o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

EU QUERO QUE AS MÁS LÍNGUAS SE FODAM
João Cesar Monteiro, estreia de Branca de Neve (2000)




– Por que resolveu fazer um filme assim?
– Han?
– Por que resolveu fazer um filme assim?
– Não o pude fazer assado...
– Quem é que não deixou fazer?
– Han?
– Quem é que não deixou fazer?
– Ah, não posso permitir certas coisas. Não estamos a brincar com coisas sérias.
– O que é que aconteceu durante o filme?
– Queriam... queriam uma telenovela...
– Isso são acusações ao produtor do filme.
– Não, são acusações com o serviço público... Que aliás não deveria existir... porque não serve pra nada... não serve nada nem a ninguém... Não gosto de acusação... Dispenso. Não tem história. Que façam uma história então. Com imagens... Já que imagem não tem...

...

– Estais a receber muitos parabéns?
– Han?...
– Agora uma senhora te deu os parabéns...
– Deu os parabéns porque era o meu aniversário.
– Faz anos hoje?
– Faço...
– Achas que esta foi uma boa prenda, esta estreia?
– Vocês é que sabem.
– Dizem as más línguas que foi um sortudo esquecível...
– Eu quero que as más línguas se fodam.
– É comprometido dizer...
– Eu quero que as más línguas se fodam. Ponto final.
– ... o público português veio apreciar um filme que não conhece...
– Eu quero que o público português se foda...

transcrição: ney ferraz paiva

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Senha


Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
Eu vou gerar um cacto sem espinho.




Adélia Prado, Miserere, Record, 2013
Imagem: Gerhard Richter

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

NÃO AGUENTO MAIS


Eu saí da Paraíba,
Minha terra tão brejeira,
Pra fazer publicidade
Na Veneza Brasileira
Onde a comunicação
É toda em língua estrangeira.

É uma ingrizia só
O jeito de se falar,
O que a gente não compreende,
Passa o tempo a perguntar
E assim como é que eu vou
Poder me comunicar?

É bastante abrir-se a boca
O “inglês” fala no centro,
Nessa Torre de Babel
Eu morro e não me concentro…
Até parece que estamos
De Nova Iorque pra dentro!

Lá naquele fim de mundo
Esse negócio tem vez
Porque quem vive por lá
O jeito é falar inglês,
Mas, se estamos no Brasil
O jeito é falar Português!

Por que complicar a guerra
Em vez de se esclarecer?
E se “folder” é um folheto
Por que assim não dizer?…
Pois quem me pedir um “folder”
Eu vou mandar se folder.

Roteiro é “story board”
Nesse vai e vem estrangeiro,
Parece até palavrão
Que se evita o tempo inteiro…
Porque seus filhos das putas,
A gente não diz roteiro?

Estão todos precisando
Dos cuidados do Pinel
Será feia a nossa língua?
É chato nosso papel?
Por que esse tal de “out door”
Substituir painel?

É desrespeito à memória
De Camões que foi purista
E esse massacre ao vernáculo
Não aguenta o repentista
Pois chamam “lay out-man”
O homem que é desenhista!

Matuto da Paraíba,
Aqui juro que não fico,
Onde até se tem vergonha
De um idioma tão rico…
Por que se chamar de “free-lancer”
Um sujeito que faz bico?

Publicidade de rádio
Apelidaram de “spot”
E tem outras besteiradas
Que não cabem num pacote.
Acho que acabou o tempo
De acabar esse fricote!

Por exemplo: “body type”
“Midia”, ”top”, “merchandising”,
“Checking list”, “past up”
(Que se diga de passagem)
“Briffing”, “Top de Marketing”,
Tudo isso é viadagem!

Já é hora de parar
com esse festival grosso
Para que o nosso idioma
Saia do fundo do poço.
Para isso eu faço esse “raff”,
Isto é –perdão ! – esboço!






Orlando Tejo e o agiota

  
Historiado pelo escritor LUIZ BERTO



Era manhã de segunda-feira e Orlando Tejo invadiu minha sala num aperreio que não era de seu costume.

- Berto, tô encalacrado.

Não sei se vocês sabem, mas Orlando Tejo é o sujeito mais calmo e descansado desse mundo, incapaz de se aperrear até dentro de uma casa em chamas. Mas naquela manhã, o homem estava mais agoniado do que bacorinho em caçuá.

A tranquilidade habitual, emoldurada pelas serenas baforadas no cachimbo, fora substituída por um avexamento que, francamente, deixou-me curioso. E largou o seu problema sem mais demoras:

- É o seguinte: o novo gerente da Caixa Econômica é meu leitor e se tornou meu amigo. Assumiu a agência e me deu um cheque especial na sexta-feira. Resultado: já estourei o limite em trinta mil cruzeiros neste fim-de-semana.

Conhecedor da total inabilidade de Orlando para gerir suas finanças, para mim não foi surpresa o estouro no limite do cheque especial. Surpreendente era a velocidade com que isso se dera. Recebera o cheque na sexta-feira e na segunda já estava pendurado. Em verdade, suas habilidades aritméticas limitavam-se à soma das mais alegres lembranças, à subtração de tristezas, à multiplicação da imensa legião de amigos e à divisão de uma ternura e de um lirismo que só mesmo pessoas encantadas como Tejo estão autorizadas a ter.

Expliquei-lhe que estava duro e não poderia ajudá-lo no momento. Estava sendo tão franco quanto, com a mesma franqueza, lhe arranjaria imediatamente a miserável quantia, caso a tivesse, para não vê-lo naquele sufoco. Funcionário público só vê a cor do dinheiro no fim do mês e, por infelicidade, estávamos ainda no início da segunda quinzena. Tentei explicar-lhe isso com tranquilidade, mas ele parecia insensível a qualquer argumento.

- Mas eu não posso é ficar desmoralizado perante o gerente, que é meu conterrâneo da Paraíba e me deu o cheque especial em confiança, por amor aos meus escritos. Um admirador, em resumo. Vai ser muito chato…

Expliquei-lhe que pessoalmente não podia fazer nada. Mas lembrei-lhe que, como em toda boa repartição pública, a Câmara tinha o seu agiota de plantão para socorrer os desesperados naquelas precisões agoniosas. O anjo da guarda dos necessitados, acudidor de precisões prementes, tão injustamente malhado pelas pessoas gradas, mas capaz de salvar um vivente de um sufoco sem fazer fichas, preencher cadastros, telefonar para o SPC ou exigir promissórias registradas em cartório. E dei a indicação ao Tejo:

- É só você procurar o Canindé.

Meu amigo João Canindé Tolentino Ribeiro entrou nessa história como Pilatos entrou no Credo. Tão lascado quanto qualquer um de nós, apenas estabelecia o contato entre o agiota e os possíveis fregueses, não ganhando nada com isso, salvo o fato de se beneficiar com um juro mais baixo quando também precisasse de dinheiro. Orlando Tejo não sabia quem era Canindé, mas já tratou-o com uma familiaridade que era bem do seu estilo.

- Então ligue logo para esse filho-da-puta desse Canindé, e diga que eu preciso de trinta.

Liguei para Canindé e ele disse que só poderia dar a resposta de tarde. Estávamos ainda no começo da manhã. Tejo não gostou mas teve que se conformar e, logo após o almoço, já estava de novo na minha sala à espera de notícias. Francamente, nunca lhe vira tão agoniado.

- Ligue logo para esse filho de uma égua, pelo amor de Deus.

Canindé mandou dizer que, se o dinheiro saísse, só sairia no dia seguinte. terça-feira. Transmiti o recado ao Tejo e ele desesperou-se.

- Explique a esse filho-da-puta que desse jeito vai ser tarde demais. Os cheques que emiti devem entrar hoje à noite.

Desolado com o drama do meu amigo, acompanhei com o olhar a sua saída nervosa, pitando furiosamente o cachimbo e maldizendo a sorte. A aura de lirismo que marcava sempre sua figura estava seriamente arranhada pela agonia que transpirava dos seus poros. Pobre Tejo, necessitado de trinta neste vasto mundão de meu Deus e ninguém para acudi-lo…

No dia seguinte, quando cheguei à minha sala, já o encontrei de plantão, sorrindo, esperançoso.

- Acabei de me informar no banco: nenhum cheque entrou ainda. Ligue logo para esse miserável desse Canindé.

Liguei. Canindé informou que só à tarde. Transmiti a informação ao Tejo.

- Assim não dá! Esse filho-da-puta quer me matar.
Na primeira hora da tarde volta Tejo avexado.
- Ainda não entrou cheque nenhum. Ligue de novo.

Liguei e Canindé disse para ligar daí a meia hora. Transmiti a informação. Tejo deu uma puxada no cachimbo e caminhou um pouco pela sala sem falar nada. Ficou de costas para mim, olhando um ponto indefinido na parede em frente. Sentou-se numa poltrona.

E, então, baixou o santo: Tejo ficou calmo de repente, me pediu uma folha de papel e começou a rabiscar. Eu acompanhava com um rabo-de-olho e procurava não perturbar, pois sabia que ele estava em pleno processo de criação. A mão corria devagar pelo papel e, de vez em quando, ele fazia pequenas pausas como se estivesse conferindo o que já havia escrito. Estava tranquilo e era outro homem, bem diferente daquele que há poucos instantes necessitava desesperadamente de trinta.

Levantou-se e me passou umas folhas naquela sua caligrafia miserável que eu já estava habituado a decifrar. A letra de Tejo, qual moderna Pedra da Roseta, exige as habilidades de um novo Champollion para trazê-la ao entendimento dos mortais comuns.

Comecei a ler e me dei conta da preciosidade que tinha em mãos. Aquilo, realmente, era uma obra de Tejo e ali estava o seu espírito paraibano, nordestino, poético, moleque, imprevisível por inteiro. Dar uma trégua ao aperreio para parir um negócio daqueles, só mesmo vindo dele.

Para se entender o acontecido, vale ressaltar que a história se passava na Câmara dos Deputados, cujo presidente, à época, era o Deputado Flávio Marcílio e que Delfim Netto era o então Ministro da Fazenda. Um tempo tão da porra que ninguém jamais será capaz de esquecer…

Vou transcrever do jeito que ele me deu.



LOUVAÇÃO A CANINDÉ

Estando sem um tostão
E me encontrando bem perto,
Fui procurar Luiz Berto
Para alguma solução.
Berto disse: “Meu irmão,
Eu também queria até
Fazer um querrequequé
Daquele que o diabo pinta
Para ver se arranco trinta
Do bolso de Canindé.

E toca a telefonar
E Canindé a correr,
Mas não pôde se esconder
E teve que tapear:
“Pela manhã não vai dar,
Porque de tarde é que é
Bom para a coisa dar pé.
Aguarde, portanto, amigo”.
Berto ficou de castigo
Esperando Canindé.

E eu que necessitava
Também da mesma quantia
Me fiei nessa franquia
Que Canindé propalava
Quando eu menos esperava
O safado, de má fé,
Filho de puta ralé,
Disse que hoje não tem nada…
Ah! uma foice amolada
No chifre de Canindé.

Eu já podia notar
E mudar de interesse
Que um cabra com um nome desse
Não poderia prestar.
Entretanto, vou esperar
Até amanhã com fé.
Se ele me deixar a pé,
Juro por Nossa Senhora:
Corto de pau uma tora
E vou matar Canindé.

O cabra fuma e não traga
Faz do crime o seu idílio!
Onde está Flávio Marcílio
Que não demite esta praga?
Ao menos dava-se a vaga
Pra um sujeito de fé,
Já que esse indivíduo é
Um tratante e delinquente
Haja chumbo grosso e quente
No rabo de Canindé.

Por capricho do destino
De Satanás ou Deus Brama,
O bicho também se chama
Coisa e tal e Tolentino,
Doido, avarento e mofino,
Não conhece a Santa Sé,
Faz da cola o seu rapé,
Vive da desgraça alheia,
Devia estar na cadeia
Esse tal de Canindé.

Não sei como Luiz Berto
Este escritor inspirado,
Toma dinheiro emprestado
A um ladrão tão esperto,
Que representa um deserto
De trabalho, amor e fé,
Que anda de marcha ré
Pela estrada da virtude
E além de covarde e rude
Se assina por Canindé.

Antes quero outro “pacote”
Desemprego, moratória,
Ver Delfim contar história,
Comer carne de caçote,
Levar chumbo no cangote,
Me abraçar com jacaré,
Beber caldo de chulé,
Dar o rabo a marinheiro,
Do que tomar um cruzeiro
Emprestado a Canindé.


NOSSO AMIGO CANINDÉ

Um sujeito despeitado,
Desses de baixa maré,
Inventou que Canindé
É um canalha safado.
Eu fiquei preocupado
Com a informação ralé,
Porém não perdi a fé
Em quem merece louvores…
E haja palmas e haja flores
Na fronte de Canindé.

Tenho dito e sustentado
(Todo mundo sabe disso)
Que na Câmara, esse cortiço,
Há um cidadão honrado,
Pai de família extremado,
Homem de bem e de fé!
O Papa já disse até
Que há no torrão brasileiro
Padre Cícero em Juazeiro
E em Brasília, Canindé.

Sei que o Papa tem razão,
Mas ninguém quer saber disto.
Se já falaram de Cristo,
Que se dirá de um cristão
Porém a fofoca não
Atinge um homem de fé.
E se eu descobrir quem é,
Meto a mão no pé do ouvido
Do sem-vergonha enxerido
Que falar de Canindé.

Canindé - nome decente!
Tolentino - ô nome macho!
Ribeiro - lindo riacho
Que mata a sede da gente!
Honrado, amigo e valente,
Subiu da glória o sopé…
A Virgem de Nazaré
Já lhe envolveu com seu manto,
Por isso um caminho santo
Vai trilhando Canindé.

Canindé pra ser beato
Só falta mesmo a batina,
Pois tem vocação divina
Pureza, fé e recato!
Por isso ele é o retrato
Mais fiel de São José
E já se comenta até
Que Frei Damião Bozano
Sugeriu ao Vaticano
Canonizar Canindé.

Mas sabem por que razão
Já querem canonizá-lo?
É por causa de um estalo
Que recebeu nosso irmão
Lá nas margens do Jordão,
Ao lado de São Tomé,
Quando dava cafuné
Numa velhinha doente
E morreu a penitente
Nos braços de Canindé.

Nesse chão onde ele pisa,
Por ser grande patriota,
Se faz até de agiota
Pra ajudar a quem precisa.
Mas não comercializa
A sua alma de fé!
Jamais ganhou um café
Pelo dinheiro que empresta…
A caridade é uma festa
Para a alma de Canindé.

Santo Agostinho, dos santos
Foi o mais puro entre os ermos
Que consolava os enfermos
E lhes enxugava os prantos.
Obrava milagres tantos,
Pela pureza e a fé
Pois acreditava até
Em fala de passarinho.
Mas sabem? Santo Agostinho
É pinto pra Canindé.


Orlando Tejo
Autor de Zé Limeira, o poeta do absurdo
https://www.youtube.com/watch?v=sFoenkVxqg4
(Orlando Tejo documentário de Vladimir Carvalho)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Disciplina



O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefatos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos. 




Cesare Pavese, in Trabalhar Cansa
Tradução: Carlos Leite 
Imagem: Gerhard Richter

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O Velho Senado

Glória, Rio de Janeiro. Litografia de S. A. Sisson. Parte do Álbum do Rio de Janeiro Moderno.



A propósito de algumas litografias de Sisson, tive há dias uma visão do Senado de 1860. Visões valem o mesmo que a retina em que se operam. Um político, tornando a ver aquele corpo, acharia nele a mesma alma dos seus correligionários extintos, e um historiador colheria elementos para a história. Um simples curioso não descobre mais que o pinturesco do tempo e a expressão das linhas com aquele tom geral que dão as coisas mortas e enterradas.

Nesse ano entrara eu para a imprensa. Uma noite, como saíssemos do Teatro Ginásio, Quintino Bocaiúva e eu fomos tomar chá. Bocaiúva era então uma gentil figura de rapaz, delgado, tez macia, fino bigode e olhos serenos. Já então tinha os gestos lentos de hoje, e um pouco daquele ar distant que Taine achou em Mérimée. Disseram coisa análoga de Challemel-Lacour, que alguém ultimamente definia como très républicain de conviction et très aristocrate de tempérament. O nosso Bocaiúva era só a segunda parte, mas já então liberal bastante para dar um republicano convicto. Ao chá, conversamos primeiramente de letras, e pouco depois de política, matéria introduzida por ele, o que me espantou bastante, não era usual nas nossas práticas. Nem é exato dizer que conversamos de política, eu antes respondia às perguntas que Bocaiúva me ia fazendo, como se quisesse conhecer as minhas opiniões. Provavelmente não as teria fixas nem determinadas; mas, quaisquer que fossem, creio que as exprimi na proporção e com a precisão apenas adequadas ao que ele me ia oferecer. De fato, separamo-nos com prazo dado para o dia seguinte, na loja de Paula Brito, que era na antiga Praça da Constituição, lado do Teatro S. Pedro, a meio caminho das Ruas do Cano e dos Ciganos. Relevai esta nomenclatura morta; é vício de memória velha. Na manhã seguinte, achei ali Bocaiúva escrevendo um bilhete. Tratava-se do Diário do Rio de Janeiro, que ia reaparecer, sob a direção política de Saldanha Marinho. Vinha dar-me um lugar na redação com ele e Henrique César Múzio.

Estas minudências, agradáveis de escrever, sê-lo-ão menos de ler. É difícil fugir a elas, quando se recordam coisas idas. Assim, dizendo que no mesmo ano, abertas as câmaras, fui para o Senado, como redator do Diário do Rio, não posso esquecer que nesse ou no outro ali estiveram comigo, Bernardo Guimarães, representante do Jornal do Comércio, e Pedro Luís, por parte do Correio Mercantil, nem as boas horas que vivemos os três. Posto que Bernardo Guimarães fosse mais velho que nós, partíamos irmãmente o pão da intimidade. Descíamos juntos aquela Praça da Aclamação, que não era então o parque de hoje, mas um vasto espaço inculto e vazio como o Campo de S. Cristóvão. Algumas vezes íamos jantar a um restaurant da Rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, nome este que se lhe deu por indicação justamente no Diário do Rio; o poeta morara ali outrora, e foi Múzio, seu amigo, que pela nossa folha o pediu à Câmara Municipal. Pedro Luís não tinha só a paixão que pôs nos belos versos à Polônia e no discurso com que, pouco depois, entrou na Câmara dos Deputados, mas ainda a graça, o sarcasmo, a observação fina e aquele largo riso em que os grandes olhos se faziam maiores. Bernardo Guimarães não falava nem ria tanto, incumbia-se de pontuar o diálogo com um bom dito, um reparo, uma anedota. O Senado não se prestava menos que o resto do mundo à conversação dos três amigos.

Poucos membros restarão da velha casa. Paranaguá e Sinimbu carregam o peso dos anos com muita facilidade e graça, o que ainda mais admira em Sinimbu, que suponho mais idoso. Ouvi falar a este bastantes vezes; não apaixonava o debate, mas era simples, claro, interessante, e, fisicamente, não perdia a linha. Esta geração conhece a firmeza daquele homem político, que mais tarde foi presidente do Conselho e teve de lutar com oposições grandes. Um incidente dos últimos anos mostrará bem a natureza dele. Saindo da Câmara dos Deputados para a Secretaria da Agricultura, com o Visconde de Ouro Preto, colega de gabinete, eram seguidos por enorme multidão de gente em assuada. O carro parou em frente à secretaria; os dois apearam-se e pararam alguns instantes, voltados para a multidão, que continuava a bradar e apupar, e então vi bem a diferença dos dois temperamentos. Ouro Preto fitava-a com a cabeça erguida e certo gesto de repto; Sinimbu parecia apenas mostrar ao colega um trecho de muro, indiferente. Tal era o homem que conheci no Senado.

Para avaliar bem a minha impressão diante daqueles homens que eu via ali juntos, todos os dias, é preciso não esquecer que não poucos eram contemporâneos da maioridade, algum da Regência, do Primeiro Reinado e da Constituinte. Tinham feito ou visto fazer a história dos tempos iniciais do regímen, e eu era um adolescente espantado e curioso. Achava-lhes uma feição particular, metade militante, metade triunfante, um pouco de homens, outro pouco de instituição. Paralelamente, iam-me lembrando os apodos e chufas que a paixão política desferira contra alguns deles, e sentia que as figuras serenas e respeitáveis que ali estavam agora naquelas cadeiras estreitas não tiveram outrora o respeito dos outros, nem provavelmente a serenidade própria. E tirava-lhes as cãs e as rugas, e fazia-os outra vez moços, árdegos e agitados. Comecei a aprender a parte do presente que há no passado, e vice-versa. Trazia comigo a oligarquia, o golpe de Estado de 1848, e outras notas da política em oposição ao domínio conservador, e ao ver os cabos deste partido, risonhos, familiares, gracejando entre si e com os outros, tomando juntos café e rapé, perguntava a mim mesmo se eram eles que podiam fazer, desfazer e refazer os elementos e governar com mão de ferro este país.

Os senadores compareciam regularmente ao trabalho. Era raro não haver sessão por falta de quórum. Uma particularidade do tempo é que muitos vinham em carruagem própria, como Zacarias, Monte Alegre, Abrantes, Caxias e outros, começando pelo mais velho, que era o Marquês de Itanhaém. A idade deste fazia-o menos assíduo, mas ainda assim era-o mais do que cabia esperar dele. Mal se podia apear do carro, e subir as escadas; arrastava os pés até à cadeira, que ficava do lado direito da mesa. Era seco e mirrado, usava cabeleira e trazia óculos fortes. Nas cerimônias de abertura e encerramento agravava o aspecto com a farda de senador. Se usasse barba, poderia disfarçar o chupado e engelhado dos tecidos, a cara rapada acentuava-lhe a decrepitude; mas a cara rapada era o costume de outra quadra, que ainda existia na maioria do Senado. Uns, como Nabuco e Zacarias, traziam a barba toda feita; outros deixavam pequenas suíças, como Abrantes e Paranhos, ou, como Olinda e Eusébio, a barba em forma de colar; raros usavam bigodes, como Caxias e Montezuma, — um Montezuma de segunda maneira.

A figura de Itanhaém era uma razão visível contra a vitaliciedade do Senado, mas é também certo que a vitaliciedade dava àquela casa uma consciência de duração perpétua, que parecia ler-se no rosto e no trato de seus membros. Tinham um ar de família, que se dispersava durante a estação calmosa, para ir às águas e outras diversões, e que se reunia depois, em prazo certo, anos e anos. Alguns não tornavam mais, e outros novos apareciam; mas também nas famílias se morre e nasce. Dissentiam sempre, mas é próprio das famílias numerosas brigarem, fazerem as pazes e tornarem a brigar; parece até que é a melhor prova de estar dentro da humanidade. Já então se evocavam contra a vitaliciedade do Senado os princípios liberais, como se fizera antes. Algumas vozes vibrantes cá fora, calavam-se lá dentro, é certo, mas o gérmen da reforma ia ficando, os programas o acolhiam, e, como em vários outros casos, os sucessos o fizeram lei.

Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e constante. Geralmente, as galerias não eram mui frequentadas, e, para o fim da hora, poucos espectadores ficavam, alguns dormiam. Naturalmente, a discussão do voto de graças e outras chamavam mais gente. Nabuco e algum outro dos principais da casa gozavam do privilégio de atrair grande auditório, quando se sabia que eles rompiam um debate ou respondiam a um discurso. Nessas ocasiões, mui excepcionalmente, eram admitidos ouvintes no próprio salão do Senado, como aliás era comum na Câmara temporária; como nesta, porém, os espectadores não intervinham com aplausos nas discussões. A presidência de Abaeté redobrou a disciplina do regimento, porventura menos apertada no tempo da presidência de Cavalcanti.

Não faltavam oradores. Uma só vez ouvi falar a Eusébio de Queirós, e a impressão que me deixou foi viva; era fluente, abundante, claro, sem prejuízo do vigor e da energia. Não foi discurso de ataque, mas de defesa, falou na qualidade de chefe do Partido Conservador, ou papa; Itaboraí, Uruguai, Saião Lobato e outros eram cardeais, e todos formavam o consistório, segundo a célebre definição de Otaviano no Correio Mercantil. Não reli o discurso, não teria agora tempo nem oportunidade de fazê-lo, mas estou que a impressão não haveria diminuído muito, posto lhe falte o efeito da própria voz do orador, que seduzia. A matéria era sobremodo ingrata: tratava-se de explicar e defender o acúmulo dos cargos públicos, acusação feita na imprensa da oposição. Era a tarde da oligarquia, o crepúsculo do domínio conservador. As eleições de 1860, na capital, deram o primeiro golpe na situação; se também deram o último, não sei; os partidos nunca se entenderam bem acerca das causas imediatas da própria queda ou subida, salvo no ponto de serem alternadamente a violação ou a restauração da carta constitucional. Quaisquer que fossem, então, a verdade é que as eleições da capital naquele ano podem ser contadas como uma vitória liberal. Elas trouxeram à minha imaginação adolescente uma visão rara e especial do poder das urnas. Não cabe inseri-la aqui; não direi o movimento geral e o calor sincero dos votantes, incitados pelos artigos da imprensa e pelos discursos de Teófilo Otôni, nem os lances, cenas e brados de tais dias. Não me esqueceu a maior parte deles; ainda guardo a impressão que me deu um obscuro votante que veio ter com Otôni, perto da matriz do Sacramento. Otôni não o conhecia, nem sei se o tornou a ver. Ele chegou-se-lhe e mostrou-lhe um maço de cédulas, que acabava de tirar às escondidas da algibeira de um agente contrário. O riso que acompanhou esta notícia nunca mais se me apagou da memória. No meio das mais ardentes reivindicações deste mundo, alguma vez me despontou ao longe aquela boca sem nome, acaso verídica e honesta em tudo o mais da vida, que ali viera confessar candidamente, e sem outro prêmio pessoal, o fino roubo praticado. Não mofes desta insistência pueril da minha memória; eu a tempo advirto que as mais claras águas podem levar de enxurro alguma palha podre, — se é que é podre, se é que é mesmo palha.

Eusébio de Queirós era justamente respeitado dos seus e dos contrários. Não tinha a figura esbelta de um Paranhos, mas ligava-se-lhe uma história particular e célebre, dessas que a crônica social e política de outros países escolhe e examina, mas que os nossos costumes, — aliás demasiado soltos na palestra, — não consentem inserir no escrito. De resto, pouco valeria repetir agora o que se divulgava então, não podendo pôr aqui a própria e extremada beleza da pessoa que as ruas e salas desta cidade viram tantas vezes. Era alta e robusta; não me ficaram outros pormenores.

O Senado contava raras sessões ardentes; muitas, porém, eram animadas. Zacarias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza e vigor dos golpes. Tinha a palavra cortante, fina e rápida, com uns efeitos de sons guturais, que a tornavam mais penetrante e irritante. Quando ele se erguia, era quase certo que faria deitar sangue a alguém. Chegou até hoje a reputação de debater, como oposicionista, e como ministro e chefe de gabinete. Tinha audácias, como a da escolha "não acertada", que a nenhum outro acudiria, creio eu. Politicamente, era uma natureza seca e sobranceira. Um livro que foi de seu uso, uma História de Clarendon (History of the Rebellion and Civil Wars in England), marcado em partes, a lápis encarnado, tem uma sublinha nas seguintes palavras (vol. I, pág. 44) atribuídas ao Conde de Oxford, em resposta ao Duque de Buckingham, "que não buscava a sua amizade nem temia o seu ódio". É arriscado ver sentimentos pessoais nas simples notas ou lembranças postas em livros de estudo, mas aqui parece que o espírito de Zacarias achou o seu parceiro. Particularmente, ao contrário, e desde que se inclinasse a alguém, convidava fortemente a amá-lo; era lhano e simples, amigo e confiado. Pessoas que o frequentavam, dizem e afirmam que, sob as suas árvores da Rua do Conde ou entre os seus livros, era um gosto ouvi-lo, e raro haverá esquecido a graça e a polidez dos seus obséquios. No Senado, sentava-se à esquerda da mesa, ao pé da janela, abaixo de Nabuco, com quem trocava os seus reparos e reflexões. Nabuco, outra das principais vozes do Senado, era especialmente orador para os debates solenes. Não tinha o sarcasmo agudo de Zacarias, nem o epigrama alegre de Cotegipe. Era então o centro dos conservadores moderados que, com Olinda e Zacarias, fundaram a liga e os partidos Progressista e Liberal. Joaquim Nabuco, com a eloquência de escritor político e a afeição de filho, dirá toda essa história no livro que está consagrando à memória de seu ilustre pai. A palavra do velho Nabuco era modelada pelos oradores da tribuna liberal francesa. A minha impressão é que preparava os seus discursos, e a maneira por que os proferia realçava-lhes a matéria e a forma sólida e brilhante. Gostava das imagens literárias: uma dessas, a comparação do poder moderador à estátua de Glauco, fez então fortuna. O gesto não era vivo, como o de Zacarias, mas pausado, o busto cheio era tranquilo, e a voz adquiria uma sonoridade que habitualmente não tinha.

Mas eis que todas as figuras se atropelam na evocação comum, as de grande peso, como Uruguai, com as de pequeno ou nenhum peso, como o Padre Vasconcelos, senador creio que pela Paraíba, um bom homem que ali achei e morreu pouco depois. Outro, que se podia incluir nesta segunda categoria, era um de quem só me lembram duas circunstâncias, as longas barbas grisalhas e sérias, e a cautela e pontualidade com que não votava os artigos de uma lei sem ter os olhos pregados em Itaboraí. Era um modo de cumprir a fidelidade política e obedecer ao chefe, que herdara o bastão de Eusébio. Como o recinto era pequeno, viam-se todos esses gestos, e quase se ouviam todas as palavras particulares. E, conquanto fosse assim pequeno, nunca vi rir a Itaboraí, creio que os seus músculos dificilmente ririam — o contrário de S. Vicente, que ria com facilidade, um riso bom, mas que lhe não ia bem. Quaisquer que fossem, porém, as deselegâncias físicas do senador por S. Paulo, e malgrado a palavra sem sonoridade, era ouvido com grande respeito, como Itaboraí. De Abrantes dizia-se que era um canário falando. Não sei até que ponto merece a definição; em verdade, achava-o fluente, acaso doce, e, para um povo mavioso como o nosso, a qualidade era preciosa; nem por isso Abrantes era popular. Também não o era Olinda, mas a autoridade deste sabe-se que era grande. Olinda aparecia-me envolvido na aurora remota do reinado, e na mais recente aurora liberal ou "situação nascente", mote de um dos chefes da liga, penso que Zacarias, que os conservadores glosaram por todos os feitios, na tribuna e na imprensa. Mas não deslizemos a reminiscências de outra ordem; fiquemos na surdez de Olinda, que competia com Beethoven nesta qualidade, menos musical que política. Não seria tão surdo. Quando tinha de responder a alguém, ia sentar-se ao pé do orador, e escutava atento, cara de mármore, sem dar um aparte, sem fazer um gesto, sem tomar uma nota. E a resposta vinha logo; tão depressa o adversário acabava, como ele principiava, e, ao que me ficou, lúcido e completo.

Um dia vi ali aparecer um homem alto, suíças e bigodes brancos e compridos. Era um dos remanescentes da Constituinte, nada menos que Montezuma, que voltava da Europa. Foi-me impossível reconhecer naquela cara barbada a cara rapada que eu conhecia da litografia Sisson; pessoalmente nunca o vira. Era, muito mais que Olinda, um tipo de velhice robusta. Ao meu espírito de rapaz afigurava-se que ele trazia ainda os rumores e os gestos da assembleia de 1823. Era o mesmo homem; mas foi preciso ouvi-lo agora para sentir toda a veemência dos seus ataques de outrora. Foi preciso ouvir-lhe a ironia de hoje para entender a ironia daquela retificação que ele pôs ao texto de uma pergunta ao Ministro do Império, na célebre sessão permanente de 11 a 12 de novembro: "Eu disse que o Sr. Ministro do Império, por estar ao lado de Sua Majestade, melhor conhecerá o "espírito da tropa", e um dos senhores secretários escreveu "o espírito de Sua Majestade", quando não disse tal, porque deste não duvido eu".

Agora o que eu mais ouvia dizer dele, além do talento, eram as suas infidelidades, e sobre isto corriam anedotas; mas eu nada tenho com anedotas políticas. Que se não pudesse fiar muito em seus carinhos parlamentares, creio. Uma vez, por exemplo, encheu a alma de Sousa Franco de grandes aleluias. Querendo criticar o Ministro da Fazenda (não me lembra quem era) começou por afirmar que nunca tivéramos ministros da Fazenda, mas tão-somente ministros do Tesouro. Encarecia com adjetivos: excelentes, ilustrados, conspícuos ministros do Tesouro, mas da Fazenda nenhum. "Um houve, Sr. presidente que nos deu alguma coisa do que deve ser um Ministro da Fazenda; foi o nobre senador pelo Pará". E Sousa Franco sorria alegre, deleitava-se com a exceção, que devia doer ao seu forte rival em finanças, Itaboraí; não passou muito tempo que não perdesse o gosto. De outra vez, Montezuma atacava a Sousa Franco, e este novamente sorria, mas agora a expressão não era alegre, parecia rir de desdém. Montezuma empina o busto, encara-o irritado, e com a voz e o gesto intima-lhe que recolha o riso; e passa a demonstrar as suas críticas, uma por uma, com esta espécie de estribilho: "Recolha o riso o nobre senador!" Tudo isto aceso e torvo. Sousa Franco quis resistir; mas o riso recolheu-se por si mesmo. Era então um homem magro e cansado. Gozava ainda agora a popularidade ganha na Câmara dos Deputados, anos antes, pela campanha que sustentou, sozinho e parece que enfermo, contra o Partido Conservador.

Contrastando com Sousa Franco, vinha a figura de Paranhos, alta e forte. Não é preciso dizê-lo a uma geração que o conheceu e admirou, ainda belo e robusto na velhice. Nem é preciso lembrar que era uma das primeiras vozes do Senado. Eu trazia de cor as palavras que alguém me confiou haver dito, quando ele era simples estudante da Escola Central: "Sr. Paranhos, você ainda há de ser ministro". O estudante respondia modestamente, sorrindo; mas o profeta dos seus destinos tinha apanhado bem o valor e a direção da alma do moço.

Muitas recordações me vieram do Paranhos de então, discursos de ataque, discursos de defesa, mas, uma basta, a justificação do convênio de 20 de fevereiro. A notícia deste ato entrou no Rio de Janeiro, como as outras desse tempo, em que não havia telégrafo. Os sucessos do exterior chegavam-nos às braçadas, por atacado, e uma batalha, uma conspiração, um ato diplomático eram conhecidos com todos os seus pormenores. Por um paquete do Sul soubemos do convênio da vila da União. O pacto foi mal recebido, fez-se uma manifestação de rua, e um grupo de populares, com três ou quatro chefes à frente, foi pedir ao governo a demissão do plenipotenciário. Paranhos foi demitido, e, aberta a sessão parlamentar, cuidou de produzir a sua defesa.

Tornei a ver aquele dia, e ainda agora me parece vê-lo. Galerias e tribunas estavam cheias de gente; ao salão do Senado foram admitidos muitos homens políticos ou simplesmente curiosos. Era uma hora da tarde quando o presidente deu a palavra ao senador por Mato Grosso; começava a discussão do voto de graças. Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-os para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da camisa, e a voz ia saindo meditada e colorida. Naquele dia, porém, a ânsia de produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que ditas: "Não a vaidade. Sr. presidente..." Daí a um instante, a voz tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando ele acabou; estava como no princípio, nenhum sinal de fadiga nele nem no auditório, que o aplaudiu. Foi uma das mais fundas impressões que me deixou a eloquência parlamentar. A agitação passara com os sucessos, a defesa estava feita. Anos depois do ataque, esta mesma cidade aclamava o autor da lei de 28 de setembro de 1871, como uma glória nacional; e ainda depois, quando ele tornou da Europa, foi recebê-lo e conduzi-lo até a casa. Ao clarão de um belo sol, rubro de comoção, levado pelo entusiasmo público, Paranhos seguia as mesmas ruas que, anos antes, voltando do Sul, pisara sozinho e condenado.

A visão do Senado foi-se-me assim alterando nos gestos e nas pessoas, como nos dias, e sempre remota e velha: era o Senado daqueles três anos. Outras figuras vieram vindo. Além dos cardeais, os Muritibas, os Sousa e Melos, vinham os de menor graduação política, o risonho Pena, zeloso e miúdo em seus discursos, o Jobim, que falava algumas vezes, o Ribeiro, do Rio Grande do Sul, que não falava nunca, — não me lembra, ao menos. Este, filósofo e filólogo, tinha junto a si, no tapete, encostado no pé da cadeira, um exemplar do dicionário de Morais. Era comum vê-lo consultar um e outro tomo, no correr de um debate, quando ouvia algum vocábulo, que lhe parecia de incerta origem ou duvidosa aceitação. Em contraste com a abstenção dele, eis aqui outro, Silveira da Mota, assíduo na tribuna, oposicionista por temperamento, e este outro, D. Manuel de Assis Mascarenhas, bom exemplar da geração que acabava. Era um homenzinho seco e baixo, cara lisa, cabelo raro e branco, tenaz, um tanto impertinente, creio que desligado de partidos. Da sua tenacidade dará ideia o que lhe vi fazer em relação a um projeto de subvenção ao teatro lírico, por meio de loterias. Não era novo; continuava o de anos anteriores. D. Manuel opunha-se por todos os meios à passagem dele, e fazia extensos discursos. A mesa, para acabar com o projeto, já o incluía entre os primeiros na ordem do dia, mas nem assim desanimava o senador. Um dia foi ele colocado antes de nenhum. D. Manuel pediu a palavra, e francamente declarou que era seu intuito falar toda a sessão; portanto, aqueles de seus colegas que tivessem algum negócio estranho e fora do Senado podiam retirar-se; não se discutiria mais nada. E falou até o fim da hora, consultando a miúdo o relógio para ver o tempo que lhe ia faltando. Naturalmente não haveria muito que dizer em tão escassa matéria, mas a resolução do orador e a liberdade do regimento davam-lhe meio de compor o discurso. Daí nascia uma infinidade de episódios, reminiscências, argumentos e explicações; por exemplo, não era recente a sua aversão às loterias, vinha do tempo em que, andando a viajar, foi ter a Hamburgo; ali ofereceram-lhe com tanta instância um bilhete de loteria, que ele foi obrigado a comprar, e o bilhete saiu branco. Esta anedota era contada com todas as minúcias necessárias para ampliá-la. Uma parte do tempo falou sentado, e acabou diante da mesa e três ou quatro colegas. Mas, imitando assim Catão, que também falou um dia inteiro para impedir uma petição de César, foi menos feliz que o seu colega romano. César retirou a petição, e aqui as loterias passaram, não me lembra se por fadiga ou omissão de D. Manuel; anuência é que não podia ser. Tais eram os costumes do tempo.

E após ele vieram outros, e ainda outros, Sapucaí, Maranguape, Itaúna, e outros mais, até que se confundiram todos e desapareceu tudo, coisas e pessoas, como sucede às visões. Pareceu-me vê-los enfiar por um corredor escuro, cuja porta era fechada por um homem de capa preta, meias de seda preta, calções pretos e sapatos de fivela. Este era nada menos que o próprio porteiro do Senado, vestido segundo as praxes do tempo, nos dias de abertura e encerramento da assembleia geral. Quanta coisa obsoleta! Alguém ainda quis obstar à ação do porteiro, mas tinha o gesto tão cansado e vagaroso que não alcançou nada; aquele deu volta à chave, envolveu-se na capa, saiu por uma das janelas e esvaiu-se no ar, a caminho de algum cemitério, provavelmente. Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo, mas não vale; todos os cemitérios se parecem.


Machado de Assis, Obra Completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.II, 1994. Publicado originalmente em Revista Brasileira, Rio de Janeiro, 1898.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

SEM TÍTULO



Esperas que desapareça a angústia
Enquanto cai a chuva sobre a desconhecida estrada
Onde te encontras

Chuva: apenas espero
Que desapareça a angústia
Estou dando tudo de mim




ROBERTO BOLAÑO
Otto Stupakoff

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

A RAÇÃO D’ÁGUA


Meia bacia é a ração d’água.
Faz-se o que quer: asseio ou chá.
Você quer se lavar?
Esqueça o chá
Você quer o chá?
Deixe o asseio.






Ho Chi Minh, Poemas do Cárcere
Tradução: Coema Simões e Moniz Bandeira
Imagem: JeeYoung Lee, Black Birds

domingo, 24 de janeiro de 2016

RÉQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI




Eu pouco sei de ti mas este crime 
torna a morte ainda mais insuportável.
Era novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa: uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo – amanhece,
os primeiros carros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece e brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, exceto claro
os meritíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Saló, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há,
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua. 





EUGÊNIO DE ANDRADE, Homenagens e outros Epitáfios, 1974

sábado, 23 de janeiro de 2016

Trabalhar cansa



Travessar uma rua fugindo de casa
só um menino o faria, mas este homem que passa
todo dia nas ruas não é mais menino
e não foge de casa.
Em pleno verão,
até as praças se tornam vazias de tarde, deitadas
sob o sol que começa a cair, e este homem que chega
por um parque de plantas inúteis detém-se.
Vale a pena ser só para estar cada vez mais sozinho?
Simplesmente vagar, pois as praças e ruas
estão ermas. Forçoso é abordar uma mulher
e falar-lhe e fazê-la viver com você.
Do contrário, se fala sozinho. É por isso que às vezes
algum bêbado à noite dispara discursos
e repassa os projetos de toda sua vida.
Certamente não é esperando na praça deserta
que se encontram pessoas, mas quem anda nas ruas
se detém vez ou outra. Estivessem a dois
mesmo andando na rua, sua casa estaria
onde está a mulher. Valeria a pena.
Mas de noite essa praça retorna ao vazio
e este homem que passa não vê as fachadas
entre luzes inúteis nem ergue seus olhos:
Sente só o ladrilho que outros homens fizeram
com mãos secas e duras, assim como as suas.
Não é justo deixar-se na praça deserta.
Com certeza há de andar pela rua a mulher
que, chamada, viria ajudar com a casa.






CESARE PAVESE, Trabalhar Cansa, Cosac Naify & 7Letras, coleção Ás de Colete, 2009. Tradução:Maurício Santana Dias 
Imagem: Saul Leiter

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

À ESPERA DOS BÁRBAROS



O que esperamos na ágora reunidos?
      É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

      É que os bárbaros chegam hoje.
      Que leis hão de fazer os senadores?
      Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

      É que os bárbaros chegam hoje.
      O nosso imperador conta saudar
      o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
      um pergaminho no qual estão escritos
      muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

      É que os bárbaros chegam hoje,
      tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

      É que os bárbaros chegam hoje
      e aborrecem arengas, eloquências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

      Porque é já noite, os bárbaros não vêm
      e gente recém-chegada das fronteiras
      diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.



Andy Warhol, Henry Geldzahler, David Hockney, Jeff Goodman


KONSTANTINOS KAVÁFIS, c. de 1911
Tradução: José Paulo Paes

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Hino ao crítico



Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o batizou: crítico.
O pai, recordando sua progenitura,
Vivia a contestar os maternais direitos.
Com tais boas maneiras e tal compostura
Defendia o menino do pendor à sarjeta.
Assim como o vigia cantava a cozinheira,
A mãe cantava, a lavar calça e calção.
Dela o garoto herdou o cheiro de sujeira
E a arte de penetrar fácil e sem sabão.
Quando cresceu, do tamanho de um bastão,
Sardas na cara como um prato de cogumelos,
Lançaram-no , com um leve golpe de joelho,
À rua, para tornar-se um cidadão.
Será preciso muito para ele sair da fralda?
Um pedaço de pano, calças e um embornal.
Com o nariz grácil com um vintém por lauda
Ele cheirou o céu afável do jornal.
E em certa propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da teta das palavras
Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.
Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhe de leve os tornozelos loucos.
Mas se se infiltra na rede jornalística
Algo sobre a grandeza de Púchkin ou Dante,
Parece que apodrece ante a nossa vista
Um enorme lacaio, balofo e bajulante.
Quando, por fim, no jubileu do centenário,
Acordares em meio ao fumo funerário,
Verás brilhar na cigarreira-souvenir o
Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um lírio.
Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca nos artigos?



Rodchenko, Shklovski e Maiakóvski, 1926



MAIAKÓVSKI, Poemas, Editora Perspectiva, 2013
Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Sensini



A forma como se desenrolou minha amizade com Sensini sem dúvida escapa ao costumeiro. Naquela época eu tinha vinte e tantos anos e era mais pobre que um rato. Morava nos arredores de Girona, numa casa em ruínas que minha irmã e meu cunhado tinham me deixado depois de irem para o México, e acabava de perder um trabalho de vigia noturno num camping de Barcelona, o qual havia acentuado minha propensão a não dormir de noite. Quase não tinha amigos e a única coisa que fazia era escrever e dar longos passeios que começavam às sete da noite, depois de acordar, momento em que meu corpo experimentava uma coisa parecida com o jet lag, uma sensação de estar e não estar, de distância com respeito ao que me rodeava, de indefinida fragilidade. Vivia com o que tinha economizado durante o verão e, embora quase não gastasse dinheiro, meu pé-de-meia ia minguando com o passar do outono. Talvez tenha sido isso que me levou a participar do Concurso Nacional de Literatura de Alcoy, aberto para escritores de língua castelhana, qualquer que fosse sua nacionalidade e seu lugar de residência. O prêmio era dividido em três modalidades: poesia, conto e ensaio. Primeiro pensei me apresentar em poesia, mas enviar a luta com os leões (ou com as hienas) o que eu fazia melhor me pareceu indecoroso. Depois pensei me apresentar em ensaio, mas quando me mandaram o regulamento descobri que o ensaio devia versar sobre Alcoy, seus arredores, sua história, seus homens ilustres, sua projeção no futuro, e isso estava além da minha competência. Decidi, pois, me apresentar em conto: enviei em três cópias o melhor que eu tinha (não eram muitos) e me sentei à espera. 

Quando o prêmio saiu, eu trabalhava de vendedor ambulante numa feira de artesanato onde absolutamente ninguém vendia artesanato. Obtive o terceiro prêmio e dez mil pesetas que a prefeitura de Alcoy me pagou religiosamente. Pouco depois recebi o livro, no qual não escasseavam as erratas, com o vencedor e os seis finalistas. Claro, meu conto era melhor do que o que havia ganhado o primeiro prêmio, o que me levou a amaldiçoar o júri e dizer a mim mesmo que, enfim, isso sempre acontece. Mas o que realmente me surpreendeu foi encontrar no mesmo livro Luis Antonio Sensini, o escritor argentino, segundo prêmio, com um conto em que o narrador ia para o campo e ali morria seu filho ou com um conto em que o narrador ia para o campo porque na cidade seu filho tinha morrido, não ficava claro, o caso e que no campo, um campo plano e um tanto ermo, o filho do narrador continuava morrendo, enfim, o conto era claustrofóbico, bem no estilo de Sensini, dos grandes espaços geográficos de Sensini que de repente se reduziam até ter o tamanho de um caixão, e superior ao ganhador e primeiro prêmio e também superior ao terceiro prêmio e ao quarto, quinto e sexto.

Não sei o que me levou a pedir a prefeitura de Alcoy o endereço de Sensini. Eu havia lido um romance dele e alguns dos seus contos em revistas latinoamericanas. O romance era dos que fazem leitores. Chamavase Ugarte e falava de alguns momentos da vida de Juan de Ugarte, burocrata do vicereinado do Rio da Prata em fins do século XVIII. Alguns críticos, principalmente espanhóis, o haviam liquidado dizendo que se tratava de uma espécie de Kafka colonial, mas pouco a pouco o romance foi fazendo seus próprios leitores e, quando dei com Sensini no livro de contos de Alcoy, Ugarte tinha, em vários cantos da América e da Espanha, uns poucos e fervorosos leitores, quase todos amigos ou inimigos gratuitos entre si. Sensini, claro, tinha outros livros, publicados na Argentina ou em editoras espanholas desaparecidas, e pertencia a essa geração intermediaria de escritores nascidos nos anos 1920, depois de Cortázar, Bioy, Sabato, Mujica Láinez, e cujo expoente mais conhecido (pelo menos então, pelo menos para mim) era Haroldo Conti, desaparecido num dos campos especiais da ditadura de Videla e seus sequazes. Dessa geração (se bem que talvez a palavra geração seja excessiva) sobrava pouco, mas não por falta de brilho e talento; seguidores de Roberto Arlt, jornalistas, professores e tradutores de alguma maneira anunciaram o que viria em seguida, e anunciaram a sua maneira triste e cética que no fim foi engolindo todos.

Eu gostava deles. Numa época remota da minha vida eu tinha lido as obras teatrais de Abelardo Castillo, os contos de Rodolpho Walsh (como Conti, assassinado pela ditadura), os contos de Daniel Moyano, leituras parciais e fragmentadas oferecidas pelas revistas argentinas ou mexicanas ou cubanas, livros encontrados nos sebos do DF, antologias piratas da literatura portenha, provavelmente a melhor na língua espanhola deste século, literatura da qual eles faziam parte e que não era certamente a de Borges ou Cortázar e que Manuel Puig e Osvaldo Soriano não tardariam a deixar para trás, mas que oferecia ao leitor textos compactos, inteligentes, que propiciavam cumplicidade e alegria. Meu favorito, nem e preciso dizer, era Sensini, e o fato, de alguma maneira cruento e de alguma maneira lisonjeador, de encontrálo num concurso literário de província me animou a entrar em contato com ele, cumprimentálo, dizer quanto gostava dele.

Assim, a prefeitura de Alcoy não demorou a me enviar seu endereço, ele morava em Madri, e uma noite, depois de jantar ou comer ou lanchar, eu lhe escrevi uma longa carta em que falava de Ugarte, dos outros contos dele que havia lido em revistas, de mim, da minha casa nos arredores de Girona, do concurso literário (eu ria do vencedor), da situação política chilena e argentina (ambas as ditaduras ainda estavam bem estabelecidas), dos contos de Walsh (que era o outro de que eu mais gostava, junto com Sensini), da vida na Espanha e da vida em geral. Ao contrário do que esperava, recebi uma carta dele apenas uma semana depois. Começava me agradecendo pela minha, dizia que de fato a prefeitura de Alcoy também lhe enviara o livro com os contos premiados mas que, ao contrário de mim, ele não havia arranjado tempo (se bem que depois, quando voltava de forma enviesada ao mesmo tema, dizia que não tinha encontrado ânimo suficiente) para reler a narrativa vencedora e as outras premiadas, mas nestes dias havia lido o meu conto e o achara muito bom, um conto de primeira ordem, dizia, conservo a carta, e ao mesmo tempo me instava a perseverar, mas não, como a principio entendi, a perseverar na escrita e sim a perseverar nos concursos, coisa que ele, me garantia, também faria. Ato contínuo passava a me perguntar pelos concursos literários que se avistavam no horizonte, recomendandome que mal soubesse de um lhe informasse no ato. Em contrapartida me anexava as coordenadas de dois concursos de narrativas, um em Plasencia, o outro em Écija, de vinte e cinco mil e trinta mil pesetas respectivamente, cujo regulamento conforme pude verificar mais tarde ele tirava de jornais e revistas madrilenhas cuja simples existência era um crime ou um milagre, depende. Os dois concursos ainda estavam a meu alcance e Sensini terminava sua carta de maneira algo entusiasta, como se nos dois estivéssemos na linha de largada de uma corrida interminável, além de dura e sem sentido. Coragem e mãos à obra, dizia.

Lembro que pensei: que carta estranha, lembro que reli alguns capítulos de Ugarte, naqueles dias apareceram na praça dos cinemas de Girona os vendedores ambulantes de livros, gente que montava suas bancas ao redor da praça e oferecia principalmente estoques invendáveis, os saldos das editoras que não fazia muito haviam quebrado, livros da Segunda Guerra Mundial, romances de amor e de caubóis, coleções de postais. Numa das bancas encontrei um livro de contos de Sensini e comprei. Estava como novo — na verdade, era um livro novo, daqueles que as editoras vendem com desconto para os únicos que trabalham com esse material, os ambulantes, quando mais nenhuma livraria, nenhum distribuidor quer pôr as mãos nesse fogo — e aquela semana foi uma semana Sensini em todos os sentidos. Às vezes eu relia pela centésima vez sua carta, outras vezes folheava Ugarte, e quando queria ação, novidade, lia seus contos. Estes, embora tratassem de uma gama variada de temas e situações, geralmente se desenrolavam no campo, na pampa, e eram o que pelo menos antigamente se chamavam histórias de homens a cavalo. Quer dizer, histórias de gente armada, desventurada, solitária ou com um senso peculiar da sociabilidade. Tudo o que em Ugarte era frieza, um pulso preciso de neurocirurgião, no livro de contos era calor, paisagens que se distanciavam do leitor muito lentamente (e que às vezes se afastavam com o leitor), personagens corajosos e à deriva.

            Do concurso de Plasencia não consegui participar, mas do de Écija sim. Mal pus os exemplares do meu conto (pseudônimo: Aloysius Acker) no correio, compreendi que se ficasse esperando o resultado as coisas só podiam piorar. De modo que decidi procurar outros concursos e de passagem atender ao pedido de Sensini. Nos dias seguintes, quando descia a Girona, dedicavame a fuçar jornais atrasados em busca de informação: em alguns ocupavam uma coluna junto da crônica social, em outros apareciam entre o noticiário geral e de esportes, o mais sério de todos os situava no meio do caminho entre a previsão do tempo e o obituário, nenhum, e claro, nas páginas culturais. Descobri também uma revista da Generalitat que, entre bolsas, intercâmbios, ofertas de emprego, cursos de pósgraduação, inseria anúncios de concursos literários, a maioria de âmbito catalão em língua catalã, mas nem todos. Logo tinha em perspectiva três concursos dos quais Sensini e eu podíamos participar e lhe escrevi uma carta.

            Como sempre, a resposta veio logo em seguida. A carta de Sensini era breve. Respondia a algumas das minhas perguntas, a maioria delas relativa a seu livro de contos recémcomprado, e acrescentava por sua vez as fotocópias do regulamento de outros três concursos de contos, um deles patrocinado pela rede ferroviária, primeiro prêmio e dez finalistas a cinquenta mil pesetas por barba, dizia textualmente, quem não se apresenta não ganha, para que não fique na intenção. Respondi dizendo que não tinha tantos contos assim para cobrir os seis concursos em andamento, mas sobretudo tentei tocar em outros temas, a carta saiu do meu controle, falei de viagens, amores perdidos, Walsh, Conti, Francisco Urondo, perguntei por Gelman que ele sem dúvida conhecia, terminei contando minha história em capítulos, sempre que falo com argentinos acabo me enredando no tango e no labirinto, isso acontece com muitos chilenos. 

             A resposta de Sensini foi pontual e extensa, pelo menos no tocante a produção e aos concursos. Numa folha escrita com espaço simples e dos dois lados expunha uma espécie de estratégia geral com respeito aos prêmios literários de províncias. Falo por experiência própria, dizia. A carta começava santificandoos (nunca soube se a sério ou de brincadeira), fonte de renda que ajudava no sustento cotidiano. Ao se referir as entidades patrocinadoras, prefeituras e caixas econômicas, dizia essa boa gente que acredita na literatura, ou esses leitores puros e um pouco forçados. Não tinha, do contrário, ilusões com respeito a informação da boa gente, os leitores que previsivelmente (ou nem tão previsivelmente) consumiriam aqueles livros invisíveis. Insistia em que eu participasse do maior número possível de prêmios, mas sugeria que como medida de precaução mudasse o titulo dos contos se com um só, por exemplo, me inscrevesse em três concursos cujos resultados saíssem mais ou menos na mesma data. Dava como exemplo sua narrativa Ao amanhecer, que eu não conhecia e que ele havia enviado a vários certames literários quase de maneira experimental, como o porquinhodaíndia destinado a testar os efeitos de uma vacina desconhecida. No primeiro concurso, o mais bem pago, Ao amanhecer foi como Ao amanhecer, no segundo concurso se apresentou como Os gaúchos, no terceiro concurso seu título era Na outra pampa, e no ultimo se chamava Sem remorsos. Ganhou no segundo e no ultimo, e com o dinheiro obtido em ambos os prêmios pode pagar um mês e meio de aluguel, em Madri os preços estavam nas nuvens. Claro, ninguém ficou sabendo que Os gaúchos e Sem remorsos eram o mesmo conto com o título mudado, mas sempre havia o risco de topar em mais de uma contenda com um mesmo jurado, oficio singular que na Espanha era exercido de forma contumaz por uma plêiade de escritores e poetas menores ou autores laureados em festas anteriores. O mundo da literatura é terrível, além de ridículo, dizia. E acrescentava que nem o repetido encontro com um mesmo jurado constituía de fato um perigo, pois estes geralmente não liam as obras apresentadas ou as liam por alto ou as liam mais ou menos. E com maior razão, dizia, quem sabe se Os gaúchos e Sem remorsos não são duas narrativas distintas cuja singularidade resida precisamente no título. Parecidas, muito parecidas até, mas distintas. A carta concluía enfatizando que o ideal seria fazer outra coisa, por exemplo viver e escrever em Buenos Aires, sobre isso poucas dúvidas tinha, mas que a realidade era a realidade, e a gente tinha que ganhar seus porotos (não sei se na Argentina o feijão e chamado de poroto, no Chile sim) e que por ora a saída era essa. É como passear pela geografia espanhola, dizia. Vou fazer sessenta anos, mas me sinto como se tivesse vinte e cinco, afirmava no fim da carta ou talvez num pósescrito. A princípio me pareceu uma declaração muito triste, mas quando a li pela segunda ou terceira vez compreendi que era como se me dissesse: quantos anos você tem, pibe? Minha resposta, eu me lembro, foi imediata. Disse que tinha vinte e oito, três a mais que ele. Naquela manhã, foi como se eu recuperasse se não a felicidade, em todo caso a energia, uma energia que se parecia muito com o humor, um humor que se parecia muito com a memória.

Não me dediquei, como me sugeria Sensini, aos concursos de contos, embora tenha participado dos últimos daqueles que ele e eu havíamos descoberto. Não ganhei nenhum, Sensini voltou a fazer uma dobradinha, em Don Benito e em Écija, com uma narrativa que se intitulava originalmente Os sabres e que em Écija se chamou Duas espadas e em Don Benito O corte mais profundo. E ganhou um prêmio secundário no concurso da rede ferroviária espanhola, o que lhe proporcionou não só dinheiro mas também um passe para viajar de graça durante um ano.

Com o tempo fui sabendo mais coisas a seu respeito. Morava num apartamento em Madri com a mulher e a filha única, de dezessete anos, chamada Miranda. Outro filho, do seu primeiro casamento, andava perdido pela América Latina ou era o que ele queria acreditar. Chamavase Gregorio, tinha trinta e cinco anos, era jornalista. Às vezes Sensini me contava das suas diligências em organismos humanitários ou vinculados aos departamentos de direitos humanos da União Europeia para averiguar o paradeiro de Gregorio. Nessas ocasiões as cartas costumavam ser pesadas, monótonas, como se mediante a descrição do labirinto burocrático Sensini exorcizasse seus próprios fantasmas. Deixei de viver com Gregorio, me disse em certa ocasião, quando o garoto tinha cinco anos. Não acrescentava mais nada, mas eu vi o Gregorio de cinco anos e vi Sensini escrevendo na redação de um jornal, e tudo era irremediável. Também me perguntei pelo nome e não sei por que cheguei a conclusão de que havia sido uma espécie de homenagem inconsciente a Gregorio Samsa. Isso, é claro, eu nunca lhe disse. Quando falava de Miranda, pelo contrário, Sensini ficava alegre, Miranda era jovem, tinha vontade de devorar o mundo, uma curiosidade insaciável e, além do mais, dizia, era linda e boa. Parece com Gregorio, dizia, só que Miranda é mulher (obviamente) e não teve que passar pelo que meu filho mais velho passou.

Pouco a pouco as cartas de Sensini foram se tornando mais extensas. Ele morava num bairro feioso de Madri, num apartamento de dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Saber que eu dispunha de mais espaço do que ele me pareceu surpreendente e também injusto. Sensini escrevia na sala, de noite, quando a senhora e a menina já estão dormindo, e abusava do tabaco. Seus rendimentos provinham de uns vagos trabalhos editoriais (creio que corrigia traduções) e dos contos que iam pelejar nas províncias. De vez em quando recebia um cheque por algum dos seus numerosos livros publicados, mas a maioria das editoras se fazia de esquecida ou havia quebrado. A única coisa que continuava dando dinheiro era Ugarte, cujos direitos pertenciam a uma editora de Barcelona. Vivia, não demorei a compreender, na pobreza, não numa pobreza absoluta mas uma pobreza de classe média baixa, de classe média desabonada e decente. Sua mulher (que ostentava o curioso nome de Carmela Zajdman) trabalhava fazendo bicos para editoras e dando aulas particulares de inglês, francês e hebraico, no entanto em mais de uma ocasião se vira obrigada a fazer faxina. A filha só se dedicava aos estudos e sua entrada na universidade era iminente. Numa das minhas cartas perguntei a Sensini se Miranda também ia se dedicar a literatura. Em sua resposta dizia: não, por Deus, a menina vai estudar medicina.

Uma noite lhe escrevi pedindo uma foto da família. Só depois de pôr a carta no correio me dei conta de que o que eu queria era conhecer Miranda. Uma semana depois chegou uma fotografia tirada certamente no parque do Retiro, onde se via um velho e uma mulher de meiaidade ao lado de uma adolescente de cabelos lisos, magra e alta, de peitos muito grandes. O velho sorria feliz, a mulher de meiaidade olhava para o rosto da filha, como se lhe dissesse alguma coisa, e Miranda fitava o fotógrafo com uma seriedade que achei comovente e inquietante. Com a foto me mandou a fotocopia de outra foto. Nesta aparecia um sujeito mais ou menos da minha idade, de traços acentuados, os lábios bem finos, os pômulos pronunciados, a testa ampla, sem dúvida um sujeito alto e forte que olhava para a câmera (era uma foto de estúdio) com segurança e talvez com uma ponta de impaciência. Era Gregorio Sensini, antes de desaparecer, aos vinte e dois anos, isto e, bem mais moco do que eu era então, mas com um ar de maturidade que o fazia parecer mais velho.

Por muito tempo a foto e a fotocopia ficaram na minha mesa de trabalho. Às vezes eu passava um bom tempo contemplandoas, outras vezes as levava para o quarto e ficava olhando para elas até adormecer. Em sua carta Sensini tinha me pedido que eu também mandasse uma foto minha. Não tinha nada recente e resolvi tirar um instantâneo na cabine de fotos da estação, naqueles anos a única de toda Girona. Mas não gostei das fotos que tirei. Eu estava feio, magro, de cabelo mal cortado. De modo que cada dia adiava o envio da foto e cada dia gastava mais dinheiro naquela máquina. Finalmente peguei uma ao acaso, enfieia num envelope com um postal e a enviei. A resposta demorou a chegar. Nesse ínterim lembro ter escrito um poema muito longo, muito ruim, cheio de vozes e de rostos que pareciam diferentes mas que eram um só, o rosto de Miranda Sensini, e que quando eu por fim podia reconhecelo, nomeálo, dizer a ele, Miranda, sou eu, o amigo epistolar do seu pai, ela dava meiavolta e saia correndo em busca do irmão, Gregorio Samsa, em busca dos olhos de Gregorio Samsa que brilhavam no fundo de um corredor em trevas onde se moviam imperceptivelmente os vultos escuros do terror latinoamericano.

A resposta foi longa e cordial. Dizia que Carmela e ele me acharam muito simpático, tal como me imaginavam, um pouco magro talvez, mas com boa aparência e que também tinham gostado do postal da catedral de Girona que esperavam ver pessoalmente dentre em breve, assim que se vissem mais desafogados de algumas contingencias econômicas e domesticas. Na carta dava por entendido que não só passariam para me ver como se hospedariam na minha casa. De passagem me ofereciam a deles quando eu quisesse ir a Madri. A casa é pobre, mas também não é limpa, dizia Sensini imitando um célebre gaúcho de tiras de quadrinhos que foi muito famoso no Cone Sul em princípios dos anos 1970. De seus afazeres literários não dizia nada. Tampouco falava dos concursos.

A princípio pensei em mandar meu poema para Miranda, mas depois de muita dúvida e hesitação decidi não fazelo. Estou ficando louco, pensei, se mando isso para Miranda acabaramse as cartas de Sensini e, aliás, com toda razão deste mundo. De modo que não mandei. Por um tempo me dediquei a descobrir regulamentos de concursos para ele. Numa carta, Sensini dizia temer que sua corda estivesse acabando. Interpretei suas palavras erroneamente, no sentido de que já não tinha certames literários bastantes para enviar suas narrativas.

Insisti em que viessem a Girona. Disse que Carmela e ele tinham minha casa a disposição, por uns dias até me obriguei a limpar, varrer, passar pano de chão e tirar a poeira dos cômodos na certeza (totalmente infundada) de que eles e Miranda estavam para chegar. Argumentei que com o bilhete em aberto da rede ferroviária na realidade só precisariam comprar duas passagens, uma para Carmela e outra para Miranda, e que a Catalunha tinha coisas maravilhosas a oferecer ao viajante. Falei de Barcelona, de Olot, da Costa Brava, dos dias felizes que sem dúvida passaríamos juntos. Numa longa carta de resposta, na qual me agradecia pelo convite, Sensini me informava que por ora não podiam sair de Madri. A carta, pela primeira vez, era confusa, mas lá pela metade punhase a falar dos prêmios (creio que havia ganhado outro) e me incitava a não esmorecer e continuar participando. Nessa parte da carta também falava do oficio de escritor, da profissão, e tive a impressão de que as palavras que ele vertia eram em parte para mim, em parte um lembrete que fazia para si mesmo. O resto, como já disse, era confuso. Ao terminar de ler tive a impressão de que alguém da sua família não estava bem de saúde.

Dois ou três meses depois recebi a notícia de que provavelmente haviam encontrado o cadáver de Gregorio num cemitério clandestino. Em sua carta, Sensini era econômico em expressões de dor, só me dizia que tal dia, a tal hora, um grupo de legistas, membros de organizações de direitos humanos, uma vala comum com mais de cinquenta cadáveres de jovens etc. Pela primeira vez não tive vontade de lhe escrever. Gostaria de haver telefonado, mas acho que ele nunca teve telefone e, se teve, eu não sabia o número. Minha resposta foi sucinta. Disse que sentia muito, aventurei a possibilidade de que talvez o cadáver de Gregorio não fosse o cadáver de Gregorio.

Depois chegou o verão e fui trabalhar num hotel da costa. Em Madri esse verão foi prodigo em conferencias, cursos, atividades culturais de toda índole, mas Sensini não participou de nenhuma delas, e se participou de alguma o jornal que eu lia não noticiou.

Em fins de agosto mandeilhe um cartãopostal. Dizia que provavelmente quando a temporada acabasse ia lhe fazer uma visita. Mais nada. Quando voltei a Girona, em meados de setembro, entre a pouca correspondência acumulada debaixo da porta encontrei uma carta de Sensini datada de 7 de agosto. Era uma carta de despedida. Dizia que voltava para a Argentina, que com a democracia ninguém mais ia impedilo de fazer o que quer que fosse e que portanto era inútil permanecer mais tempo fora. Além disso, se quisesse ter certeza do destino final de Gregorio, não tinha outro jeito senão voltar. Carmela, claro, volta comigo, mas Miranda fica. Escrevi imediatamente para ele, para o único endereço que tinha, mas não recebi resposta.

Pouco a pouco fui me acostumando a ideia de que Sensini havia voltado para sempre para a Argentina e que se não me escrevesse de lá podia dar por encerrada nossa relação epistolar. Por muito tempo esperei sua carta ou assim creio agora, ao recordar. A carta de Sensini, claro, não chegou nunca. A vida em Buenos Aires, me consolei, devia ser rápida, explosiva, sem tempo para nada, só para respirar e pestanejar. Tornei a escrever ao endereço que tinha de Madri, com a esperança de que fizessem a carta chegar a Miranda, mas ao fim de um mês o correio a devolveu por ser o destinatário desconhecido no endereço. De modo que desisti, deixei os dias passarem e fui me esquecendo de Sensini, mas quando ia a Barcelona, muito de vez em quando, às vezes me enfiava tardes inteiras nos sebos e procurava seus livros, os livros que eu conhecia de nome e que nunca leria. Mas nas livrarias só encontrei velhos exemplares de Ugarte e de seu livro de contos publicado em Barcelona e cuja editora havia pedido concordata, quase como um sinal dirigido a Sensini, dirigido a mim.

Um ou dois anos depois soube que ele tinha morrido. Não sei em que jornal li a notícia. Talvez não a tenha lido em lugar nenhum, talvez tenham me contado, mas não me lembro de ter falado naqueles dias com gente que o conhecesse, de modo que provavelmente devo ter lido em algum lugar a notícia da sua morte. Ela foi sucinta: o escritor argentino Luis Antonio Sensini, exilado durante alguns anos na Espanha, morreu em Buenos Aires. Creio que também mencionavam, no fim, Ugarte. Não sei por quê, a notícia não me impressionou. Não sei por que, o fato de Sensini voltar a Buenos Aires para morrer me pareceu lógico.

Tempos depois, quando a foto de Sensini, Carmela e Miranda e a fotocópia da foto de Gregorio repousavam com minhas outras lembranças numa caixa de papelão que por algum motivo que prefiro não investigar ainda não queimei, bateram na porta da minha casa. Devia ser meianoite, mas eu estava acordado. A campainha, no entanto, me sobressaltou. Nenhuma das poucas pessoas que eu conhecia em Girona teria ido a minha casa a não ser que acontecesse algo fora do normal. Ao abrir deparei com uma mulher de cabelos compridos sob um grande casaco preto. Era Miranda Sensini, mas os anos transcorridos desde que seu pai me mandou a foto não haviam passado em vão. Ao lado dela estava um sujeito louro, alto, de cabelo comprido e nariz adunco. Sou Miranda Sensini, disse com um sorriso. Eu sei, disse eu e convideios a entrar. Iam de viagem à Itália e depois pensavam em cruzar o Adriático rumo à Grécia. Como não tinham muito dinheiro, viajavam pedindo carona. Naquela noite dormiram na minha casa. Fiz alguma coisa para eles jantarem. O sujeito se chamava Sebastian Cohen e também havia nascido na Argentina, mas desde muito jovem vivia em Madri. Ele me ajudou a aprontar o jantar enquanto Miranda inspecionava a casa. Faz muito tempo que você a conhece?, perguntou. Até este instante só a tinha visto em foto, respondi.

Depois do jantar preparei um quarto para eles e disse que podiam ir para a cama quando quisessem. Também pensei em me retirar para meu quarto e dormir, mas compreendi que ia ser difícil, se não impossível, e assim, quando supus que já estavam dormindo, desci ao térreo e liguei a teve, com o volume baixinho, e fiquei pensando em Sensini.

Pouco depois ouvi passos na escada. Era Miranda. Ela também não conseguia dormir. Sentou ao meu lado e me pediu um cigarro. No início falamos da sua viagem, de Girona (passaram o dia todo na cidade, não perguntei por que haviam chegado tão tarde em casa), das cidades que pretendiam visitar na Itália. Depois falamos de seu pai e de seu irmão. Segundo Miranda, Sensini nunca se recobrou da morte de Gregorio. Voltou para procurálo, embora todos soubéssemos que estava morto. Carmela também?, perguntei. Todos, disse Miranda, menos ele. Perguntei como tinha sido para ele na Argentina. Igual aqui, disse Miranda, igual em Madri, igual em toda parte. Mas na Argentina era benquisto, disse eu. Igual aqui, disse Miranda. Peguei uma garrafa de conhaque na cozinha e lhe ofereci um trago. Você está chorando, disse Miranda. Quando olhei para ela, desviou o olhar. Estava escrevendo?, perguntou. Não, vendo televisão. Quero dizer, quando Sebastian e eu chegamos, disse Miranda, você estava escrevendo? Sim, disse. Narrativas? Não, poemas. Ah, fez Miranda. Bebemos em silencio por um bom momento, olhando as imagens em branco e preto da televisão. Me diga uma coisa, falei, por que seu pai deu o nome de Gregorio ao Gregorio? Por causa de Kafka, claro, disse Miranda. Por causa de Gregorio Samsa? Claro, disse Miranda. Era o que eu supunha, disse eu. Depois Miranda me contou em linhas gerais os últimos meses de Sensini em Buenos Aires.

Ele havia partido de Madri já doente e contra a opinião de vários médicos argentinos que o tratavam de graça e que inclusive tinham lhe conseguido umas internações nos hospitais da Previdência Social. O reencontro com Buenos Aires foi doloroso e feliz. Desde a primeira semana se mexeu para tentar descobrir o paradeiro de Gregorio. Quis voltar para a universidade mas, entre tramites burocráticos e invejas e rancores dos de sempre, o acesso lhe foi negado e ele teve que se conformar em fazer traduções para algumas editoras. Carmela, pelo contrário, conseguiu trabalho como professora e nos últimos tempos viveram exclusivamente com o que ela ganhava. Toda semana Sensini escrevia a Miranda. Segundo esta, seu pai se dava conta de que lhe restava pouca vida e em certas ocasiões até parecia ansioso por esgotar de uma vez por todas as últimas reservas e enfrentar a morte. Quanto a Gregorio, nenhuma notícia foi concludente. Segundo alguns legistas, seu corpo podia estar entre o monte de ossos exumados daquele cemitério clandestino, mas para maior segurança devia se fazer um exame de DNA, porem o governo não tinha verba ou não tinha vontade de que se fizesse o exame, e este ia se atrasando cada dia um pouco mais. Também se esforçou por encontrar uma moca, uma provável companheira que Goyo teria tido na clandestinidade, mas a moça não apareceu. Depois sua saúde se agravou e ele teve que ser hospitalizado. Nem escrevia mais, disse Miranda. Para ele era muito importante escrever todos os dias, em qualquer condição. Sim, disse a ela, acho que era mesmo. Depois perguntei se em Buenos Aires chegou a participar de algum concurso. Miranda olhou para mim e sorriu. Ah, você era aquele que participava dos concursos com ele, ele te conheceu num concurso. Pensei que tinha meu endereço pela simples razão de que tinha todos os endereços do seu pai, mas só naquele momento ela tinha me identificado. Eu sou o dos concursos, disse. Miranda serviuse de mais conhaque e disse que durante um ano seu pai tinha falado bastante de mim. Notei que me fitava de outra maneira. Devo telo importunado bastante, falei. Que é isso, disse ela, que importunalo o que, ele adorava suas cartas, sempre as lia para nós, para minha mãe e para mim. Espero que tenham sido divertidas, falei sem muita convicção. Eram divertidíssimas, disse Miranda, minha mãe até os apelidou. Apelidou? Quem? Meu pai e você, ela os chamava de os pistoleiros ou os caçadores de recompensas, não me lembro mais, uma coisa assim, caçadores de escalpos. Imagino por que, disse eu, mas creio que o verdadeiro caçador de recompensas era seu pai, eu só lhe passava um ou outro dado. Sim, ele era um profissional, disse Miranda subitamente seria. Quantos prêmios chegou a ganhar?, perguntei. Uns quinze, disse ela com ar ausente. E você? Eu, por ora só um. Um prêmio menor em Alcoy, graças ao qual conheci seu pai. Sabe que Borges uma vez escreveu uma carta para ele, em Madri, onde comentava um dos seus contos?, ela perguntou olhando para seu conhaque. Não, não sabia, disse eu. E Cortázar também escreveu sobre ele, e Mujica Lainez também. É que ele era um escritor muito bom, disse eu. Não sacaneie, disse Miranda e se levantou e saiu ao quintal, como se eu tivesse dito uma coisa que a houvesse ofendido. Deixei passar uns segundos, peguei a garrafa de conhaque e a segui. Miranda estava debruçada no parapeito vendo as luzes de Girona. Bonita vista você tem daqui, disse ela. Enchi seu copo, enchi o meu, e ficamos um tempo admirando a cidade iluminada pela lua. De repente me dei conta de que já estávamos em paz, de que por alguma razão misteriosa tínhamos conseguido juntos ficar em paz e que daí em diante as coisas imperceptivelmente começariam a mudar. Como se o mundo, de verdade, se movesse. Perguntei que idade tinha. Vinte e dois, respondeu. Então eu devo ter mais de trinta, falei, e até minha voz soou estranha.


ROBERTO BOLAÑO, Chamadas Telefônicas, Companhia das Letras, 2012
Tradução: Eduardo Brandão