o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015


FIM ELEGANTE DE ANNE SEXTON

ela tirou os anéis dos dedos
vestiu um casaco de pele
fechou as portas atrás dela
sentou no velho Cougar
virou a chave na ignição
bebeu vodca ligou o rádio
acelerou tudo que pode
fez um grande desvio
me pegou numa curva
quando chegarmos lá
descerão os escafandros
de volta ao vivo silêncio
colidir de frente esquecer


ney ferraz paiva
miranda lichtenstein

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015


ECOS DE BLANCHOT & MAX


Contentar-se com os homens, manter a casa aberta com seu coração, isso é liberal, mas isso é meramente liberal. Reconhecem-se os corações que são capazes de uma nobre hospitalidade nas muitas janelas cobertas por cortinas e nas persianas fechadas: eles mantêm seus melhores lugares vazios. Mas por quê? - Porque esperam os hospedes com os quais não "se contentam"...
NIETZSCHE, "Incursões de um extemporâneo", Crepúsculo dos Ídolos.


Não há espaço, sem tempo. Não há tal coisa como espaço em branco. Sempre se poderá imaginar a vinda – a chegada. Que alguma coisa ainda esteja por acontecer. Dois homens, um romancista & um poeta, venham estabelecer paralelamente um passível jogo. Que estejam tensos, pois o tempo constitui a tensão. Espaço-tempo se abrindo em dois. A respiração realizada entre um & outro evoca um tempo de silêncio, um espaço de silêncio – a literatura. Um dos homens atende à porta. Olha para baixo. A cabeça inclinada para o chão como um guardião na sala da hospedaria do Castelo. Apenas que aqui ele não está num retrato. Observado, sua imagem não o confirma numa morfologia para os olhos, essa que se tornará o Demônio de uma longa época. Um certo estrabismo a certa semiótica da reflexividade. Ele se desprende da foto sem, no entanto avançar no espaço. O outro, frente à porta semiaberta, não questiona a importância de ficar parado, uma vez que veio até ali por também estar há muito imóvel e recolhido em si. Sem rasgar a ilusão de espaço, na distância limite em que um pode saltar até o outro e apertarem-se as mãos: ocorre o duplo desvio. As mãos estendidas e abertas em silêncio criam lacunas, desprendem-se, desvanecem. Eles que sempre estiveram além do horizonte da aparência, agora, face a face, não têm como pronunciar um discurso de circunstância e lançar âncora entre os musgos. Só um rastreou o outro, é verdade, mas sem nunca o mapear. Leu “Thomas, o Obscuro” quando ainda escrevia seu segundo livro e entregava-se definitivamente à feitiçaria do poema. O outro nunca o avistou. Esse poderia ser o cenário tardio entre os dois homens. A respiração para eles sempre foi o maior problema. Passeando a vida, o fim à vista. O desastre sempre cuidou de tudo. Mesmo um rápido sorriso corajoso não os salvaria da iminente queda. Antes a não aquiescência da cabeça. Um olhar reto. Tudo que assusta o inferno dentro deles. Por certo, ele, ao abrir a porta, deveria estar dizendo que teria gostado de ler com minúcia e atenção insuplantáveis o Anti-Retrato ou o Caminho de Marahu. A escrita do desterro que tanto o agradou sempre. Teria visto Kafka & Paul Celan, em alguns versos e gostado. A experiência do desmoronamento. Os signos da solidão. A falta vivente do ser. Essa não teria sido exatamente a escrita desse outro que, alheio, estranho, lhe bate à porta, num fim de outono? E que talvez seja o mesmo que dizer: desde que entrou para a poesia? O homem de uma terra desfalecente, onde a vida e a cultura não passam de uma quimera? Onde o poema, justamente depois do amplo movimento internacional de três poetas, passa a valer bem menos que qualquer slogan publicitário? Ele, fora do mercado, ter que ganhar a vida – trocar, vender, perder, dar, recuperar, perder outra vez. Amores & alegrias insensatas. As grandes dores. E daí ser impelido a dar largos passos em direção ao ócio e ao silêncio – o desvio. Para quem a amizade pela poesia não se constituiu em ter que percorrer caminhos já abertos. Amizade pela poesia é mudar o caminho. Errá-lo. Ir. Não entrar na geração. Surpreendê-la pelos flancos. Sobretudo não esperar que se confirme a Revelação. E como aquelas doze badaladas a que Nietzsche se refere que contamos sempre errado... não há o encontro marcado, sequer conosco mesmo... “Mas como eu, ele foi parecido comigo”. De onde poderá ter ecoado isso?





Ney Ferraz Paiva
Imagem: ney ferraz paiva, "blanchot recebe max", colagem 40x30 cm, 2016.


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

EU PENSO O POEMA COM VOCÊ


de dentro da chuva viajo a Pernambuco
meto a perna pelos pés nessa distância
que há entre nós dois Cavaleiro Negro
sentado em falso na pedra cavalo que
passa raspando & de fino no abismo
desbaratado caído da linha do poema
daí avistas o mar? te perdes de vista?
com sede entre palavras me esperas?
ou é mera coincidência não estais nem
aí? saiba que por ti escrevo estes mal
traçados versos rabiscos quase nada
que se leve à sério confrontados à pedra
pouco parecem contigo de tão almejado
quem sabe um dia consigo me esmero
assisto aulas com Valéry ou Mallarmé
repudio Gaudí vou visitar contigo ermos
cemitérios anotar secretos pesadelos
não escreverei mais sem o teu consenti-
mento seja a mim dado a graça inútil do
deserto lâmina que consideras a melhor





ney ferraz paiva
foto: João Cabral de Melo Neto em viagem
ao interior de Pernambuco, 1984

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015


ENCONTRO ENTRE CAUBY CRUZ E OSWALDO GOELDI

O silêncio, e o que mais aconteça.
Antonio Gamoneda

Começo o meu relato. Um rascunho. Um esboço. Uma atmosfera. Vou tentar aproximar alguns turnos de escrita e gravura. Cauby Cruz e Oswaldo Goeldi. Tantas histórias houve, há entre eles. É só deixar haver. O rosto, o traço. Ver que estão num mesmo sonho. Neste sonho é sempre noite. Num primeiro momento pressente-se o lugar, e a textura desolada da paisagem se abre sobre dorsos de corpos que vagam como espectros, vivendo de pequenos afazeres, bicos, ocupações incertas e daí de volta ao mais miserável dos quartos. O legado sombrio que se esparrama pelo mundo e pela história que os cerca. O legado que nada deixa além da escuridão. Uma espécie de errância fundamental paira sobre eles e o mundo deles. Depois da porta, há a noite, através da qual os indeléveis passos vão se tornando progressivamente mais intensos, tentando culminar num desfecho. Mas o mundo de sombras permanece inescrutável. Todos seguem ligados aos mesmos destroços da noite. Estamos no distante centro de uma cidade que é toda ela um submundo. Virada contra si mesma. Sem respirar o tempo presente e deteriorada pelo futuro. Apagada de sua própria vida. Tudo é operado para que a cidade não surja de dentro do habitante. No sonho, como na vida, o enredo pode resultar um curto-circuito... De repente, surge um homem sobre um trecho de trilhos, ele assinala para a locomotiva que se aproxima e que nem em cem anos vai tornar-se um TGV (sigla do trem-bala francês). Move no breu o braço inútil. No sonho, ele é o poeta. Pelo avesso, na vida, nós somos ele. No sonho, que permanece noite, o homem e a máquina refletem a ordem e a conexão vigente de uma realidade injusta. Noutro ponto da paisagem, outro homem ostenta um guarda chuva vermelho aberto. Uma cena que não se refere ainda a um alerta das previsões climáticas. Antes, perscruta todo cenário de mudança, transformação ao mesmo tempo criadora, intelectual e artística, e que talvez acentue ainda mais o contexto de espera inquietante. A chuva surpreende e aprisiona a um canto, como um perigo que está progredindo. Não se sabe o que é, está apenas lá, de longe, com as garras abertas. Um vislumbre. Uma fantasmagoria. “O inseto em si não pode ser mostrado”, opina Kafka. A forma como o artista, e sobretudo o escritor, se envolve com a própria criação o vincula ao mundo que avista. Cauby se retirou por mais de vinte anos para escrever – e escrevendo fez cessar a escrita. Escrever é um aborrecimento. Logo ao se iniciar deve-se retomar o silêncio. Goeldi, que nunca foi um buscador, um que estivesse à procura, tornou-se cada vez mais recuado e distante. “Tão solitário, Goeldi!”, grita Drummond. Fez longa carreira pelo mundo, ainda que o mundo lhe fosse um lugar distante, de poucas e raras aproximações. Como Cauby, sentia-se à parte da confraria. Com efeito, criar não é nada dócil, mesmo se a criação for gentilmente autorizada pelos herdeiros, mesmo se patrocinadores institucionais forem honrados (e ironia maior: ainda bem que no nosso caso não são, não podem ser, nos impõem a fazer e pronto!) ou se por uma série de razões se concorda em não pensar no assunto – sem se mover do luto, da vergonha, do pudor, saudosos de todos os falecimentos. E joga-se os velhos jogos. E fica-se do lado da lei. E toma-se parte do mesmo núcleo da moral oficial & do poder. E a arte vira esse lugar de cavaleiros pomposos. Arte Filosofia Religião Ciência produzidas em cadeia para abastecer os mercados da beleza e do cosmético, da diversão e do laser, do luxo e do bom gosto exacerbado - dominador - amado - cultuado. O convite de Cauby e de Goeldi é outro: não apenas sentir a verdade na carne; ela como algo mantida conservada em álcool – e sim de forma nietzschiana: a verdade devorada nos rituais da fome... “sofrer a mesma fome” (Cauby nos impele), engolir e ser engolido na longa noite de antropofagia que é o paraíso...


 





Ney Ferraz Paiva

Belém, janeiro, 2015.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015


A LOUCURA SEM REPOUSO
Toda doença pode ser chamada doença da alma.
Novalis


aqui sobre a mesa à nossa
frente está Berna Reale
a paisagem de uma cidade
enfermaria a céu aberto
é feita de carne
deteriora despedaça separa
arrasa como uma sombra no
pulmão
tosses suores asfixias
em busca de ar fresco
pessoas descem ruas
mercados rios praças
uma musculatura louca
também isso a arte faz
traz cadáveres à rua
pra revoar os pássaros do
horror
deixar falar os balbucios do
medo
os braços da morte não estão
mais
cruzados diante do espectador
aonde essa doença vai dar
sem penicilina & cânfora
a um sem-número de nãos?
a uma dor mais intensa?
aqui sobre a mesa à nossa
frente está Berna Reale
o corpo nu sem respiração
ligado à loucura & à morte
ainda assim quer viver
absorto em seu mal
quer seguir respirando
aspirar o ar necessário
pra nunca mais precisar
voltar à superfície




ney ferraz paiva