o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015


FIM ELEGANTE DE ANNE SEXTON

ela tirou os anéis dos dedos
vestiu um casaco de pele
fechou as portas atrás dela
sentou no velho Cougar
virou a chave na ignição
bebeu vodca ligou o rádio
acelerou tudo que pode
fez um grande desvio
me pegou numa curva
quando chegarmos lá
descerão os escafandros
de volta ao vivo silêncio
colidir de frente esquecer


ney ferraz paiva
miranda lichtenstein

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015


ECOS DE BLANCHOT & MAX


Contentar-se com os homens, manter a casa aberta com seu coração, isso é liberal, mas isso é meramente liberal. Reconhecem-se os corações que são capazes de uma nobre hospitalidade nas muitas janelas cobertas por cortinas e nas persianas fechadas: eles mantêm seus melhores lugares vazios. Mas por quê? - Porque esperam os hospedes com os quais não "se contentam"...
NIETZSCHE, "Incursões de um extemporâneo", Crepúsculo dos Ídolos.


Não há espaço, sem tempo. Não há tal coisa como espaço em branco. Sempre se poderá imaginar a vinda – a chegada. Que alguma coisa ainda esteja por acontecer. Dois homens, um romancista & um poeta, venham estabelecer paralelamente um passível jogo. Que estejam tensos, pois o tempo constitui a tensão. Espaço-tempo se abrindo em dois. A respiração realizada entre um & outro evoca um tempo de silêncio, um espaço de silêncio – a literatura. Um dos homens atende à porta. Olha para baixo. A cabeça inclinada para o chão como um guardião na sala da hospedaria do Castelo. Apenas que aqui ele não está num retrato. Observado, sua imagem não o confirma numa morfologia para os olhos, essa que se tornará o Demônio de uma longa época. Um certo estrabismo a certa semiótica da reflexividade. Ele se desprende da foto sem, no entanto avançar no espaço. O outro, frente à porta semiaberta, não questiona a importância de ficar parado, uma vez que veio até ali por também estar há muito imóvel e recolhido em si. Sem rasgar a ilusão de espaço, na distância limite em que um pode saltar até o outro e apertarem-se as mãos: ocorre o duplo desvio. As mãos estendidas e abertas em silêncio criam lacunas, desprendem-se, desvanecem. Eles que sempre estiveram além do horizonte da aparência, agora, face a face, não têm como pronunciar um discurso de circunstância e lançar âncora entre os musgos. Só um rastreou o outro, é verdade, mas sem nunca o mapear. Leu “Thomas, o Obscuro” quando ainda escrevia seu segundo livro e entregava-se definitivamente à feitiçaria do poema. O outro nunca o avistou. Esse poderia ser o cenário tardio entre os dois homens. A respiração para eles sempre foi o maior problema. Passeando a vida, o fim à vista. O desastre sempre cuidou de tudo. Mesmo um rápido sorriso corajoso não os salvaria da iminente queda. Antes a não aquiescência da cabeça. Um olhar reto. Tudo que assusta o inferno dentro deles. Por certo, ele, ao abrir a porta, deveria estar dizendo que teria gostado de ler com minúcia e atenção insuplantáveis o Anti-Retrato ou o Caminho de Marahu. A escrita do desterro que tanto o agradou sempre. Teria visto Kafka & Paul Celan, em alguns versos e gostado. A experiência do desmoronamento. Os signos da solidão. A falta vivente do ser. Essa não teria sido exatamente a escrita desse outro que, alheio, estranho, lhe bate à porta, num fim de outono? E que talvez seja o mesmo que dizer: desde que entrou para a poesia? O homem de uma terra desfalecente, onde a vida e a cultura não passam de uma quimera? Onde o poema, justamente depois do amplo movimento internacional de três poetas, passa a valer bem menos que qualquer slogan publicitário? Ele, fora do mercado, ter que ganhar a vida – trocar, vender, perder, dar, recuperar, perder outra vez. Amores & alegrias insensatas. As grandes dores. E daí ser impelido a dar largos passos em direção ao ócio e ao silêncio – o desvio. Para quem a amizade pela poesia não se constituiu em ter que percorrer caminhos já abertos. Amizade pela poesia é mudar o caminho. Errá-lo. Ir. Não entrar na geração. Surpreendê-la pelos flancos. Sobretudo não esperar que se confirme a Revelação. E como aquelas doze badaladas a que Nietzsche se refere que contamos sempre errado... não há o encontro marcado, sequer conosco mesmo... “Mas como eu, ele foi parecido comigo”. De onde poderá ter ecoado isso?





Ney Ferraz Paiva
Imagem: ney ferraz paiva, "blanchot recebe max", colagem 40x30 cm, 2016.


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

EU PENSO O POEMA COM VOCÊ


de dentro da chuva viajo a Pernambuco
meto a perna pelos pés nessa distância
que há entre nós dois Cavaleiro Negro
sentado em falso na pedra cavalo que
passa raspando & de fino no abismo
desbaratado caído da linha do poema
daí avistas o mar? te perdes de vista?
com sede entre palavras me esperas?
ou é mera coincidência não estais nem
aí? saiba que por ti escrevo estes mal
traçados versos rabiscos quase nada
que se leve à sério confrontados à pedra
pouco parecem contigo de tão almejado
quem sabe um dia consigo me esmero
assisto aulas com Valéry ou Mallarmé
repudio Gaudí vou visitar contigo ermos
cemitérios anotar secretos pesadelos
não escreverei mais sem o teu consenti-
mento seja a mim dado a graça inútil do
deserto lâmina que consideras a melhor





ney ferraz paiva
foto: João Cabral de Melo Neto em viagem
ao interior de Pernambuco, 1984

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015


ENCONTRO ENTRE CAUBY CRUZ E OSWALDO GOELDI

O silêncio, e o que mais aconteça.
Antonio Gamoneda

Começo o meu relato. Um rascunho. Um esboço. Uma atmosfera. Vou tentar aproximar alguns turnos de escrita e gravura. Cauby Cruz e Oswaldo Goeldi. Tantas histórias houve, há entre eles. É só deixar haver. O rosto, o traço. Ver que estão num mesmo sonho. Neste sonho é sempre noite. Num primeiro momento pressente-se o lugar, e a textura desolada da paisagem se abre sobre dorsos de corpos que vagam como espectros, vivendo de pequenos afazeres, bicos, ocupações incertas e daí de volta ao mais miserável dos quartos. O legado sombrio que se esparrama pelo mundo e pela história que os cerca. O legado que nada deixa além da escuridão. Uma espécie de errância fundamental paira sobre eles e o mundo deles. Depois da porta, há a noite, através da qual os indeléveis passos vão se tornando progressivamente mais intensos, tentando culminar num desfecho. Mas o mundo de sombras permanece inescrutável. Todos seguem ligados aos mesmos destroços da noite. Estamos no distante centro de uma cidade que é toda ela um submundo. Virada contra si mesma. Sem respirar o tempo presente e deteriorada pelo futuro. Apagada de sua própria vida. Tudo é operado para que a cidade não surja de dentro do habitante. No sonho, como na vida, o enredo pode resultar um curto-circuito... De repente, surge um homem sobre um trecho de trilhos, ele assinala para a locomotiva que se aproxima e que nem em cem anos vai tornar-se um TGV (sigla do trem-bala francês). Move no breu o braço inútil. No sonho, ele é o poeta. Pelo avesso, na vida, nós somos ele. No sonho, que permanece noite, o homem e a máquina refletem a ordem e a conexão vigente de uma realidade injusta. Noutro ponto da paisagem, outro homem ostenta um guarda chuva vermelho aberto. Uma cena que não se refere ainda a um alerta das previsões climáticas. Antes, perscruta todo cenário de mudança, transformação ao mesmo tempo criadora, intelectual e artística, e que talvez acentue ainda mais o contexto de espera inquietante. A chuva surpreende e aprisiona a um canto, como um perigo que está progredindo. Não se sabe o que é, está apenas lá, de longe, com as garras abertas. Um vislumbre. Uma fantasmagoria. “O inseto em si não pode ser mostrado”, opina Kafka. A forma como o artista, e sobretudo o escritor, se envolve com a própria criação o vincula ao mundo que avista. Cauby se retirou por mais de vinte anos para escrever – e escrevendo fez cessar a escrita. Escrever é um aborrecimento. Logo ao se iniciar deve-se retomar o silêncio. Goeldi, que nunca foi um buscador, um que estivesse à procura, tornou-se cada vez mais recuado e distante. “Tão solitário, Goeldi!”, grita Drummond. Fez longa carreira pelo mundo, ainda que o mundo lhe fosse um lugar distante, de poucas e raras aproximações. Como Cauby, sentia-se à parte da confraria. Com efeito, criar não é nada dócil, mesmo se a criação for gentilmente autorizada pelos herdeiros, mesmo se patrocinadores institucionais forem honrados (e ironia maior: ainda bem que no nosso caso não são, não podem ser, nos impõem a fazer e pronto!) ou se por uma série de razões se concorda em não pensar no assunto – sem se mover do luto, da vergonha, do pudor, saudosos de todos os falecimentos. E joga-se os velhos jogos. E fica-se do lado da lei. E toma-se parte do mesmo núcleo da moral oficial & do poder. E a arte vira esse lugar de cavaleiros pomposos. Arte Filosofia Religião Ciência produzidas em cadeia para abastecer os mercados da beleza e do cosmético, da diversão e do laser, do luxo e do bom gosto exacerbado - dominador - amado - cultuado. O convite de Cauby e de Goeldi é outro: não apenas sentir a verdade na carne; ela como algo mantida conservada em álcool – e sim de forma nietzschiana: a verdade devorada nos rituais da fome... “sofrer a mesma fome” (Cauby nos impele), engolir e ser engolido na longa noite de antropofagia que é o paraíso...


 





Ney Ferraz Paiva

Belém, janeiro, 2015.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015


A LOUCURA SEM REPOUSO
Toda doença pode ser chamada doença da alma.
Novalis


aqui sobre a mesa à nossa
frente está Berna Reale
a paisagem de uma cidade
enfermaria a céu aberto
é feita de carne
deteriora despedaça separa
arrasa como uma sombra no
pulmão
tosses suores asfixias
em busca de ar fresco
pessoas descem ruas
mercados rios praças
uma musculatura louca
também isso a arte faz
traz cadáveres à rua
pra revoar os pássaros do
horror
deixar falar os balbucios do
medo
os braços da morte não estão
mais
cruzados diante do espectador
aonde essa doença vai dar
sem penicilina & cânfora
a um sem-número de nãos?
a uma dor mais intensa?
aqui sobre a mesa à nossa
frente está Berna Reale
o corpo nu sem respiração
ligado à loucura & à morte
ainda assim quer viver
absorto em seu mal
quer seguir respirando
aspirar o ar necessário
pra nunca mais precisar
voltar à superfície




ney ferraz paiva

domingo, 14 de dezembro de 2014

Para Um Retrato de Cauby Cruz Considerações Sobre Um Retrato



Este trabalho retoma a poesia de Cauby Cruz, atravessa-a, faz ecoá-la – mas também lida com o embargo e o silêncio em torno dela. O próprio poeta surpreendido e desconfortável na sua mudez. Ofuscado pelos notáveis concorrentes, tão opostos a seu pequeno fracasso. Engessado em seu único livro, abriu-se um programa póstumo para ele. Em todo caso, procuro uma fala outra que daí se desprenda, e consiga tecer (ou destecer) o idioma de dias ainda tomados por tantas derivas artísticas, os anos 1940 e meados de 1950 em Belém. Um período notável prefigurativo de grandes obras literárias: Chove nos Campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir, 1941, A Linha Imaginária, de Ruy Barata, 1951, O Estranho, de Max Martins, 1952, O Homem e Sua Hora, de Mário Faustino, 1955. Tempo de companheirismos e aproximações, mas também de distanciamentos e rivalidades literárias entre jovens colegas – Ruy Barata, Max Martins, Jurandir Bezerra, Mário Faustino, Benedito Nunes, Alonso Rocha, Cauby Cruz. O liame de uma desconexão. Este o tênue mote deste trabalho, que pretende fazer um perfil biográfico com pitadas de ensaio, no qual se procura questionar as relações tradicionais entre poesia, imagem, fotografia, a partir dos termos críticos presentes no livro Filosofia da Caixa Preta – Ensaios Para uma Futura Filosofia da Fotografia, de Vilém Flusser. Uma espécie de reaparição no espaço de renovadas questões, como se algo se devolvesse, se mostrasse de volta no processo de aproximação e acolhimento entre literatura e fotografia e dos seus imprevisíveis desdobramentos. Um aparte talvez disperso no burburinho – um desvio no desvio, um desnível de fluidez do acontecimento. Mas que acontecimento? Tornar-se alguém que escreve... A paixão de juventude pela poesia... o quanto essa respiração amigável tende a expelir, somados os anos, o estático, estreito, asfixiante – para que se possa ir longe. Mas para Cauby, o que resultou disso, a única aparência que lhe restou, é a do escritor que passa toda uma vida sem escrever. Então não seria melhor dizer que o que daí se desprende são expectativas e ilusões deslocadas, recambiadas, transferidas? A passagem dos anos 1940-1950 e seus monstros legendários – o pós-guerra, as grandes incertezas existenciais, a crise aguda da modernidade. Há por aí indícios. Rastros. Sortilégios. Todo retorno é sempre um ponto de partida. O presente e o passado nos povoam. Ouçamos as vozes – o que elas não temem, falam, passam de suas cartas terríveis, suas fotografias perigosas... É com elas que pretendo compor um mosaico, sempre díspar, do ambiente simples e rudimentar, árido e ermo; dos tons de uma cultura e de uma época; e do aspecto das sombras que Oswaldo Goeldi extraiu da mesma paisagem onde Cauby Cruz viveu e pretendeu desenvolver seu projeto de escrita, e que inapelavelmente sucumbiu. Entre retomada e inacabamento. A obra sem trajetória e sem cronologia, corroída no tempo e no espaço do discurso, e que se coloca a falar de outro modo, a mostrar-se sem se manter o mesmo: viajante incondicional, boêmio, jogador, que escapou cada vez mais de ser poeta. Um contemporâneo que não contemporiza, não apazigua, não é entrega – é resistência, sobretudo aos modelos disponíveis de interpretação. Rompe com a acumulação de valores instrumentais e almeja outra memória – a do irracional, corporal e primitivo.


 


Ney Ferraz Paiva
* Projeto contemplado na 13ª edição da Bolsa de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação Artística do Instituto de Artes do Pará – 2014.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

POR QUE ELE NÃO DIZ NADA NO RETRATO?


Adorno senta para se fotografar
(ele não está exatamente sentado
ele não está exatamente em pé)
acho engraçado ele parece um pato
encoberto por uma camada de piche
uma ave austera emplumada
a câmera capta o corpo falso
encapsulado fixo na moldura
uma ave que jamais vai voar –
senta-se no quadro em que
Dürer retratou a Melancolia



 

ney ferraz paiva

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

DIGA-SE ENTRE PARÊNTESES

(lembro-me de ter sido convidado
por um grupo de artistas de circo
a me deixar enforcar pelo elefante
faminto no centro do picadeiro)

(sem ensaio truque combinação
seria o número principal da noite
alguém anunciou pelo alto-falante
a coragem de fazer o que não sabia)

(você se dobrou de rir do meu medo
não tive como não decepcionar
terminantemente opostos os destinos
do elefante e do poeta no picadeiro)



ney ferraz paiva
Mary Ellen Mark

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

CARTA AOS LEITORES



Nem mesmo a literatura é capaz de suster tanta
paixão que faz vibrar o leito e o seio e os
recônditos lugares a dizer: eu, eu, eu ou outro
nome qualquer que me arraste úmida
menstruada e inutilmente repetindo as
esquivas figuras da véspera. Mais uma
vez me reclino bêbada sobre teus
órgãos delicados. As palavras escorrem
como líquidos lubrificando as passagens
ressentidas. Murmúrios sofridos: nunca
te senti tão longe, nunca gritei assim por
ti, nunca o teu corpo coube assim no
meu. Murmuro nome e corpos e
conheço a tristeza desse erotismo
abandonado entre as sequelas de uma
rede. Rabisco meus órgãos, recupero a
fêmea entre sílabas, o varão
despido do varonil apreço mas
não verto tua presença
menstruo tua presença
ao fim do dia. Que
este sangue recubra o
doce álcool que me
distrai. Pérfida esqueço
teus gracejos. Mas qual.
Estes passos ainda percorrem
minha espinha, mesmo que
virgem te aguarde semi
aberta.


 

Ana Cristina Cesar

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

IMAGEM DO VELHO POETA QUE SE EXERCITA
COM PESO DE PEDRAS DO MUSEU DE OLÍMPIA


Tenho fumado uns cigarros um pouco de
tabaco faz eu me sentir menos esquisito
Sem cigarro não consigo escrever aquele
prefácio nem consigo fazer a barba ficar
bonito Tenho uns amigos que sem fumar
conseguem ser bons poetas em Curitiba
Em Belém não consigo escrever uma linha
Tenho uma filha que só lê Dostoiévski
Sem cigarro não consigo ter influência
Tenho rixas distratos maus antecedentes
Não sou terno com plantas gatos crianças
Nem mesmo eu me suporto topo comigo
Que posso fazer? Sem cigarro me desgasto
faço mais concessão plágio gato & sapato
Poeta insignificante ri à-toa vive caindo
tropeça nas etiquetas comuns da língua
Aí é que são elas eu não consigo a memória
despedaça até mínimos trechos da Odisseia
Tenho agora cinquenta anos sou de 15 de
outubro Rimbaud de 20 já te aviso ele fica
belo forte tranquilo Sem cigarro não consigo




ney ferraz paiva
belém out. 2014

segunda-feira, 21 de julho de 2014

IMPRESSÕES
O que se encontra no começo histórico das coisas
                                      não é a identidade ainda preservada da origem
– é a discórdia entre as coisas, é o disparate.
A história ensina também a rir das solenidades da origem.

MICHEL FOUCAULT
Nietzsche, a genealogia, a história”

A voz é, no início, surda, pouco audível, desconfiada. Ela clareia e torna-se nítida quando ele se sente seguro. Isto é apenas um detalhe, ínfimo, entre centenas de outros. No entanto, nunca mais ouvi ninguém dizer “alô?” daquele jeito, ao mesmo tempo amedrontado, atento, à espreita. Como se, no segundo seguinte, tudo fosse se tornar possível, uma guerra ou um riso, uma ameaça, uma interrogação, alguma armadilha ou um embate.
            Foucault, dizendo “alô”, estava alerta. Pronto para tudo, lutar e esquivar-se, brincar ou brigar. Ao que me parece, tinha esta atitude com relação a tudo. Em todas as situações, ou quase, ele parecia sobreaviso. Não na defensiva, nada circunspeto, prudente ou reservado. Antes, espreitando, vigilante, pronto para qualquer eventualidade. Penso na famosa frase de Diógenes o Cínico: “O que a filosófica me ensinou? Estar pronto para qualquer eventualidade”. Era isto, sim, a eventualidade. O sentimento do aleatório. A acuidade do guerreiro: quem vem lá? amigo? inimigo? quem quer o que de mim? Mas, dissimuladamente, em voz baixa, sufocada, quase terna: “Alô?”.
            Do lado oposto, na outra ponta do espectro, o riso. Os risos, aliás. Pois, deles, Foucault tinha uma palheta muito variada. De conveniência: para se despedir, para acolher, para agradecer, um riso mais despojado, não exatamente mecânico, mas pouco vivo.  De mais despojado, não exatamente mecânico, mas pouco vivo. De zombaria: quando um crítico lhe desagradava, se um adversário o tivesse ferido, aparecia um riso sibilante, mais ou menos metálico. Diante do absurdo, da estupidez, da idiotice, da ignorância crassa, era um riso largo, sonoro, ruidoso. Havia também aquele outro tipo de riso que parecia submergi-lo quando uma palavra, uma lembrança, um gesto o faziam mergulhar de novo, subitamente, mesmo que por um instante, no universo da conquista e dos encontros ao acaso.
            Eu só frequentei Foucault por alguns meses, o que é bem pouco. Isso foi o bastante para compreender que havia nele algo inatingível. Mas será que se trata de “compreender”? Não, se considerarmos “compreender” uma operação do entendimento que, ao termo de um processo racional, tem um resultado argumentado como conclusão. Reúno, aqui, apenas algumas impressões, vendo claramente que são antigas e fugidias. Isto não parece um motivo suficiente para afastá-las, menos ainda para não confiar nelas.
            Creio, ao contrário, que convém reabilitar as impressões. O que assim nomeamos, na falta de algo melhor, designa, com efeito, algo que não se  encontra, finalmente em nenhum outro lugar. E que não é necessariamente acessório nem negligenciável. Tom de voz, brilho do olhar, postura do corpo, modo de se movimentar ou de se calar, ou de rir, ou de se vestir evocam, amiúde, alguma coisa completamente diferente de um detalhe. Ou melhor: quem então decidiu, desde quando, e como, aquilo que é detalhe e aquilo que não é?

Apagar os traços

            Dentre as impressões que me restam na memória, faz trinta anos, há Foucault de negro, numa manhã de inverno, na entrada da Biblioteca Nacional, um pouco esbaforido e inflamado, acabando de descer da bicicleta, falando rápido, antes de imergir na jornada dos livros. Foi talvez – eu não sei mais – a primeira vez que o vi. Eu estava evidentemente impressionado por encontrar aquele que alguns de nós estávamos lendo com paixão, há muitos anos. Nós o tínhamos apelidado “a cantora careca”, com uma ironia afetuosa e admirativa. E tendo vindo de bicicleta, isto tinha me impressionado. Um sentido do corpo, uma atenção cuidadosa com o esforço, com o músculo, com a esbeltez, mas sem ostentação, como uma brincadeira, uma maneira de passear, um modo também de flanar pela cidade. A impressão de que ele era livre sempre.
            Impressão confirmada, com ou sem razão, por sua aparente disponibilidade. Há pessoas que nunca têm o horário de almoço livre, antes do próximo trimestre, e, às vezes, com um pouco de sorte, só o tempo para o café, mas apenas no mês seguinte. Eu ficava muito surpreso que Foucault, solicitado, célebre, já mundialmente conhecido, causasse sempre a sensação, quando desejávamos encontra-lo, de não ter nada para fazer no dia seguinte. Parecia deixar seu interlocutor escolher o dia e a hora, como se ele tivesse todo o tempo disponível, e nada mais para fazer. Era algo simulado, mas não sem elegância.
            Assim, podíamos almoçar. Notadamente no Mercure Galant, atrás da Biblioteca Nacional da rua Richelieu, restaurante que hoje não existe mais. Este lugar parecia corresponder a Foucault. Havia aí, com efeito, um curioso misto de decoração clássica e de universo insólito. O que confirma sua reação às questões que eu lhe colocava, nesta época, nestes lugares. O que me interessava: sua relação com Kant. Ele havia traduzido Antropologia do ponto de vista pragmático. Este trabalho tinha sido, ao lado da História da loucura, sua tese complementar. E depois, aparentemente, mais nada. Por quê? Como? Não havia alguma coisa, apesar de tudo que perdurasse em segredo? Visivelmente, essas interrogações irritavam muito rapidamente. Uma resposta cortante caía: “Neste momento, eu me interesso pelas portas das retretes nas casernas alemães do século XVIII”. Clássico, sim, e, ao mesmo tempo, defasado. Modernidade atravessada por misturas.
Mesma impressão no apartamento de Foucault, no último andar de um prédio moderno, não longe da estação de metrô Vaugirard. A primeira vez que fui lá, tudo me pareceu curiosamente moderno. Até me surpreendi, não sei porque, que a cozinha tivesse um micro-ondas e que Foucault, com uma camisa de gola rolê branca, preparasse, ele mesmo, um prato de frango ligeiramente cremoso. E depois ele me explicou, rindo, como a parede do fundo, que parecia uma estante de livros fixa, deslizava, para comunicar o seu apartamento com outro, onde morava seu companheiro. Conforme os visitantes, esta divisória ficava fechada ou aberta.
            Na decoração contemporânea, quase design, deste apartamento luminoso, subsistia então, com esta divisória de correr, um quê de uma sombra antiga. Brincadeira de piratas, esconderijo, armadilha, censura. Não é uma piscadela para a história antiga das portas ocultas e das passagens secretas que está aqui em questão. Também não se trata do cuidado que Foucault tinha em só viver abertamente de maneira seletiva. É algo muito difícil de entender, mas interessante, talvez.
            Parece que em sua casa existem, um pouco por toda parte, gavetas secretas, fundos por detrás de outros, disfarçados. Não que sua obra seja esotérica, evidentemente. Fora de questão inscrevê-la na linhagem dos ocultistas e outros autores criptônimos. Porém, as relações de um livro com outro, por exemplo, geralmente se ocultam. As continuidades são marcadas. Na vida do homem, parece-me que o mesmo acontece. Se Foucault tem tantas faces que, frequentemente, não se encaixam, ou tão mal, é também porque ele queria apagar os traços, organizar lacunas, deixar silêncios. É também uma maneira de ser livre.
            E havia muita liberdade em Foucault, de modo sempre singular. Fiquei surpreso com as posturas, nas vezes em que o encontrei em sua casa. Ao falar, ele tinha maneiras não fixas, pouco comuns, de segurar a cabeça com uma só mão, ou de cruzar uma perna, ou ainda de deixar pender um braço. Não vejo aí, simplesmente, sinais de descontração, atitudes descontraídas de alguém que está em casa e que pode, falando, sentar-se sobre a perna ou meio que se atirar no sofá.
            Certamente isto acontecia. Mas também outra coisa. Como um gestual do corpo codificado de modo diferente do que nas convenções que regem também a descontração. Uma maneira livre de se portar, diferente, prestes a perturbar a ordem das posturas ditas normais do corpo em sociedade. Talvez fosse necessário aproximar isto de tudo aquilo que Foucault estudou sobre o adestramento dos corpos na sociedade disciplinar, em que se trata justamente de restringir ou de anular a parte do movimento corporal livre e espontâneo.

            O que é curioso, é que, até onde eu me lembre, essas posturas atípicas, essas maneiras de se portar diferentes, nunca davam a impressão de um desleixo qualquer. Foucault podia ser desengonçado, nunca estava relaxado nem desleixado. Porque, parece-me, havia nele como que uma vigilância sempre alerta, algum movimento sempre organizado uma retirada, uma distância. Impossível imaginá-lo desatento, impossível também imaginá-lo ingenuamente simples.

Febre e ocupação

Alguma coisa nele devia permanecer indefinidamente inacessível. É assim, em todo caso, que eu o imagino. Como se ele buscasse permanentemente cavar uma distância em relação às pessoas. Numa primeira abordagem, sua extrema afabilidade preenchia essa função. Ela era tão excessiva, às vezes, mesmo hiperbólica, que só podia instaurar grandes distancias.
            Sua febre, também, o colocava à parte. Emprego esta palavra na falta de outra melhor. Foucault vivia como que numa perpétua ocupação, sempre atento. Ninguém era menos plácido, nem mais móvel. Ele era capaz, a respeito de um mesmo assunto, de multiplicar as abordagens e os pontos de vista com uma extraordinária velocidade. Aliás, ele não cessou de multiplicar os programas, as listas de coisas a fazer. “Será necessário um dia...” era uma expressão retomada muitas vezes em seus propósitos, tal como figura frequentemente em seus escritos. Esta febre era um excesso, uma profusão, um permanente transbordar. Foucault dava a impressão de ter mais projetos que tempo, mais ideias que livros, mais possíveis que realizações, que eram, por sinal, muito numerosas!
            Finalmente, Foucault era um impulso. Uma espécie do élan permanente, uma extraordinária máquina de arrebatar. Desta força que incita, restam mil traços e mil consequências. Sua influência exerceu-se sobre toda a geração à qual pertenço, que tinha vinte anos por volta de Maio de 68. Outras, sem dúvida, mais jovens, ou vivendo em outras culturas, foram influenciadas de outra maneira por Michel Foucault. Quanto a mim, por mais que eu não seja “foucaultiano”, sei aquilo que creio lhe dever.
            Em primeiro lugar um programa. Meu trabalho de pesquisador inscreveu-se, de fato, num programa que Foucault havia indicado no primeiro prefácio de História da loucura. Por sua vez, ele havia deixado este canteiro de lado, do mesmo modo que não quis reeditar o prefácio. Ele escrevia então:

Na universalidade da ratio ocidental, há esta divisão que é o Oriente: o Oriente, pensado como a origem, sonhado como o ponto vertiginoso de onde nascem as nostalgias e as promessas de retorno, o Oriente oferecido à razão colonizadora do Ocidente, porém, indefinidamente inacessível, pois o limite sempre permanece: noite do começo, em que o Ocidente se formou, na qual traçou uma linha de divisão, o Oriente é, para ele, tudo aquilo que ele não é, ainda, que ele deva buscar nele sua verdade primitiva. Será preciso fazer uma história desta grande divisão, ao longo de todo o devir ocidental, segui-la em sua continuidade e suas trocas, mas deixá-la também aparecer em seu hieratismo trágico.

            Os dois livros que dediquei a determinados aspectos desta divisão inscrevem-se, ao seu modo, na direção indicada por Foucault. O esquecimento da Índia e O culto do nada contribuem, em alguns aspectos delimitados, para esclarecer o lugar e a função do Oriente na consciência europeia bem como a constituição de sua identidade moderna. Eles procuram, com efeito, abordar o processo histórico que viu a descoberta científica do Oriente, mais particularmente, do âmbito do sânscrito, e realizar uma re-elaboração filosófica dos traços que caracterizam “a Europa”, “o espírito” europeu, “a identidade” europeia etc. Não se trata de comprar entidades já definidas em sua integralidade, “a Europa” e “a Índia”. O objetivo é contribuir para a compreensão dos processos dinâmicos em que essas representações delinearam-se reciprocamente.
            Segundo elemento importante, esta convicção, própria de Foucault, de que tudo é dito nos arquivos, explicitamente. Inútil imaginar estratégias secretas, intenções escondidas nos processos de saber e de poder. Tudo é formulado, tornado preciso, repetido, às claras. Esta ideia me ajudou enormemente, durante anos passados pesquisando aquilo que era agenciado, no século XIX, em torno da descoberta do budismo e das interpretações que ela suscitava.  Pude constatar que, efetivamente, se nos damos ao trabalho de ler, tudo está ali, preto no branco, sem pudor e sem rodeios. Não concluo com isso, necessariamente, que conviria desempregar todos os hermeneutas, porém que toda interpretação inútil deve, se possível, ser afastada, quando se tratar de história dos sistemas de pensamento.
            Restam, também, deste impulso chamado Foucault, os grandes registros “guerra” e “urgência”. Foucault fez compreender quanto efeitos de verdade e relações de forças são interligados. Não há senão a guerra, em toda parte, sobretudo sem fim, sem origem nem termo, sem vitória nem trégua, com evoluções apenas, mudanças de estilo ou de campo. É isso que ensina, no fundo: o combate como dimensão essencial do pensamento e da vida. Sem dúvida, Nietzsche o tinha visto, sem contar Heráclito e sua grande intuição da discórdia. Mas foi Foucault quem permitiu entrevar a riqueza desta perspectiva.
            A urgência, este gosto do agir próprio da febre, cresce para intervir nas lutas, para inflecti-las ou modifica-las. Ela é acompanhada, em Foucault, por um desprezo soberano pela metafísica e pelos seus embaraços risíveis. Foi possível segui-lo, neste registro, num domínio determinado, o jornalismo. Pensei, muitas vezes, com emoção e gratidão, nesta maneira que ele tinha de considerar a imprensa com um lugar de intervenção para um intelectual. Um lugar permanente, legítimo, essencial. Não um domínio de incursões pontuais, por onde passariam assinaturas de prestígio. Foucault incitava uma urgência jornalística vivida de dentro, dentro das redações, segundo modalidades que deviam, evidentemente, ser inventadas por cada um.
            Com esta coletânea, desejei fazer uma modesta homenagem à memória de Michel Foucault, por ocasião do vigésimo aniversário de sua morte. Ela começa com um curto estudo sobre sua trajetória, extraído do meu trabalho, A companhia dos filósofos, lembrando alguns dados básicos àqueles que não conhecem bem sua contribuição. Seguem-se três entrevistas, publicadas em jornais, em diferentes datas.
            Reúno estas páginas dispersas com a preocupação de que essas possam ser úteis a uma melhor descoberta de seu pensamento e de seu percurso. Nestas entrevistas, Foucault aborda, efetivamente, de maneira simples e direta, temas maiores do seu trabalho, como, por exemplo, a delinquência, a institucionalização dos saberes, a dispersão dos focos de poder. Mas também evoca temas mais pessoais, que frequentemente não foram desenvolvidos. Em particular, sua relação com a literatura, com o trabalho da escrita, sua relação com o marxismo e com os comunistas, sua formação intelectual, seu olhar sobre seus próprios livros e sobre a acolhida que tiveram. Parece que, ao longo das respostas, desenha-se um Foucault sensivelmente diferente daquele dos trabalhos e dos cursos.
            Tais são as minhas impressões.



             Roger Pol-Droit
             Paris, 12 de julho 2004

quarta-feira, 21 de maio de 2014

ESTAR CONFORME OS PRAZOS


comprei um livro da Adília Lopes
um livro algo danificado
como se tivesse molhado um dia
vou pegar um poema da Adília
para pôr de epígrafe ou epitáfio
vivo sempre entre duas fadigas
ou estico o texto ou a canela




Ney Ferraz Paiva, Arrastar um landau debaixo d’água