninos pegavam os fugitivos e quando havia de sobra encangavam para vender. Para isto andavam de noite na lama com lamparina acesa na perseguição. Caranguejo ali era mesmo que vaca leiteira, sustentava o povo. Ricardo ficou com o pensamento na casa de Florêncio. Os meninos eram amarelos como os do engenho, mas eram mais infelizes ainda. E agrega: [...] pobre não tinha direito de reclamar. Pobre não nascera para ter direito. [...] Ricardo achou então que havia gente mais pobre do que os pobres do Santa Rosa. Mãe Avelina vivia de barriga cheia na casa-grande. Se ela viesse para ali e caísse naquela vida? Se os seus irmãos saíssem para o lixo, ciscando com os urubus? Florêncio ganhava quatro mil-réis por noite. O que eram quatro mil réis no Recife? Uma miséria. Por isso o outro falava em greve com aquela força, aquela vontade de vencer.






José Lins do Rego, O Moleque Ricardo, 1935.
Imagem: Boris Kosoy, Salvador, 1972.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Belém, 6 de fevereiro de 1944

Lúcio:

Quando telefonei para você pra me despedir fiquei aborrecida com um engano seu. Eu disse que nunca tinha podido chegar mais perto de seus problemas porque você nunca deixava; que eu, por encabulamento, então, disfarçava minhas perguntas de amizade em perguntas de curiosidade. É bem possível que você já nem saiba do que estou falando, tenha esquecido. Mas eu precisava lhe repetir que minha amizade não se transformou em curiosidade, o que seria horrível para mim.

Estou aqui meio perdida. Faço quase nada. Comecei a procurar trabalho e começo de novo a me torturar, até que resolvo não fazer programas; então a liberdade resulta em nada e eu faço de novo programas e me revolto contra eles. Tenho lido o que me cai nas mãos. Cai-me plenamente nas mãos Madame Bovary, que eu reli. Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que eu tive e as que eu não tive. - Eu nunca tive propriamente o que se chama de 'ambiente' mas sempre tive alguns amigos. Aqui só tem 'mutucas' (isso é besouro, mas por que não chamar tudo de mutuca logo de uma vez?)

Lúcio, como vai você? Responda, se responder, claramente a essa pergunta. (...)

Lúcio, sei que sou antipática e não posso fazer nada. Eu só falo de mim porque nem sei o modo de abordar você (...) Saudades da Clarice.


Colagem, Ney Ferraz Paiva, 2016.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Ode ao Burguês



Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
“– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar… – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!…








MÁRIO DE ANDRADE. 50 poemas e um Prefácio interessantíssimo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013
Imagem: Gerhard Richter

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Helena


No cômodo onde Menelau vivera
Bateram. Nada. Helena estava morta.
A última aia a entrar fechou a porta,
Levaram linho, unguento, âmbar e cera.

Noventa e sete anos. Suas pernas
Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe três hérnias bem externas.

Na boca sem um dente os lábios frouxos
Murchavam, ralo pelo lhe cobria
O sexo que de perto parecia
Um pergaminho antigo de tons roxos.

Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,
Compuseram seus ossos quebradiços,
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na em faixas perfumadas.

Então chamas onívoras tragaram
A carne que cindiu tantas vontades.
Quando sua sombra idosa entrou no Hades
As sombras dos heróis todas choraram




Alexei Bueno, Lucernário, 1993
Imagem: Sruli Recht

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O Fascismo Eterno



por Umberto Eco


A máquina antiguerra, Guernica, de Pablo Picasso











Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.

Depois, em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”. Contarei esta história no fim do meu discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não significava “liberação”.

Passei dois dos meus primeiros anos entre SS, fascistas e resistentes, que disparavam uns nos outros, e aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal exercício.

Em abril de 1945, a Resistência tomou Milão. Dois dias depois os resistentes chegaram à pequena cidade em que eu vivia. Foi um momento de alegria. A praça principal estava cheia de gente que cantava e desfraldava bandeirolas, invocando Mimo, o líder a resistência na área, em alto brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros confrontos. Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas, pálido; tentou acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali esperando seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada pelos grandes discursos históricos de Mussolini, cujos passos mais significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo falo com voz rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que caíram pela liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava, os membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto, festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos, preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que liberdade de palavra significa também liberdade da retórica.

Alguns dias depois vi os primeiros soldados norte-americanos. Eram afro-americanos. O primeiro ianque que encontrei era um negro, Joseph, que me apresentou às maravilhas de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram coloridos e tinham um cheiro bom.

Um dos oficiais (o major ou capitão Muddy) era hóspede na casa da família de dois dos meus companheiros de escola. Sentia-me em casa naquele jardim em que alguns senhores amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia um pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores norte-americanos, depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a de um negro culto em uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j’aime le champagne…” Infelizmente, faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu primeiro chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o chiclete em um copo d’água para que ficasse fresco para o dia seguinte.

Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz deu-me uma sensação curiosa. Haviam me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano. Nos meses seguintes descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local, mas Europeu. Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”, “armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”. Vi as primeiras fotografias do Holocausto e assim compreendi seu significado antes mesmo de conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido liberados.

Hoje na Itália existem algumas pessoas que se perguntam se a Resistência teve algum impacto militar real no curso da guerra. Para a minha geração a questão é irrelevante: compreendo imediatamente o significado moral e psicológico da Resistência. Era motivo de orgulho saber que nós, europeus, não tínhamos esperado passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens norte-americanos que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era irrelevante saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam pagando seu débito.

Hoje na Itália tem gente que diz que a Resistência é um mito comunista. É verdade que os comunistas exploraram a Resistência como uma propriedade pessoal, pois realmente tiveram um papel primordial no movimento; mas lembro-me dos resistentes com bandeiras de diversas cores.

Grudado ao rádio, passava as noites — as janelas fechadas e a escuridão geral faziam do pequeno espaço em torno ao aparelho o único halo luminoso — escutando as mensagens que a Rádio Londres transmitia para a Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior parte eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que Franchi era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da Itália do Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói. Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo de extrema direita e foi até acusado de ter participado de um golpe de Estado reacionário. Mas que importa? Sogno ainda é o sonho da minha infância. A liberação foi um empreendimento comum de gente das mais diversas cores.

Hoje na Itália tem gente que diz que a guerra de liberação foi um trágico período de divisão, e que precisamos agora de uma reconciliação nacional. A recordação daqueles anos terríveis deveria ser reprimida. Mas a repressão provoca neuroses. Se a reconciliação significa compaixão e respeito por todos aqueles que lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso até admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram.

Mas quem são “eles”?


Se pensamos ainda nos governos totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial, podemos dizer com tranquilidade que seria muito difícil que eles retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias históricas diversas. Se o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder carismático, no corporativismo, na utopia do “destino fatal de Roma”, em uma vontade imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na recusa da democracia parlamentar, no antissemitismo, então não tenho dificuldade para admitir que a Aliança Nacional, nascida do MSI (Movimento Social e Italiano), é certamente um partido de direita, mas tem muito pouco a ver com o velho fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo preocupado com os vários movimentos neonazistas ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o nazismo, e sua forma original, esteja ressurgindo como movimento capaz de mobilizar uma nação inteira.

Todavia, embora os regimes políticos possam ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. Há, então, um outro fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?

Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos.

Portanto, permitam-me perguntar por que não somente a Resistência mas toda a Segunda Guerra Mundial foram definidas em todo o mundo com uma luta contra o fascismo. Se relerem “Por quem os sinos dobram”, de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos com os fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis.

Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).

Durante os anos de McCarthy, os norte-americanos que tinham participado da guerra civil espanhola eram chamados de “fascistas prematuros” — entendendo com isso que combater Hitler nos anos 1940 era um dever moral de todo bom norte-americano, mas combater Franco cedo demais, nos anos 1930, era suspeito. Por que uma expressão como “fascist pig” era usada pelos radicais norte-americanos até para indicar um policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?

Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat (versão oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que subordina qualquer ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e estalinismo eram regimes totalitários.

O fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura quanto pela debilidade filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. O artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não tinha qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.

Começou como ateu militante, para depois firmar a concordata com a Igreja e confraternizar com os bispos que benziam os galhardetes fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais, segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali mesmo para provar sua existência. Deus estava, evidentemente, distraído. Nos anos seguintes, em seus discursos, Mussolini citava sempre o nome de Deus e não desdenhava o epíteto: “homem da Providência”. Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini.

O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir-se — conseguindo mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace. Foi somente nos anos 1930 que surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista.

Todavia, a prioridade histórica não me parece ser uma razão suficiente para explicar por que a palavra “fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma denominação pars pro toto para movimentos totalitários diversos. Não adianta dizer que o fascismo continha em si todos os elementos dos totalitarismos sucessivos, por assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não possuía nenhuma quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era um totalitarismo fuzzy. O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideais políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É possível conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o livre mercado?

O partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que esperavam uma contrarrevolução. O fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante vinte anos proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”. Mas quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”, reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase jacobinas.

Existiu apenas uma arquitetura nazista, apenas uma arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não havia lugar para Mies van der Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck tinha razão, não havia lugar para Darwin. Ao contrário, existiram certamente arquitetos fascistas, mas ao lado de seus pseudocoliseus surgiram também os novos edifícios inspirados no moderno racionalismo de Gropius.

Não houve um Zdanov fascista. Na Itália existiam dois importantes prêmios artísticos: o Prêmio Cremona era controlado por um fascista inculto e fanático como Farinacci, que encorajava uma arte propagandista (recordo-me de quadros intitulados Ascoltando all radio un discorso del Duce ou Stati mentali creati dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo, patrocinado por um fascista culto e razoavelmente tolerante como Bottai, que protegia a arte pela arte e as novas experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único aceito.

O poeta nacional era D’Annunzio, um dândi que na Alemanha ou na Rússia teria sido colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Foi alçado à categoria de vate do regime pro seu nacionalismo e seu culto do heroísmo — com o acréscimo de grandes doses de decadentismo francês.

Tomemos o futurismo. Deveria ter sido considerado um exemplo de entartete Kunst, assim como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a violência, o risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos ao culto fascista da juventude. Quando o fascismo identificou-se com o império romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que um automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o luar) foi nomeado membro da Accademia d’Italia, que tratava o luar com grande respeito.

Muitos dos futuros membros da Resistência, e dos futuros intelectuais do futuro Partido Comunista, foram educados no GUF, a associação fascista dos estudantes universitários, que deveria ser o berço da nova cultura fascista. Esses clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual em que circulavam novas ideias sem nenhum controle ideológico real, não tanto porque os homens de partido fossem tolerantes, mas porque poucos entre eles possuíam os instrumentos intelectuais para controlá-los.

No curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma reação ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido elaborar seus protestos literários dentro da torre de marfim. O sentimento dos herméticos era exatamente o contrário do culto fascista do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro.

O que não significa que o fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte, Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos confinados em ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e o executivo (que controlava o judiciário, assim como a mídia) emanava diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio formal italiano ao Holocausto).

A imagem incoerente que descrevi não era devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político e ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos.

Chegamos agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de Franco, pois o nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda. Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein, acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de atividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”: 1 – 2 – 3 – 4
                                              abc bcd cde def

Suponhamos que exista uma série de grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 é semelhante a 2 e 4 e é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto c). O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2, mas sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.

O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas, Julios Evola.

A despeito dessa confusão, considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista.

1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico.

Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.

Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente, como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva.

Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.

Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden). A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”.

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais.

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição.

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição.

6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório.

7. Para os que se veem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson.

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a força do inimigo.

9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa contradição.

10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa.

11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte.

12. Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma inveja pênis permanente.

13. O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg.


Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”. De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo.

14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular.

Depois de indicar os arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943 foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio, o fascismo havia caído e Mussolini tinha sido feito prisioneiro. Minha mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, depois de uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido Liberal. Até aquele momento pensei que só existisse um partido em todas as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional Fascista.

Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto, logo me dei conta de que era impossível que tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim que eles já existiam como organizações clandestinas.

A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” — Deus meu —, era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental.

Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”.

E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:

Sulla spalletta del ponte                                    Na amurada da ponte
Le teste degli impiccati                                      A cabeça dos enforcados
Nell’acqua della fonte                                        Na água da fonte
La bava degli impiccati                                      A baba dos enforcados
Sul lastrico del mercato                                     No calçamento do mercado
Le unghie dei fucilati                                         As unhas dos fuzilados
Sull’erba secca del prato                                    Sobre a grama seca do prado
I denti dei fucilati                                             Os dentes dos fuzilados
Mordere l’aria mordere i sassi                            Morder o ar morder as pedras
La nostra carne non à più d’uomini                      Nossa carne não é mais de homens
Mordere l’aria mordere i sassi                            Morder o ar morder as pedras
Il nostro cuore non à più d’uomini.                      Nosso coração não é mais de homens
Ma noi s’è letto negli occhi dei morti                    Mas lemos nos olhos dos mortos
E sulla terra faremo libertà                                E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Ma l’hanno stretta i pugni dei morti                     Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
La giustizia che si farà.                                     A justiça que se há de fazer.


Umberto Eco, O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais,
Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.