o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

A Terra Devastada

T. S. Eliot

Tradução de Gualter Cunha



Elaine Pessoa, Tempo Arenoso


I. O Enterro dos Mortos

Abril é o mês mais cruel, gera
Lilases da terra morta, mistura
A memória e o desejo, agita
Raízes dormentes com chuva da Primavera.
O Inverno aconchegou-nos, cobriu
A terra com o esquecimento da neve, alimentou
Uma pequena vida com bolbos ressequidos.
O Verão apanhou-nos de surpresa, veio por sobre o Stambergersee
Com um aguaceiro súbito; paramos na colunata,
E seguimos, já com sol, para o Hofgarten,
E tomamos café e ficamos uma hora a conversar.
Bin gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
E quando éramos pequenos, e ficamos em casa do meu primo,
O arquiduque, ele levou-me a andar de trenó
E eu apanhei um susto. Disse, Marie,
Marie, segura-te bem. E fomos por ali abaixo.
Nas montanhas, aí sim sentimo-nos livres.
Leio, quase toda a noite, e vou para o sul no Inverno.


Que raízes se prendem, que ramos crescem
Neste entulho pedregoso? Filho do homem,
Não consegues dizer, nem adivinhar, pois conheces apenas
Um montão de imagens quebradas, onde bate o sol,
E a árvore morta não dá qualquer abrigo, nem o grilo alívio,
Nem a pedra seca qualquer ruído de água. Apenas
Há sombra debaixo desta rocha vermelha
(Anda, vem para a sombra desta rocha vermelha),
E vou mostrar-te uma coisa ao mesmo tempo diferente
Da tua sombra quando ao amanhecer te segue
E da tua sombra quando ao entardecer te enfrenta;
Vou mostrar-te o medo num punhado de poeira.


                     Frisclz welzt der Wind
                     Der Heimat zu
                     Mein Irisclz Kind,
                     Wo weilest du?
«Deste-me Jacintos há um ano pela primeira vez;
«Diziam que eu era a rapariga dos jacintos.»
Porém quando viemos, já tarde, do jardim dos jacintos,
O teu braçado cheio e o teu cabelo molhado, não consegui
Falar, os meus olhos toldaram-se, eu não estava
Vivo nem morto e não conheci a nada,
Os olhos postos no coração da luz, o silêncio.
Oed' wzd leer das Meer.


Madame Sosostris, vidente famosa,
Estava muito constipada, no entanto
Passa por ser a mais sabedora mulher da Europa,
Com um maldito baralho de cartas. Aqui, dizia ela,
Está a sua carta, o Marinheiro Fenício afogado,
(Aquilo são pérolas que eram os olhos dele. Veja!)
Aqui está Belladonna, a Senhora dos Rochedos,
A senhora das complicações.
Aqui está o homem dos três bordões e aqui a Roda
E aqui o mercador zarolho, e esta carta,
Que é branca, é alguma coisa que ele leva às costas,
Que não me é consentido ver. Não encontro
O Enforcado. Tenha medo da morte pela água.
Vejo multidões de gente, a caminhar em círculo.
Obrigada. Se vir a querida Sra. Equitone,
Diga-lhe que eu própria levo o horóscopo:
Hoje em dia temos de ter tanto cuidado.


Cidade Irreal,
Sob o nevoeiro pardo de um amanhecer de Inverno,
Uma multidão fluía pela London Bridge, eram tantos,
Eu não pensava que a morte tivesse aniquilado tantos.
Suspiros, curtos e raros, eram exalados,
E cada um fixava os olhos adiante dos pés.
Fluíam encosta acima e desciam King William Street,
Até onde Saint Mary Woolnoth dava as horas
Com um som morto na derradeira badalada das nove.
Aí vi alguém que conhecia, fi-lo parar, gritei-lhe: «Stetson!
«Tu que estiveste comigo nos barcos em Mylae!
«O cadáver que plantaste o ano passado no jardim
«Já começou a dar rebentos? Será que dá flor este ano?
«Ou o canteiro foi estragado pela geada imprevista?
«Oh, afasta de lá o Cão, que é amigo dos homens,
«Ou ele com as unhas ainda o desenterra outra vez!
«Tu! hypocrite lecteur! mon semblable , mon frère!»


II. Uma Partida de Xadrez

A Cadeira onde ela se sentava, como um trono polido,
Reluzia no mármore, onde o espelho
Apoiado em colunas ornadas de vides com uvas
Por entre as quais espreitava um Cupido dourado
(Outro escondia os olhos com uma asa)
Duplicava as chamas de candelabros de sete velas
Refletindo a luz no tampo da mesa enquanto
Para a luz se elevava o brilho das suas joias
Derramadas em exuberância de estojos acetinados.
Em frascos de marfim e vidro colorido
Destapados, emboscavam-se seus estranhos perfumes sintéticos,
Em creme, em pó ou líquidos perturbavam, confundiam
E afogavam o sentido em odores; agitados pelo ar
Refrescante vindo da j anela, eles ascendiam,
Engordavam as chamas alongadas das velas,
Lançavam o fumo sobre a moldura do teto,
Onde agitavam o desenho dos caixotões.
Madeiros do mar ali mentados com cobre
Ardiam em laranja e verde, enquadrados pela pedra de cor,
Em cuja luz triste nadava um golfinho entalhado.
Sobre o lintel da vetusta lareira era mostrada
Como se uma janela desse para a cena rústica
A mudança de Filomela, pelo bárbaro rei
Tão brutalmente violentada; mas aí o rouxinol
Enchia todo o deserto com voz inviolável
E ela ainda gritava, e ainda o mundo persegue,
«Chac Chac» a ouvidos imundos.
E outros ressequidos cepos de tempo
Eram narrados nas paredes; formas de olhares fixos
Assomavam, inclinavam-se, e emudeciam a sala que cercavam.
Vinham passos arrastados pela escada.
Sob a luz do fogo, sob a escova, o cabelo dela
Espraiado em pontos faiscantes
Cintilava em palavras, depois ficava ferozmente calmo.

«Esta noite os meus nervos estão mal. Sim, mal. Fica comigo.
Fala comigo. Por que é que nunca falas? Fala.
Em que estás a pensar? A pensar o quê? O quê?
Nunca sei o que estás a pensar. Pensa.»

Penso que estamos no beco das ratazanas
Onde os homens mortos perderam os seus ossos.

«Que barulho é esse?»
                     O vento debaixo da porta.
«Que barulho é esse agora? Que está a fazer o vento?»
                     Nada outra vez nada.
                                                                                  «Tu
Não sabes n ada? Não vês nada? Não te lembras de
«Nada?»

Lembro-me
Aquilo são pérolas que eram os olhos dele.
«Tu estás vivo, ou não? Não há nada na tua cabeça?»
                                                                                 Mas
Oh Oh Oh Oh aquele ritmo de rag Shakespeheriano
É tão elegante,
Tão inteligente
«Que hei-de fazer agora? Que hei-de fazer?
Vou sair tal como estou, e andar pela rua
Com o cabelo solto, assim. Que havemos de fazer amanhã?
Que havemos de fazer alguma vez?»
                                                           A água quente às dez.
E se chover, um carro coberto às quatro.
E jogaremos uma partida de xadrez,
A apertar olhos sem pálpebras e à espera que batam à porta.


Quando o marido da Lil saiu da tropa, eu disse
Não tive papas na língua, fui eu mesma que lhe disse,
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Agora que o Albert vem aí, vê lá se te pões jeitosa.
Há-de querer saber o que fizeste ao dinheiro que te deu
Para te pores uns dentes. Deu-te, sim, eu estava lá.
Trata de tirá-los todos, Lil, arranja uma dentadura bonita,
Disse ele, juro, nem sequer aguento olhar para ti.
E já nem eu aguento, disse eu, e pensa no pobre do Albert,
Quatro anos de tropa, agora há-de querer desforra,
E se tu não lha dás, há outras que sim, disse eu.
Ai há, disse ela. Olha o que te digo, disse eu.
Então já sei a quem agradecer, disse ela, e olhou-me nos olhos.
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Se não gostas, olha, o mal é teu, disse eu.
O que não souberes colher outras hão-de saber.
Mas se o Albert se for, não digas que não te avisaram.
Devias ter vergonha, disse eu, de parecer um caco velho.
(E ela só com trinta e um.)
Não sei que fazer, disse ela, a pôr cara de caso,
É dos remédios que tomei, para o desmancho, disse ela.
(Ela já teve cinco, e quase morreu do George, do pequenito.)
O da farmácia disse que não fazia mal, mas nunca mais fui a
   mesma.
Tu és mesmo parva, disse eu.
Então, se o Albert não te deixa em paz, lá está, disse eu,
Para que te casaste se não queres ter filhos?
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Então, nesse domingo o Albert estava em casa, tinham cozinhado
   presunto,
E convidaram-me para jantar, para o apreciar quentinho
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Banoite Bill . Banoite Lou. Banoite May. Banoite
'Deuzinho. Banoite. Banoite.
Boa noite, senhoras, boa noite, gentis senhoras, boa noite, boa
   noite.


III. O Sermão do Fogo

A tenda do rio rompeu-se: os derradeiros dedos de folhas
Agarram-se e enterram-se na margem úmida. O vento
Atravessa a terra parda, sem se ouvir. As ninfas partiram.
Gentil Tamisa, corre lento, até eu findar meu canto.
O rio não leva garrafas vazias, papéis de sanduíche,
Lenços de seda, caixas de cartão, pontas de cigarro,
Ou outros testemunhos de noites de verão. As ninfas partiram.
E os amigos delas, os vadios herdeiros dos diretores da City
Partiram, não deixaram endereços.
Junto às águas do Leman assentado eu chorei...
Gentil Tamisa, corre lento, até eu findar meu canto,
Gentil Tamisa, corre lento, que eu não falo nem alto nem muito.
Mas por detrás de mim num estrondo frio eu ouço
O restolhar dos ossos, e a risada aberta de uma orelha à outra.


Uma ratazana deslizou lenta pela vegetação
A arrastar a barriga viscosa pela margem
Enquanto cu pescava no turvo canal
Num entardecer de inverno nas traseiras da central do gás
A cismar no naufrágio do rei meu irmão
E na morte antes dele do rei meu pai.
Corpos brancos nus no chão baixo e úmido
E ossos lançados num exíguo sótão baixo e seco,
Só restolhados pela pata da ratazana, de um ano ao outro.
Mas por detrás de mim de vez em quando eu ouço
Buzinas e automóveis, que hão-de trazer
Swecney à Sra. Porter quando for Primavera.
Oh estava a Sra. Porter pela lua iluminada
Assim como a filha estava
Ambas lavam os pés em água com soda
Et O ces voix d'enfants, chantant dans la coupole!

Tuít tuít tuít
Chac chac chac chac chac chac
Tão brutamente violentada.
Tereu

Cidade irreal
Sob o nevoeiro pardo de um meio-dia de Inverno
O Sr. Eugenides, o mercador de Esmima
De barba por fazer, um bolso cheio de passas
C.i .f. Londres: documentos à vista,
Convidou-me em francês demótico
Para um almoço no Cannon Street Hotel
Seguido de um fim-de-semana no Metropole.


À hora violeta, quando os olhos e as costas
Se elevam da secretária, quando a máquina humana aguarda
Como um táxi latejante à espera,
Eu Tirésias, embora cego, latejante entre duas vidas,
Um velho com seios mirrados de mulher, consigo ver
À hora violeta, a hora do entardecer que se arrasta cansada
De caminho a casa, e traz o marinheiro de regresso do mar,
A datilógrafa em casa à hora do chá, levanta o pequeno-almoço,
   acende
O fogão, e põe na mesa comida de conserva.
Perigosamente estendidas por fora da janela,
Secam as combinações, que o sol toca com os derradeiros raios,
Em monte no divã (à noite a cama dela)
Meias, chinelas, corpetes e espartilhos.
Eu Tirésias, um velho de tetas mirradas
Entendi a cena e antecipei o resto
Também eu aguardava o visitante previsto.
Ele chega, o jovem carbuncular, um funcionário
Numa modesta agência predial, de feição atrevida,
Um pobre diabo em quem assenta o brio
Como em ricaço de Bradford cartola de seda.
A altura é, ele prevê, propícia,
A refeição acabou, ela indolente e cansada,
Procura convencê-la por carícias
Não repelidas, se é que indesejadas.
Afogueado e decidido, passa à ação;
As mãos intrometidas têm licença;
Não pede contrapartida a presunção
E até lhe é bem-vinda a indiferença.
(E eu Tirésias já de antemão penei
Tudo neste divã ou cama representado;
Eu que junto aos muros de Tebas me sentei
E entre os mortos mais rasteiros tenho andado.)
Pespega para acabar u m beijo complacente,
E sai às apalpadelas, sem ter luz na escada...


Ela volta-se e vê-se ao espelho por um momento,
Mal se dando conta de que o amante partiu;
Deixa um pensamento inacabado vir-lhe à mente:
«Bem, agora está feito: e ainda bem que passou.»
Quando mulher amável se toma inconstante
E de novo só pelo seu quarto deambula,
Amacia o cabelo com mão inconsciente
E vai pôr um disco na grafonola.


«Esta música deslizou junto de mim por sobre as águas»
E ao longo do Strand, e por Queen Victoria Street.
Oh Cidade cidade, por vezes consigo ouvir
Quando passo por um bar em Lowcr Thames Street,
O suave lamento de um bandolim
E um alarido e uma vozearia lá de dentro
Onde homens do peixe se encontram ao meio-dia: onde as paredes
De Magnus Martyr guardam
Inexplicável esplendor de branco e ouro jônio.


O rio sua
Ó Jeo e alcatrão
As barcas flutuam
Com a maré que muda
Velas vermelhas
Abertas
Para sotavento, agitam-se no forte mastro.
A s barcas vogam
Lenhos à deriva
Ao largo de Greenwich
Para lá da Isle of Dogs.
                    Weialala leia
                    Wallala leialala


Elizabeth e Leicester
O bater dos remos
A popa tinha a forma
De uma concha dourada
Vermelho e ouro
A ondulação viva
Encrespava nas margens
Vento sudoeste
Levava rio abaixo
O repicar dos sinos
Torres brancas
                    Weialala leia
                    Wallala leialala


«Elétricos e árvores cheias de poeira.
Highbury criou-me. Richmond e Kew
Despedaçaram-me. Junto a Richmond levantei os
   joelhos
De costas no chão de uma estreita canoa.»


«Os meus pés estão em Moorgate, e o meu coração
Debaixo dos meus pés. Depois do que aconteceu
Ele chorou. Prometeu "um recomeço".
Não lhe dei seguimento. De que havia de ter
   ressentimento?»


«Em Margate Sands.
Não consigo ligar
Nada com nada.
As unhas quebradas de mãos imundas.
Minha gente humilde gente que não aguarda
Nada.»
                    la la


E então cheguei a Cartago


A arder a arder a arder a arder
Oh Senhor Tu agarras-me
Oh Senhor Tu agarras


a arder


IV. Morte pela Água

Phlebas, o Fenício, morto há duas semanas,
Esqueceu o grito das gaivotas, e a ondulação das profundidades
E os lucros e as perdas.
                                          Uma corrente submarina
Apanhou em sussurro os ossos dele. Ao subir e descer
Passou os estádios da sua idade e da sua juventude
Enquanto entrava no redemoinho.
                                          Gentio ou Judeu
Oh tu que rodas o leme e olhas a barlavento,
Lembra-te de Phlebas, que foi em tempos belo e alto como tu.


V. O Que Disse o Trovão

Após o rubor do archote no suor dos rostos
Após o silêncio gelado nos jardins
Após a agonia em terras pedregosas
Os brados e os gritos
Da prisão e do palácio e da ressonância
Do trovão primaveril em montanhas distantes
Ele que era vivo agora está morto
Nós que éramos vivos agora vamos morrendo
Com alguma paciência


Não há água aqui mas apenas pedras
Só pedras sem água e a estrada arenosa
Serpeante no alto por entre as montanhas
Que são montanhas de pedras e sem água
Se houvesse água íamos parar e beber
Não se pode entre as pedras parar ou pensar
O suor seco e os pés na areia
Se ao menos houvesse água entre as pedras
Boca cariada de montanha morta incapaz de cuspir
Ninguém se pode aqui erguer nem sentar nem deitar
Nem sequer há silêncio nas montanhas
Só o trovão seco e estéril e sem chuva
Nem sequer há solidão nas montanhas
Mas rostos vermelhos e ruins zombam e rosnam
Às portas de casas de lama ressequida
                                            Se houvesse água


E nenhumas pedras
Se houvesse pedras
E água também
E água
Se houvesse água
Uma nascente
Uma poça entre as pedras
Se ao menos houvesse o som da água
Não o canto da cigarra
E da erva seca
Mas o som da água numa pedra
Onde o tordo-eremita canta nos pinheiros
Drip drop drip drop drop drop drop
Mas não há água


Quem é o terceiro que sempre caminha a teu l ado?
Quando conto, só estamos tu e eu
Mas quando olho pela estrada branca acima
Há sempre alguém a caminhar junto de ti
Envolto em manto castanho, e embuçado
Não sei se será homem ou mulher
Mas quem é esse do outro lado de ti?


Que som é esse a elevar-se no ar
Murmúrio de lamento maternal
Quem são essas hordas embuçadas a alastrar
Em plainos infindos, a tropeçar na terra ressequida
Apenas circundada pelo horizonte raso
Que cidade é essa por cima das montanhas
Que estala e se refaz e estoira no ar violeta
Torres cadentes
Jerusalém Atenas Alexandria
Viena Londres
Irreais


Uma mulher esticou os seus cabelos negros
E tocou música de suspiros nessas cordas
E morcegos com rostos de criança à luz violeta
Assobiaram e bateram as asas
E de cabeça para baixo rastejaram num muro enegrecido
E voltadas ao contrário no ar havia torres
A soar reminiscentes sinos, que davam as horas
E vozes a cantar de dentro de cisternas vazias e poços esgotados.
Neste arruinado buraco entre as montanhas
À tênue luz da lua, a erva canta
Sobre os túmulos derrubados, em volta da capela
Há a capela vazia, onde só mora o vento.
Não tem janelas, e a porta vai e vem,
Ossos secos são inofensivos.
Só um galo se elevava na viga mestra
Cô cô ricô cô cô ricô
Num clarão de relâmpago. Logo uma rajada úmida
A trazer chuva


O Ganga ia baixo, e as folhas frouxas
Esperavam a chuva, enquanto as nuvens negras
Se acumulavam longe, sobre o Himavant.
A selva encolhia-se, curvada em silêncio.
Então falou o trovão
DA
Datta: que foi que nós demos?
Meu amigo, sangue a agitar-me o coração
A tremenda ousadia de um instante de entrega
Que tempos de prudência jamais revogarão
Foi por isto, e só por isto, que existimos
O que não aparecerá nos nossos necrológios
Ou em memórias vestidas pela caridosa aranha
Ou sob lacres quebrados pelo seco procurador
Nos nossos quartos vazios
DA
Dayadhvam: Eu ouvi a chave
Por uma vez na porta e por uma só vez
Nós pensamos na chave, cada um na sua prisão
A pensar na chave, cada um confirma uma prisão
Só ao cair da noite, rumores etéreos
Revi vem por um instante um destroçado Coriolano
DA
Damyata: O barco respondeu
Ágil, à mão experiente na vela e no remo
O mar estava calmo, o teu coração teria respondido
Ágil, se convidado, batendo obediente
A mãos conhecedoras
Sentei-me na margem
A pescar, com o plaino árido atrás de mim
Hei-de eu ao menos pôr ordem nas minhas terras?
London Bridge está a cair está a cai r está a cair
Poi s 'ascose nel foco che gli affina
Quando fiam uti chelidon Ó andorinha andorinha
Le Prince d 'Aquitaine à la tour abolie
Com estes fragmentos escorei as minhas ruínas
Pois então estais arranjados comigo. O Hieronymo ensandeceu
   de novo.
Datta. Dayadhvam. Damyata.
                    Shantih shantih shantih




Notas do autor sobre a Terra Devastada



Não só o título, mas também o plano e uma grande parte do simbolismo incidental do poema foram sugeridos pelo livro da Sra. Jessie L. Weston sobre a lenda do Graal: From Ritual to Romance (Cambridge). A minha dívida é tão profunda que na verdade o livro da Sra. Weston deverá elucidar as dificuldades do poema muito melhor do que as minhas notas o podem fazer; e recomendo-o (para além do grande interesse do livro em si próprio) a quem quer que considere que vale a pena uma tal elucidação do poema. Em termos gerais as minhas dívidas vão também para outra obra de antropologia que influenciou profundamente a nossa geração; refiro-me a The Golden Bouglz, do qual usei em especial os dois volumes Adonis, Attis, Osiris. Qualquer leitor familiarizado com estas obras reconhecerá imediatamente no poema certas referências a    cerimoniais da vegetação.


I. O ENTERRO DOS MORTOS


Verso 20. Cf. Ezequiel 2, 1.
23. Cf. Eclesiastes 12:5.
31. V. Tristan und I solde, I, versos 5-8.
42. Id., III, verso 24.
46. Não conheço bem a constituição exata do baralho de cartas Tarô, do qual obviamente me distanciei de acordo com as minhas conveniências. O Enforcado, um membro do baralho tradicional, adequa-se aos meus objetivos por duas vias: porque se associa no meu espírito ao Deus Enforcado de Prazer, e
porque eu o associo à figura embuçada na viagem dos discípulos para Emaús na Parte V. O Marinheiro Fenício e o Mercador aparecem depois, assim como as «multidões de gente», e a Morte pela Água tem lugar na Parte IV. O Homem dos Três Bordões (um membro autêntico do baralho Tarô) é associado por mim, de modo inteiramente arbitrário, com o próprio Rei Pescador.
60. Cf. Baudelaire:
«Fourmillante cité, cité pleine de rêves,
le spectre en plein jour raccroche le passant.»
63. Cf. Inferno, III, 55-57:
                                                  si lunga tratta
                  di gente, ch'io non averei creduto
                  che morte tanta n'avesse disfatta.
64. Cf. Inferno, IV, 25-27:
                  Quivi, secando che per ascoltare,
                  non avea piante mai che di sospiri
                  che l'aura eterna facevan tremare.
68. Um fenômeno em que reparei frequentemente.
74. Cf. a Endccha em White Devil, de Webster.
76. V. Baudelaire, Prefácio a Fleurs du Mal.


II. UMA PARTIDA DE XADREZ


77. Cf. Antony and Cleopatra, II, 2, v. 190.
92. Laqueari a. V. Eneida, I, 726:
        dependent lychni laquearibus aureís
incensi, et noctem flammis funalia vincunt.
98. Cena rústica. V. Milton, Paradise Lost, IV, 140.
99. V. Ovídio, Metamorfoses, VI, Filomela.
100. Cf. Parte III, v. 204.
115 . Cf. Parte III, v. 195.
118. Cf. Webster: «O vento ainda vem dessa porta?»
126. Cf. Parte I, vv. 37, 48.
138. Cf. o jogo de xadrez em Women beware Women, de Middleton.


III. O SERMÃO DO FOGO


176. V. Spenser, Prothalamion.
192. Cf. The Tempest, I, 2.
196. Cf. Marvell, To His Coy Mistress.
197. Cf. Day, Parliament of Bees:
«Quando de repente, atento, ouvirás,
«Um ruído de trompas e de caça, que há-de trazer
«Ateão a Diana na nascente,
«Onde todos verão a sua pele nua...»
199. Não conheço a origem da balada da qual estes versos são retirados: foi-me comunicada de Sydney, na Austrália.
202. V. Verlaine, Parsifal.
210. As passas eram cotadas a um preço «custo seguro e frete para Londres»; e a Ordem de Carga, etc., deveriam ser entregues ao comprador após liquidação da ordem de pagamento à vista.
218. Tirésias, embora seja um simples espectador e não propriamente uma «personagem», é, contudo, a mais importante figura no poema, unindo todo o resto. Assim como o mercador zarolho, vendedor de passas, se funde com o Marinheiro Fenício, e este último não é inteiramente distinto de Ferdinand, Príncipe de Nápoles, também todas as mulheres são uma mulher, e os dois sexos reúnem-se em Tirésias. O que Tirésias , de fato, é a substância do poema. O passo completo de Ovídio é de grande interesse antropológico:
 ...Cum Iunone iocos et «maior vestra profecto est
Quam quae contingit maribus», dixisse, «voluptas.»
Ill a negat; placuit quae sit sententia docti
Quaerere Tiresiae: venus huic erat utraque nota.
Nam duo magnorum viridi coeuntia silva
Corpora serpentum baculi violaverat ictu
Deque viro factus, mirabile, femina septem
Egerat autumnos; octavo rursus eosdem
Vidit et «est vestrae si tanta potenti a plagae»,
Dixit «ut auctoris sortem in contrari a mutet,
Nunc quoque vos feriam!» percussis anguibus isdem
Forma prior rediit genetivaque venit imago.
Arbiter hic igitur sumptus de lite iocosa
Dieta Iovis firmat; gravius Saturnia iusto
Nec pro materia fertur doluisse suique
ludicis aeterna damnavit lumina nocte,
At pater omnipotens (neque enim licet inrita cuiquam
Facta dei fecisse deo) pro lumine adempto
Scire futura dedit poenamque levavit honore.
221. Isto pode não aparecer tão exato como os versos de Safo, mas eu tinha em mente o pescador «costeiro» ou «de chata», que regressa ao cair da noite.
253. V. Goldsmith, a canção em The Vicar of Wakefield.
257. V. The Tempest, como acima.
264. O interior de St. Magnus Martyr é a meu ver um dos melhores de entre os interiores de Wren. Ver The Proposed Demolition of Nineteen City Clwrches (P. S. King Son, Ltd.).
266. A Canção das (três) filhas-do-Tamisa começa aqui. Do verso 292 até ao verso 306 inclusive elas falam à vez. V. Gotterdämmenrung, III, 1: as filhas-do-Reno.
279. V. Froude, Elizabeth, vol. I, cap. 4, carta de De Quadra para Filipe de Espanha:
«Pela tarde estávamos numa barca, a observar os jogos no rio. (A Rainha) estava só com Lord Robert e comigo na popa, quando os dois começaram a dizer tolices, e de tal maneira que Lord Robert acabou por dizer, estando eu presente não havia razão para não casarem se tal fosse do agrado da rainha.»
293. Cf. Purgatorio, V. 133:
            «Ricorditi di me, che son la Pia;
            "Siena mi fe", disfecemi Meremma.»
307. V. Confissões de Santo Agostinho: «cheguei então a Cartago, onde um caldeirão de amores ímpios cantou em redor de meus ouvidos.»
308. O texto completo do Sermão do Fogo de Buda (que corresponde em importância ao Sermão da Montanha) de onde estas palavras são retiradas encontra-se traduzido em Buddlrism in Translation (Harvard Oriental Series), do falecido Henry Clarke Warren. O Sr. Warren foi um dos grandes pioneiros dos estudos budistas no Ocidente.
309. De novo das Confissões de Santo Agostinho. A colocação destes dois representantes do ascetismo oriental e ocidental como culminação desta parte do poema não é um acidente.


V. O QUE DISSE O TROVÃO


Na primeira parte da Parte V são usados três temas: a jornada para Emaús, a aproximação à Capela Perigosa (ver livro da Sra. Weston) e a atual decadência da Europa Oriental.
357. Este é o Turdus aonalasclrkae pallasii, o tordo-eremita que ouvi na província do Quebec. Chapman afirma (Handbook of Birds of Eastern Nortlz America) que «onde ele se sente melhor é em bosques isolados e em esconderijos de vegetação espessa... As suas notas não são notáveis pela variedade ou pelo volume, mas são inigualáveis na pureza e na doçura do tom e na delicada modulação». A sua «canção de água-gotejante» é apropriadamente célebre.
360. Os versos seguintes foram suscitados pelo relato de uma das expedições ao Antártico (não me lembro de qual, mas penso que foi uma das expedições de Shackleton): dizia-se que o grupo de exploradores, no limite das suas forças, tinha a constante ilusão de que havia mais um membro para além dos que realmente conseguiam contar.
366-76. Cf. Hermann Hcsse, Blick ins Chaos: «Schon ist halb Europa, schon ist zumi ndcst der halbe Osten Europas auf dem Wcge zum Chaos, fährt bctrunkcn im hciligen Wahn am Abgrund entlang und singt dazu, singt bctrunkcn und hymnisch wie Dmitri Karamasoff sang. Ucbcr diese Lieder l acht der Bürger bcleidigt, der Hei lige und Seher hört sie mit Tränen.»
401. «Datta, dayadhvam, damyata» (Dar, simpatizar, dominar). A fábula sobre o significado do Trovão encontra-se em Brihadaranyaka-Upanislwd, 5, 1. Encontra-se uma tradução em Deussen, Sechzig Upanislzads des Veda, p. 489.
407. Cf. Webster, The White Devil, V, 6:
                                                         «...hão-de voltar a casar
Antes de o verme furar a vossa mortalha, antes de a aranha
Vos tecer nos epitáfios uma tênue cortina.»
411. Cf. Inferno, XXXIII, 46:
                «edio senti chi avar l' uscio di sotto
                all' orribile torre.»
Também F. H. Bradley, Appearance mui Reality, p. 306:
«As minhas sensações externas não são menos privadas para mim do que os meus pensamentos ou os meus sentimentos. Em qualquer dos casos a minha experiência confina-se ao meu próprio círculo, um círculo fechado ao exterior; e, de modo igual para o que respeita a todos os seus elementos, cada esfera é opaca para as outras que a rodeiam. [...] Em suma, considerado como uma existência que se manifesta numa alma, a totalidade do mundo é para cada um privada e peculiar a essa alma.»
424. V. Weston, From Ritual to Romance; capítulo sobre o Rei Pescador.
427. V. Purgatorio, XXVI, 148.
«"Ara vos prec per aquella valor
"que vos condus ai som de l'escalina,
"sovenha vos a temps de ma dolor."
"Poi s' ascose nel foco che li affina.»
428. V. Pervigilium Veneris. Cf. Filomela nas Partes II e III.
429. V. Gérard de Nerval, soneto El Desdichado.
431. V. Spanish Tragedy, de Kyd.
433. Shantih. Repetido como aqui , um encerramento formal de um Upanishad. «A Paz que vai além do entendimento» é o nosso equivalente para esta palavra.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

EU QUERO QUE AS MÁS LÍNGUAS SE FODAM
João Cesar Monteiro, estreia de Branca de Neve (2000)




– Por que resolveu fazer um filme assim?
– Han?
– Por que resolveu fazer um filme assim?
– Não o pude fazer assado...
– Quem é que não deixou fazer?
– Han?
– Quem é que não deixou fazer?
– Ah, não posso permitir certas coisas. Não estamos a brincar com coisas sérias.
– O que é que aconteceu durante o filme?
– Queriam... queriam uma telenovela...
– Isso são acusações ao produtor do filme.
– Não, são acusações com o serviço público... Que aliás não deveria existir... porque não serve pra nada... não serve nada nem a ninguém... Não gosto de acusação... Dispenso. Não tem história. Que façam uma história então. Com imagens... Já que imagem não tem...

...

– Estais a receber muitos parabéns?
– Han?...
– Agora uma senhora te deu os parabéns...
– Deu os parabéns porque era o meu aniversário.
– Faz anos hoje?
– Faço...
– Achas que esta foi uma boa prenda, esta estreia?
– Vocês é que sabem.
– Dizem as más línguas que foi um sortudo esquecível...
– Eu quero que as más línguas se fodam.
– É comprometido dizer...
– Eu quero que as más línguas se fodam. Ponto final.
– ... o público português veio apreciar um filme que não conhece...
– Eu quero que o público português se foda...

transcrição: ney ferraz paiva

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Senha


Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
Eu vou gerar um cacto sem espinho.




Adélia Prado, Miserere, Record, 2013
Imagem: Gerhard Richter

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

NÃO AGUENTO MAIS


Eu saí da Paraíba,
Minha terra tão brejeira,
Pra fazer publicidade
Na Veneza Brasileira
Onde a comunicação
É toda em língua estrangeira.

É uma ingrizia só
O jeito de se falar,
O que a gente não compreende,
Passa o tempo a perguntar
E assim como é que eu vou
Poder me comunicar?

É bastante abrir-se a boca
O “inglês” fala no centro,
Nessa Torre de Babel
Eu morro e não me concentro…
Até parece que estamos
De Nova Iorque pra dentro!

Lá naquele fim de mundo
Esse negócio tem vez
Porque quem vive por lá
O jeito é falar inglês,
Mas, se estamos no Brasil
O jeito é falar Português!

Por que complicar a guerra
Em vez de se esclarecer?
E se “folder” é um folheto
Por que assim não dizer?…
Pois quem me pedir um “folder”
Eu vou mandar se folder.

Roteiro é “story board”
Nesse vai e vem estrangeiro,
Parece até palavrão
Que se evita o tempo inteiro…
Porque seus filhos das putas,
A gente não diz roteiro?

Estão todos precisando
Dos cuidados do Pinel
Será feia a nossa língua?
É chato nosso papel?
Por que esse tal de “out door”
Substituir painel?

É desrespeito à memória
De Camões que foi purista
E esse massacre ao vernáculo
Não aguenta o repentista
Pois chamam “lay out-man”
O homem que é desenhista!

Matuto da Paraíba,
Aqui juro que não fico,
Onde até se tem vergonha
De um idioma tão rico…
Por que se chamar de “free-lancer”
Um sujeito que faz bico?

Publicidade de rádio
Apelidaram de “spot”
E tem outras besteiradas
Que não cabem num pacote.
Acho que acabou o tempo
De acabar esse fricote!

Por exemplo: “body type”
“Midia”, ”top”, “merchandising”,
“Checking list”, “past up”
(Que se diga de passagem)
“Briffing”, “Top de Marketing”,
Tudo isso é viadagem!

Já é hora de parar
com esse festival grosso
Para que o nosso idioma
Saia do fundo do poço.
Para isso eu faço esse “raff”,
Isto é –perdão ! – esboço!






Orlando Tejo e o agiota

  
Historiado pelo escritor LUIZ BERTO



Era manhã de segunda-feira e Orlando Tejo invadiu minha sala num aperreio que não era de seu costume.

- Berto, tô encalacrado.

Não sei se vocês sabem, mas Orlando Tejo é o sujeito mais calmo e descansado desse mundo, incapaz de se aperrear até dentro de uma casa em chamas. Mas naquela manhã, o homem estava mais agoniado do que bacorinho em caçuá.

A tranquilidade habitual, emoldurada pelas serenas baforadas no cachimbo, fora substituída por um avexamento que, francamente, deixou-me curioso. E largou o seu problema sem mais demoras:

- É o seguinte: o novo gerente da Caixa Econômica é meu leitor e se tornou meu amigo. Assumiu a agência e me deu um cheque especial na sexta-feira. Resultado: já estourei o limite em trinta mil cruzeiros neste fim-de-semana.

Conhecedor da total inabilidade de Orlando para gerir suas finanças, para mim não foi surpresa o estouro no limite do cheque especial. Surpreendente era a velocidade com que isso se dera. Recebera o cheque na sexta-feira e na segunda já estava pendurado. Em verdade, suas habilidades aritméticas limitavam-se à soma das mais alegres lembranças, à subtração de tristezas, à multiplicação da imensa legião de amigos e à divisão de uma ternura e de um lirismo que só mesmo pessoas encantadas como Tejo estão autorizadas a ter.

Expliquei-lhe que estava duro e não poderia ajudá-lo no momento. Estava sendo tão franco quanto, com a mesma franqueza, lhe arranjaria imediatamente a miserável quantia, caso a tivesse, para não vê-lo naquele sufoco. Funcionário público só vê a cor do dinheiro no fim do mês e, por infelicidade, estávamos ainda no início da segunda quinzena. Tentei explicar-lhe isso com tranquilidade, mas ele parecia insensível a qualquer argumento.

- Mas eu não posso é ficar desmoralizado perante o gerente, que é meu conterrâneo da Paraíba e me deu o cheque especial em confiança, por amor aos meus escritos. Um admirador, em resumo. Vai ser muito chato…

Expliquei-lhe que pessoalmente não podia fazer nada. Mas lembrei-lhe que, como em toda boa repartição pública, a Câmara tinha o seu agiota de plantão para socorrer os desesperados naquelas precisões agoniosas. O anjo da guarda dos necessitados, acudidor de precisões prementes, tão injustamente malhado pelas pessoas gradas, mas capaz de salvar um vivente de um sufoco sem fazer fichas, preencher cadastros, telefonar para o SPC ou exigir promissórias registradas em cartório. E dei a indicação ao Tejo:

- É só você procurar o Canindé.

Meu amigo João Canindé Tolentino Ribeiro entrou nessa história como Pilatos entrou no Credo. Tão lascado quanto qualquer um de nós, apenas estabelecia o contato entre o agiota e os possíveis fregueses, não ganhando nada com isso, salvo o fato de se beneficiar com um juro mais baixo quando também precisasse de dinheiro. Orlando Tejo não sabia quem era Canindé, mas já tratou-o com uma familiaridade que era bem do seu estilo.

- Então ligue logo para esse filho-da-puta desse Canindé, e diga que eu preciso de trinta.

Liguei para Canindé e ele disse que só poderia dar a resposta de tarde. Estávamos ainda no começo da manhã. Tejo não gostou mas teve que se conformar e, logo após o almoço, já estava de novo na minha sala à espera de notícias. Francamente, nunca lhe vira tão agoniado.

- Ligue logo para esse filho de uma égua, pelo amor de Deus.

Canindé mandou dizer que, se o dinheiro saísse, só sairia no dia seguinte. terça-feira. Transmiti o recado ao Tejo e ele desesperou-se.

- Explique a esse filho-da-puta que desse jeito vai ser tarde demais. Os cheques que emiti devem entrar hoje à noite.

Desolado com o drama do meu amigo, acompanhei com o olhar a sua saída nervosa, pitando furiosamente o cachimbo e maldizendo a sorte. A aura de lirismo que marcava sempre sua figura estava seriamente arranhada pela agonia que transpirava dos seus poros. Pobre Tejo, necessitado de trinta neste vasto mundão de meu Deus e ninguém para acudi-lo…

No dia seguinte, quando cheguei à minha sala, já o encontrei de plantão, sorrindo, esperançoso.

- Acabei de me informar no banco: nenhum cheque entrou ainda. Ligue logo para esse miserável desse Canindé.

Liguei. Canindé informou que só à tarde. Transmiti a informação ao Tejo.

- Assim não dá! Esse filho-da-puta quer me matar.
Na primeira hora da tarde volta Tejo avexado.
- Ainda não entrou cheque nenhum. Ligue de novo.

Liguei e Canindé disse para ligar daí a meia hora. Transmiti a informação. Tejo deu uma puxada no cachimbo e caminhou um pouco pela sala sem falar nada. Ficou de costas para mim, olhando um ponto indefinido na parede em frente. Sentou-se numa poltrona.

E, então, baixou o santo: Tejo ficou calmo de repente, me pediu uma folha de papel e começou a rabiscar. Eu acompanhava com um rabo-de-olho e procurava não perturbar, pois sabia que ele estava em pleno processo de criação. A mão corria devagar pelo papel e, de vez em quando, ele fazia pequenas pausas como se estivesse conferindo o que já havia escrito. Estava tranquilo e era outro homem, bem diferente daquele que há poucos instantes necessitava desesperadamente de trinta.

Levantou-se e me passou umas folhas naquela sua caligrafia miserável que eu já estava habituado a decifrar. A letra de Tejo, qual moderna Pedra da Roseta, exige as habilidades de um novo Champollion para trazê-la ao entendimento dos mortais comuns.

Comecei a ler e me dei conta da preciosidade que tinha em mãos. Aquilo, realmente, era uma obra de Tejo e ali estava o seu espírito paraibano, nordestino, poético, moleque, imprevisível por inteiro. Dar uma trégua ao aperreio para parir um negócio daqueles, só mesmo vindo dele.

Para se entender o acontecido, vale ressaltar que a história se passava na Câmara dos Deputados, cujo presidente, à época, era o Deputado Flávio Marcílio e que Delfim Netto era o então Ministro da Fazenda. Um tempo tão da porra que ninguém jamais será capaz de esquecer…

Vou transcrever do jeito que ele me deu.



LOUVAÇÃO A CANINDÉ

Estando sem um tostão
E me encontrando bem perto,
Fui procurar Luiz Berto
Para alguma solução.
Berto disse: “Meu irmão,
Eu também queria até
Fazer um querrequequé
Daquele que o diabo pinta
Para ver se arranco trinta
Do bolso de Canindé.

E toca a telefonar
E Canindé a correr,
Mas não pôde se esconder
E teve que tapear:
“Pela manhã não vai dar,
Porque de tarde é que é
Bom para a coisa dar pé.
Aguarde, portanto, amigo”.
Berto ficou de castigo
Esperando Canindé.

E eu que necessitava
Também da mesma quantia
Me fiei nessa franquia
Que Canindé propalava
Quando eu menos esperava
O safado, de má fé,
Filho de puta ralé,
Disse que hoje não tem nada…
Ah! uma foice amolada
No chifre de Canindé.

Eu já podia notar
E mudar de interesse
Que um cabra com um nome desse
Não poderia prestar.
Entretanto, vou esperar
Até amanhã com fé.
Se ele me deixar a pé,
Juro por Nossa Senhora:
Corto de pau uma tora
E vou matar Canindé.

O cabra fuma e não traga
Faz do crime o seu idílio!
Onde está Flávio Marcílio
Que não demite esta praga?
Ao menos dava-se a vaga
Pra um sujeito de fé,
Já que esse indivíduo é
Um tratante e delinquente
Haja chumbo grosso e quente
No rabo de Canindé.

Por capricho do destino
De Satanás ou Deus Brama,
O bicho também se chama
Coisa e tal e Tolentino,
Doido, avarento e mofino,
Não conhece a Santa Sé,
Faz da cola o seu rapé,
Vive da desgraça alheia,
Devia estar na cadeia
Esse tal de Canindé.

Não sei como Luiz Berto
Este escritor inspirado,
Toma dinheiro emprestado
A um ladrão tão esperto,
Que representa um deserto
De trabalho, amor e fé,
Que anda de marcha ré
Pela estrada da virtude
E além de covarde e rude
Se assina por Canindé.

Antes quero outro “pacote”
Desemprego, moratória,
Ver Delfim contar história,
Comer carne de caçote,
Levar chumbo no cangote,
Me abraçar com jacaré,
Beber caldo de chulé,
Dar o rabo a marinheiro,
Do que tomar um cruzeiro
Emprestado a Canindé.


NOSSO AMIGO CANINDÉ

Um sujeito despeitado,
Desses de baixa maré,
Inventou que Canindé
É um canalha safado.
Eu fiquei preocupado
Com a informação ralé,
Porém não perdi a fé
Em quem merece louvores…
E haja palmas e haja flores
Na fronte de Canindé.

Tenho dito e sustentado
(Todo mundo sabe disso)
Que na Câmara, esse cortiço,
Há um cidadão honrado,
Pai de família extremado,
Homem de bem e de fé!
O Papa já disse até
Que há no torrão brasileiro
Padre Cícero em Juazeiro
E em Brasília, Canindé.

Sei que o Papa tem razão,
Mas ninguém quer saber disto.
Se já falaram de Cristo,
Que se dirá de um cristão
Porém a fofoca não
Atinge um homem de fé.
E se eu descobrir quem é,
Meto a mão no pé do ouvido
Do sem-vergonha enxerido
Que falar de Canindé.

Canindé - nome decente!
Tolentino - ô nome macho!
Ribeiro - lindo riacho
Que mata a sede da gente!
Honrado, amigo e valente,
Subiu da glória o sopé…
A Virgem de Nazaré
Já lhe envolveu com seu manto,
Por isso um caminho santo
Vai trilhando Canindé.

Canindé pra ser beato
Só falta mesmo a batina,
Pois tem vocação divina
Pureza, fé e recato!
Por isso ele é o retrato
Mais fiel de São José
E já se comenta até
Que Frei Damião Bozano
Sugeriu ao Vaticano
Canonizar Canindé.

Mas sabem por que razão
Já querem canonizá-lo?
É por causa de um estalo
Que recebeu nosso irmão
Lá nas margens do Jordão,
Ao lado de São Tomé,
Quando dava cafuné
Numa velhinha doente
E morreu a penitente
Nos braços de Canindé.

Nesse chão onde ele pisa,
Por ser grande patriota,
Se faz até de agiota
Pra ajudar a quem precisa.
Mas não comercializa
A sua alma de fé!
Jamais ganhou um café
Pelo dinheiro que empresta…
A caridade é uma festa
Para a alma de Canindé.

Santo Agostinho, dos santos
Foi o mais puro entre os ermos
Que consolava os enfermos
E lhes enxugava os prantos.
Obrava milagres tantos,
Pela pureza e a fé
Pois acreditava até
Em fala de passarinho.
Mas sabem? Santo Agostinho
É pinto pra Canindé.


Orlando Tejo
Autor de Zé Limeira, o poeta do absurdo
https://www.youtube.com/watch?v=sFoenkVxqg4
(Orlando Tejo documentário de Vladimir Carvalho)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Disciplina



O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefatos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos. 




Cesare Pavese, in Trabalhar Cansa
Tradução: Carlos Leite 
Imagem: Gerhard Richter

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O Velho Senado

Glória, Rio de Janeiro. Litografia de S. A. Sisson. Parte do Álbum do Rio de Janeiro Moderno.



A propósito de algumas litografias de Sisson, tive há dias uma visão do Senado de 1860. Visões valem o mesmo que a retina em que se operam. Um político, tornando a ver aquele corpo, acharia nele a mesma alma dos seus correligionários extintos, e um historiador colheria elementos para a história. Um simples curioso não descobre mais que o pinturesco do tempo e a expressão das linhas com aquele tom geral que dão as coisas mortas e enterradas.

Nesse ano entrara eu para a imprensa. Uma noite, como saíssemos do Teatro Ginásio, Quintino Bocaiúva e eu fomos tomar chá. Bocaiúva era então uma gentil figura de rapaz, delgado, tez macia, fino bigode e olhos serenos. Já então tinha os gestos lentos de hoje, e um pouco daquele ar distant que Taine achou em Mérimée. Disseram coisa análoga de Challemel-Lacour, que alguém ultimamente definia como très républicain de conviction et très aristocrate de tempérament. O nosso Bocaiúva era só a segunda parte, mas já então liberal bastante para dar um republicano convicto. Ao chá, conversamos primeiramente de letras, e pouco depois de política, matéria introduzida por ele, o que me espantou bastante, não era usual nas nossas práticas. Nem é exato dizer que conversamos de política, eu antes respondia às perguntas que Bocaiúva me ia fazendo, como se quisesse conhecer as minhas opiniões. Provavelmente não as teria fixas nem determinadas; mas, quaisquer que fossem, creio que as exprimi na proporção e com a precisão apenas adequadas ao que ele me ia oferecer. De fato, separamo-nos com prazo dado para o dia seguinte, na loja de Paula Brito, que era na antiga Praça da Constituição, lado do Teatro S. Pedro, a meio caminho das Ruas do Cano e dos Ciganos. Relevai esta nomenclatura morta; é vício de memória velha. Na manhã seguinte, achei ali Bocaiúva escrevendo um bilhete. Tratava-se do Diário do Rio de Janeiro, que ia reaparecer, sob a direção política de Saldanha Marinho. Vinha dar-me um lugar na redação com ele e Henrique César Múzio.

Estas minudências, agradáveis de escrever, sê-lo-ão menos de ler. É difícil fugir a elas, quando se recordam coisas idas. Assim, dizendo que no mesmo ano, abertas as câmaras, fui para o Senado, como redator do Diário do Rio, não posso esquecer que nesse ou no outro ali estiveram comigo, Bernardo Guimarães, representante do Jornal do Comércio, e Pedro Luís, por parte do Correio Mercantil, nem as boas horas que vivemos os três. Posto que Bernardo Guimarães fosse mais velho que nós, partíamos irmãmente o pão da intimidade. Descíamos juntos aquela Praça da Aclamação, que não era então o parque de hoje, mas um vasto espaço inculto e vazio como o Campo de S. Cristóvão. Algumas vezes íamos jantar a um restaurant da Rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, nome este que se lhe deu por indicação justamente no Diário do Rio; o poeta morara ali outrora, e foi Múzio, seu amigo, que pela nossa folha o pediu à Câmara Municipal. Pedro Luís não tinha só a paixão que pôs nos belos versos à Polônia e no discurso com que, pouco depois, entrou na Câmara dos Deputados, mas ainda a graça, o sarcasmo, a observação fina e aquele largo riso em que os grandes olhos se faziam maiores. Bernardo Guimarães não falava nem ria tanto, incumbia-se de pontuar o diálogo com um bom dito, um reparo, uma anedota. O Senado não se prestava menos que o resto do mundo à conversação dos três amigos.

Poucos membros restarão da velha casa. Paranaguá e Sinimbu carregam o peso dos anos com muita facilidade e graça, o que ainda mais admira em Sinimbu, que suponho mais idoso. Ouvi falar a este bastantes vezes; não apaixonava o debate, mas era simples, claro, interessante, e, fisicamente, não perdia a linha. Esta geração conhece a firmeza daquele homem político, que mais tarde foi presidente do Conselho e teve de lutar com oposições grandes. Um incidente dos últimos anos mostrará bem a natureza dele. Saindo da Câmara dos Deputados para a Secretaria da Agricultura, com o Visconde de Ouro Preto, colega de gabinete, eram seguidos por enorme multidão de gente em assuada. O carro parou em frente à secretaria; os dois apearam-se e pararam alguns instantes, voltados para a multidão, que continuava a bradar e apupar, e então vi bem a diferença dos dois temperamentos. Ouro Preto fitava-a com a cabeça erguida e certo gesto de repto; Sinimbu parecia apenas mostrar ao colega um trecho de muro, indiferente. Tal era o homem que conheci no Senado.

Para avaliar bem a minha impressão diante daqueles homens que eu via ali juntos, todos os dias, é preciso não esquecer que não poucos eram contemporâneos da maioridade, algum da Regência, do Primeiro Reinado e da Constituinte. Tinham feito ou visto fazer a história dos tempos iniciais do regímen, e eu era um adolescente espantado e curioso. Achava-lhes uma feição particular, metade militante, metade triunfante, um pouco de homens, outro pouco de instituição. Paralelamente, iam-me lembrando os apodos e chufas que a paixão política desferira contra alguns deles, e sentia que as figuras serenas e respeitáveis que ali estavam agora naquelas cadeiras estreitas não tiveram outrora o respeito dos outros, nem provavelmente a serenidade própria. E tirava-lhes as cãs e as rugas, e fazia-os outra vez moços, árdegos e agitados. Comecei a aprender a parte do presente que há no passado, e vice-versa. Trazia comigo a oligarquia, o golpe de Estado de 1848, e outras notas da política em oposição ao domínio conservador, e ao ver os cabos deste partido, risonhos, familiares, gracejando entre si e com os outros, tomando juntos café e rapé, perguntava a mim mesmo se eram eles que podiam fazer, desfazer e refazer os elementos e governar com mão de ferro este país.

Os senadores compareciam regularmente ao trabalho. Era raro não haver sessão por falta de quórum. Uma particularidade do tempo é que muitos vinham em carruagem própria, como Zacarias, Monte Alegre, Abrantes, Caxias e outros, começando pelo mais velho, que era o Marquês de Itanhaém. A idade deste fazia-o menos assíduo, mas ainda assim era-o mais do que cabia esperar dele. Mal se podia apear do carro, e subir as escadas; arrastava os pés até à cadeira, que ficava do lado direito da mesa. Era seco e mirrado, usava cabeleira e trazia óculos fortes. Nas cerimônias de abertura e encerramento agravava o aspecto com a farda de senador. Se usasse barba, poderia disfarçar o chupado e engelhado dos tecidos, a cara rapada acentuava-lhe a decrepitude; mas a cara rapada era o costume de outra quadra, que ainda existia na maioria do Senado. Uns, como Nabuco e Zacarias, traziam a barba toda feita; outros deixavam pequenas suíças, como Abrantes e Paranhos, ou, como Olinda e Eusébio, a barba em forma de colar; raros usavam bigodes, como Caxias e Montezuma, — um Montezuma de segunda maneira.

A figura de Itanhaém era uma razão visível contra a vitaliciedade do Senado, mas é também certo que a vitaliciedade dava àquela casa uma consciência de duração perpétua, que parecia ler-se no rosto e no trato de seus membros. Tinham um ar de família, que se dispersava durante a estação calmosa, para ir às águas e outras diversões, e que se reunia depois, em prazo certo, anos e anos. Alguns não tornavam mais, e outros novos apareciam; mas também nas famílias se morre e nasce. Dissentiam sempre, mas é próprio das famílias numerosas brigarem, fazerem as pazes e tornarem a brigar; parece até que é a melhor prova de estar dentro da humanidade. Já então se evocavam contra a vitaliciedade do Senado os princípios liberais, como se fizera antes. Algumas vozes vibrantes cá fora, calavam-se lá dentro, é certo, mas o gérmen da reforma ia ficando, os programas o acolhiam, e, como em vários outros casos, os sucessos o fizeram lei.

Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e constante. Geralmente, as galerias não eram mui frequentadas, e, para o fim da hora, poucos espectadores ficavam, alguns dormiam. Naturalmente, a discussão do voto de graças e outras chamavam mais gente. Nabuco e algum outro dos principais da casa gozavam do privilégio de atrair grande auditório, quando se sabia que eles rompiam um debate ou respondiam a um discurso. Nessas ocasiões, mui excepcionalmente, eram admitidos ouvintes no próprio salão do Senado, como aliás era comum na Câmara temporária; como nesta, porém, os espectadores não intervinham com aplausos nas discussões. A presidência de Abaeté redobrou a disciplina do regimento, porventura menos apertada no tempo da presidência de Cavalcanti.

Não faltavam oradores. Uma só vez ouvi falar a Eusébio de Queirós, e a impressão que me deixou foi viva; era fluente, abundante, claro, sem prejuízo do vigor e da energia. Não foi discurso de ataque, mas de defesa, falou na qualidade de chefe do Partido Conservador, ou papa; Itaboraí, Uruguai, Saião Lobato e outros eram cardeais, e todos formavam o consistório, segundo a célebre definição de Otaviano no Correio Mercantil. Não reli o discurso, não teria agora tempo nem oportunidade de fazê-lo, mas estou que a impressão não haveria diminuído muito, posto lhe falte o efeito da própria voz do orador, que seduzia. A matéria era sobremodo ingrata: tratava-se de explicar e defender o acúmulo dos cargos públicos, acusação feita na imprensa da oposição. Era a tarde da oligarquia, o crepúsculo do domínio conservador. As eleições de 1860, na capital, deram o primeiro golpe na situação; se também deram o último, não sei; os partidos nunca se entenderam bem acerca das causas imediatas da própria queda ou subida, salvo no ponto de serem alternadamente a violação ou a restauração da carta constitucional. Quaisquer que fossem, então, a verdade é que as eleições da capital naquele ano podem ser contadas como uma vitória liberal. Elas trouxeram à minha imaginação adolescente uma visão rara e especial do poder das urnas. Não cabe inseri-la aqui; não direi o movimento geral e o calor sincero dos votantes, incitados pelos artigos da imprensa e pelos discursos de Teófilo Otôni, nem os lances, cenas e brados de tais dias. Não me esqueceu a maior parte deles; ainda guardo a impressão que me deu um obscuro votante que veio ter com Otôni, perto da matriz do Sacramento. Otôni não o conhecia, nem sei se o tornou a ver. Ele chegou-se-lhe e mostrou-lhe um maço de cédulas, que acabava de tirar às escondidas da algibeira de um agente contrário. O riso que acompanhou esta notícia nunca mais se me apagou da memória. No meio das mais ardentes reivindicações deste mundo, alguma vez me despontou ao longe aquela boca sem nome, acaso verídica e honesta em tudo o mais da vida, que ali viera confessar candidamente, e sem outro prêmio pessoal, o fino roubo praticado. Não mofes desta insistência pueril da minha memória; eu a tempo advirto que as mais claras águas podem levar de enxurro alguma palha podre, — se é que é podre, se é que é mesmo palha.

Eusébio de Queirós era justamente respeitado dos seus e dos contrários. Não tinha a figura esbelta de um Paranhos, mas ligava-se-lhe uma história particular e célebre, dessas que a crônica social e política de outros países escolhe e examina, mas que os nossos costumes, — aliás demasiado soltos na palestra, — não consentem inserir no escrito. De resto, pouco valeria repetir agora o que se divulgava então, não podendo pôr aqui a própria e extremada beleza da pessoa que as ruas e salas desta cidade viram tantas vezes. Era alta e robusta; não me ficaram outros pormenores.

O Senado contava raras sessões ardentes; muitas, porém, eram animadas. Zacarias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza e vigor dos golpes. Tinha a palavra cortante, fina e rápida, com uns efeitos de sons guturais, que a tornavam mais penetrante e irritante. Quando ele se erguia, era quase certo que faria deitar sangue a alguém. Chegou até hoje a reputação de debater, como oposicionista, e como ministro e chefe de gabinete. Tinha audácias, como a da escolha "não acertada", que a nenhum outro acudiria, creio eu. Politicamente, era uma natureza seca e sobranceira. Um livro que foi de seu uso, uma História de Clarendon (History of the Rebellion and Civil Wars in England), marcado em partes, a lápis encarnado, tem uma sublinha nas seguintes palavras (vol. I, pág. 44) atribuídas ao Conde de Oxford, em resposta ao Duque de Buckingham, "que não buscava a sua amizade nem temia o seu ódio". É arriscado ver sentimentos pessoais nas simples notas ou lembranças postas em livros de estudo, mas aqui parece que o espírito de Zacarias achou o seu parceiro. Particularmente, ao contrário, e desde que se inclinasse a alguém, convidava fortemente a amá-lo; era lhano e simples, amigo e confiado. Pessoas que o frequentavam, dizem e afirmam que, sob as suas árvores da Rua do Conde ou entre os seus livros, era um gosto ouvi-lo, e raro haverá esquecido a graça e a polidez dos seus obséquios. No Senado, sentava-se à esquerda da mesa, ao pé da janela, abaixo de Nabuco, com quem trocava os seus reparos e reflexões. Nabuco, outra das principais vozes do Senado, era especialmente orador para os debates solenes. Não tinha o sarcasmo agudo de Zacarias, nem o epigrama alegre de Cotegipe. Era então o centro dos conservadores moderados que, com Olinda e Zacarias, fundaram a liga e os partidos Progressista e Liberal. Joaquim Nabuco, com a eloquência de escritor político e a afeição de filho, dirá toda essa história no livro que está consagrando à memória de seu ilustre pai. A palavra do velho Nabuco era modelada pelos oradores da tribuna liberal francesa. A minha impressão é que preparava os seus discursos, e a maneira por que os proferia realçava-lhes a matéria e a forma sólida e brilhante. Gostava das imagens literárias: uma dessas, a comparação do poder moderador à estátua de Glauco, fez então fortuna. O gesto não era vivo, como o de Zacarias, mas pausado, o busto cheio era tranquilo, e a voz adquiria uma sonoridade que habitualmente não tinha.

Mas eis que todas as figuras se atropelam na evocação comum, as de grande peso, como Uruguai, com as de pequeno ou nenhum peso, como o Padre Vasconcelos, senador creio que pela Paraíba, um bom homem que ali achei e morreu pouco depois. Outro, que se podia incluir nesta segunda categoria, era um de quem só me lembram duas circunstâncias, as longas barbas grisalhas e sérias, e a cautela e pontualidade com que não votava os artigos de uma lei sem ter os olhos pregados em Itaboraí. Era um modo de cumprir a fidelidade política e obedecer ao chefe, que herdara o bastão de Eusébio. Como o recinto era pequeno, viam-se todos esses gestos, e quase se ouviam todas as palavras particulares. E, conquanto fosse assim pequeno, nunca vi rir a Itaboraí, creio que os seus músculos dificilmente ririam — o contrário de S. Vicente, que ria com facilidade, um riso bom, mas que lhe não ia bem. Quaisquer que fossem, porém, as deselegâncias físicas do senador por S. Paulo, e malgrado a palavra sem sonoridade, era ouvido com grande respeito, como Itaboraí. De Abrantes dizia-se que era um canário falando. Não sei até que ponto merece a definição; em verdade, achava-o fluente, acaso doce, e, para um povo mavioso como o nosso, a qualidade era preciosa; nem por isso Abrantes era popular. Também não o era Olinda, mas a autoridade deste sabe-se que era grande. Olinda aparecia-me envolvido na aurora remota do reinado, e na mais recente aurora liberal ou "situação nascente", mote de um dos chefes da liga, penso que Zacarias, que os conservadores glosaram por todos os feitios, na tribuna e na imprensa. Mas não deslizemos a reminiscências de outra ordem; fiquemos na surdez de Olinda, que competia com Beethoven nesta qualidade, menos musical que política. Não seria tão surdo. Quando tinha de responder a alguém, ia sentar-se ao pé do orador, e escutava atento, cara de mármore, sem dar um aparte, sem fazer um gesto, sem tomar uma nota. E a resposta vinha logo; tão depressa o adversário acabava, como ele principiava, e, ao que me ficou, lúcido e completo.

Um dia vi ali aparecer um homem alto, suíças e bigodes brancos e compridos. Era um dos remanescentes da Constituinte, nada menos que Montezuma, que voltava da Europa. Foi-me impossível reconhecer naquela cara barbada a cara rapada que eu conhecia da litografia Sisson; pessoalmente nunca o vira. Era, muito mais que Olinda, um tipo de velhice robusta. Ao meu espírito de rapaz afigurava-se que ele trazia ainda os rumores e os gestos da assembleia de 1823. Era o mesmo homem; mas foi preciso ouvi-lo agora para sentir toda a veemência dos seus ataques de outrora. Foi preciso ouvir-lhe a ironia de hoje para entender a ironia daquela retificação que ele pôs ao texto de uma pergunta ao Ministro do Império, na célebre sessão permanente de 11 a 12 de novembro: "Eu disse que o Sr. Ministro do Império, por estar ao lado de Sua Majestade, melhor conhecerá o "espírito da tropa", e um dos senhores secretários escreveu "o espírito de Sua Majestade", quando não disse tal, porque deste não duvido eu".

Agora o que eu mais ouvia dizer dele, além do talento, eram as suas infidelidades, e sobre isto corriam anedotas; mas eu nada tenho com anedotas políticas. Que se não pudesse fiar muito em seus carinhos parlamentares, creio. Uma vez, por exemplo, encheu a alma de Sousa Franco de grandes aleluias. Querendo criticar o Ministro da Fazenda (não me lembra quem era) começou por afirmar que nunca tivéramos ministros da Fazenda, mas tão-somente ministros do Tesouro. Encarecia com adjetivos: excelentes, ilustrados, conspícuos ministros do Tesouro, mas da Fazenda nenhum. "Um houve, Sr. presidente que nos deu alguma coisa do que deve ser um Ministro da Fazenda; foi o nobre senador pelo Pará". E Sousa Franco sorria alegre, deleitava-se com a exceção, que devia doer ao seu forte rival em finanças, Itaboraí; não passou muito tempo que não perdesse o gosto. De outra vez, Montezuma atacava a Sousa Franco, e este novamente sorria, mas agora a expressão não era alegre, parecia rir de desdém. Montezuma empina o busto, encara-o irritado, e com a voz e o gesto intima-lhe que recolha o riso; e passa a demonstrar as suas críticas, uma por uma, com esta espécie de estribilho: "Recolha o riso o nobre senador!" Tudo isto aceso e torvo. Sousa Franco quis resistir; mas o riso recolheu-se por si mesmo. Era então um homem magro e cansado. Gozava ainda agora a popularidade ganha na Câmara dos Deputados, anos antes, pela campanha que sustentou, sozinho e parece que enfermo, contra o Partido Conservador.

Contrastando com Sousa Franco, vinha a figura de Paranhos, alta e forte. Não é preciso dizê-lo a uma geração que o conheceu e admirou, ainda belo e robusto na velhice. Nem é preciso lembrar que era uma das primeiras vozes do Senado. Eu trazia de cor as palavras que alguém me confiou haver dito, quando ele era simples estudante da Escola Central: "Sr. Paranhos, você ainda há de ser ministro". O estudante respondia modestamente, sorrindo; mas o profeta dos seus destinos tinha apanhado bem o valor e a direção da alma do moço.

Muitas recordações me vieram do Paranhos de então, discursos de ataque, discursos de defesa, mas, uma basta, a justificação do convênio de 20 de fevereiro. A notícia deste ato entrou no Rio de Janeiro, como as outras desse tempo, em que não havia telégrafo. Os sucessos do exterior chegavam-nos às braçadas, por atacado, e uma batalha, uma conspiração, um ato diplomático eram conhecidos com todos os seus pormenores. Por um paquete do Sul soubemos do convênio da vila da União. O pacto foi mal recebido, fez-se uma manifestação de rua, e um grupo de populares, com três ou quatro chefes à frente, foi pedir ao governo a demissão do plenipotenciário. Paranhos foi demitido, e, aberta a sessão parlamentar, cuidou de produzir a sua defesa.

Tornei a ver aquele dia, e ainda agora me parece vê-lo. Galerias e tribunas estavam cheias de gente; ao salão do Senado foram admitidos muitos homens políticos ou simplesmente curiosos. Era uma hora da tarde quando o presidente deu a palavra ao senador por Mato Grosso; começava a discussão do voto de graças. Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-os para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da camisa, e a voz ia saindo meditada e colorida. Naquele dia, porém, a ânsia de produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que ditas: "Não a vaidade. Sr. presidente..." Daí a um instante, a voz tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando ele acabou; estava como no princípio, nenhum sinal de fadiga nele nem no auditório, que o aplaudiu. Foi uma das mais fundas impressões que me deixou a eloquência parlamentar. A agitação passara com os sucessos, a defesa estava feita. Anos depois do ataque, esta mesma cidade aclamava o autor da lei de 28 de setembro de 1871, como uma glória nacional; e ainda depois, quando ele tornou da Europa, foi recebê-lo e conduzi-lo até a casa. Ao clarão de um belo sol, rubro de comoção, levado pelo entusiasmo público, Paranhos seguia as mesmas ruas que, anos antes, voltando do Sul, pisara sozinho e condenado.

A visão do Senado foi-se-me assim alterando nos gestos e nas pessoas, como nos dias, e sempre remota e velha: era o Senado daqueles três anos. Outras figuras vieram vindo. Além dos cardeais, os Muritibas, os Sousa e Melos, vinham os de menor graduação política, o risonho Pena, zeloso e miúdo em seus discursos, o Jobim, que falava algumas vezes, o Ribeiro, do Rio Grande do Sul, que não falava nunca, — não me lembra, ao menos. Este, filósofo e filólogo, tinha junto a si, no tapete, encostado no pé da cadeira, um exemplar do dicionário de Morais. Era comum vê-lo consultar um e outro tomo, no correr de um debate, quando ouvia algum vocábulo, que lhe parecia de incerta origem ou duvidosa aceitação. Em contraste com a abstenção dele, eis aqui outro, Silveira da Mota, assíduo na tribuna, oposicionista por temperamento, e este outro, D. Manuel de Assis Mascarenhas, bom exemplar da geração que acabava. Era um homenzinho seco e baixo, cara lisa, cabelo raro e branco, tenaz, um tanto impertinente, creio que desligado de partidos. Da sua tenacidade dará ideia o que lhe vi fazer em relação a um projeto de subvenção ao teatro lírico, por meio de loterias. Não era novo; continuava o de anos anteriores. D. Manuel opunha-se por todos os meios à passagem dele, e fazia extensos discursos. A mesa, para acabar com o projeto, já o incluía entre os primeiros na ordem do dia, mas nem assim desanimava o senador. Um dia foi ele colocado antes de nenhum. D. Manuel pediu a palavra, e francamente declarou que era seu intuito falar toda a sessão; portanto, aqueles de seus colegas que tivessem algum negócio estranho e fora do Senado podiam retirar-se; não se discutiria mais nada. E falou até o fim da hora, consultando a miúdo o relógio para ver o tempo que lhe ia faltando. Naturalmente não haveria muito que dizer em tão escassa matéria, mas a resolução do orador e a liberdade do regimento davam-lhe meio de compor o discurso. Daí nascia uma infinidade de episódios, reminiscências, argumentos e explicações; por exemplo, não era recente a sua aversão às loterias, vinha do tempo em que, andando a viajar, foi ter a Hamburgo; ali ofereceram-lhe com tanta instância um bilhete de loteria, que ele foi obrigado a comprar, e o bilhete saiu branco. Esta anedota era contada com todas as minúcias necessárias para ampliá-la. Uma parte do tempo falou sentado, e acabou diante da mesa e três ou quatro colegas. Mas, imitando assim Catão, que também falou um dia inteiro para impedir uma petição de César, foi menos feliz que o seu colega romano. César retirou a petição, e aqui as loterias passaram, não me lembra se por fadiga ou omissão de D. Manuel; anuência é que não podia ser. Tais eram os costumes do tempo.

E após ele vieram outros, e ainda outros, Sapucaí, Maranguape, Itaúna, e outros mais, até que se confundiram todos e desapareceu tudo, coisas e pessoas, como sucede às visões. Pareceu-me vê-los enfiar por um corredor escuro, cuja porta era fechada por um homem de capa preta, meias de seda preta, calções pretos e sapatos de fivela. Este era nada menos que o próprio porteiro do Senado, vestido segundo as praxes do tempo, nos dias de abertura e encerramento da assembleia geral. Quanta coisa obsoleta! Alguém ainda quis obstar à ação do porteiro, mas tinha o gesto tão cansado e vagaroso que não alcançou nada; aquele deu volta à chave, envolveu-se na capa, saiu por uma das janelas e esvaiu-se no ar, a caminho de algum cemitério, provavelmente. Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo, mas não vale; todos os cemitérios se parecem.


Machado de Assis, Obra Completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.II, 1994. Publicado originalmente em Revista Brasileira, Rio de Janeiro, 1898.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

SEM TÍTULO



Esperas que desapareça a angústia
Enquanto cai a chuva sobre a desconhecida estrada
Onde te encontras

Chuva: apenas espero
Que desapareça a angústia
Estou dando tudo de mim




ROBERTO BOLAÑO
Otto Stupakoff