o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012


A MÁQUINA DE MATAR O TEMPO



Aqui nós investimos contra a alma imortal dos gabinetes. Procuramos amigos que não sejam sérios: os macumbeiros, os loucos confidentes, imperadores desterrados, freiras surdas, cafajestes com hemorroidas e todos que detestam os sonhos incolores da poesia das Arcadas. Nós sabemos muito bem que a ternura de lacinhos é um luxo protozoário. Sede violentos como uma gastrite. Abaixo as borboletas  douradas. Olhai o cintilante conteúdo das latrinas.


Roberto Piva
imagem: Sylvia Plath

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012








dentro deste pesado pássaro
tudo arde 

sobrevoo Casablanca, Marrakesh, Agadir 

não vim para ficar intacta
busco a nódoa, as fezes, o erro

o eterno e áspero abraço
contra a muralha mourisca

inclino-me melhor para enxergar este destino:
uma mente andrógina escrevendo versos
desamparada pelo esplendor

permanece forte tempestade no horizonte

mas não desisto:
no meu jardim, Rosa e Pessoa
reinam




Marize Castro, Habitar teu nome, 2011
imagem: Gui Mohallem, espelho manchado

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012



AMAR NO LIMIAR DE COISAS GRANDES A VIR


Em "O Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë, Heathcliff condena o espírito de Catherine, a mulher amada, a vagar pela terra e a não encontrar descanso, porque não suportaria continuar a viver sem ela por perto... Os Diários de Sylvia Plath apresentam intensas variações e correlações de um amor que condena o outro a se estratificar, a não poder escoar com o passar do tempo, em datas e velocidades muito diferentes, assim como a vida é, quer ser e não admite impunemente qualquer retardamento, sem rupturas e precipitações trágicas. Incluo abaixo excertos desses Diários de Sylvia, uma espécie de organismo duplo da vida da poeta, que se desfaz, reduz, bem ao contrário do esplendor pretendido...


Para mim, o presente é para sempre, e o eterno está sempre mudando, fluindo, se dissolvendo. Este segundo é vida. E quando passa, morre. Mas você não pode recomeçar a cada novo segundo. Tem de julgar a partir do que já está morto. Como areia movediça... invencível desde o início. Uma história, uma imagem, pode reviver algo da sensação mas não o bastante. Nada é real, exceto o presente, e mesmo assim já sinto o peso dos séculos a me esmagar. Uma moça, há cem anos, viveu como vivo. E ela está morta. Sou o presente, mas sei que também passarei. O movimento culminante, o relâmpago fulgurante, chega e some, contínua areia movediça. E eu não quero morrer.

(página 22, escrito em 1950)



Na superfície, ela é agradável, solícita: dedicou a vida inteira aos filhos e agora eles podem se dedicar a ela, porque precisam fazer com que viva preocupada preocupada preocupada? Teve uma vida difícil: casou-se com um homem, empurrada pelo desespero de estar chegando aos trinta, ele era mais velho que sua mãe e tinha outra esposa no Oeste. Casou-se em Reno. Ele ficou doente no momento em que o pastor disse que podiam se beijar. E mais doente a cada dia. Ela concluiu que ele era um bruto e que não poderia, não queria amá-lo. Ficou no chuveiro, esforçando-se para gostar do calor da água que molhava seu corpo, pois odiava o miserável. Ele se recusava a consultar um médico, não acreditava em Deus e no recôndito do lar idolatrava Hitler. Ela sofria. Casou-se com um sujeito a quem não amava. Os Filhos foram sua salvação. Ela os colocou em Primeiro Lugar. Ela ficou lá, amarrada nua nos trilhos e o trem da Vida avançando, fazendo a curva, apitando. (...) 
Ela voltou para casa chorando feito um anjo certa noite e me acordou e contou que Papai tinha ido embora, estava morto, como diziam, e nunca o veríamos de novo, mas nós três ficaríamos juntas para sempre e teríamos uma vida boa, de todo modo, só de birra. Ele não deixou nem dinheiro para o enterro, perdeu tudo em ações, do mesmo jeito que o pai dela, foi horrível. Homens homens homens. 
A vida era um inferno. Ela tinha que trabalhar. Ser empregada e mãe, homem e mulher, num único corpo ulcerado. Ela furtava. Catava coisas no lixo. Vivia sempre com o mesmo casaco puído. Mas os filhos tinham uniformes escolares novos e sapatos adequados. Aulas de piano, aulas de viola, aulas de trompa, de pistões. Eram Escoteiros. Frequentaram acampamentos no verão e aprenderam a velejar. Um deles foi para a escola particular, ganhou uma bolsa e tirava notas altas. Com toda a honestidade e do fundo de seu coração infeliz ela arranjou forças para dar àquelas crianças inocentes as alegrias que jamais desfrutara. Vivera num mundo medonho. Mas os filhos foram para a faculdade, a melhor do país, somando bolsas de estudo, seu próprio trabalho e o dinheiro dela, e não precisariam estudar comércio e coisas menores. Um dia eles se casariam por amor amor amor e teriam dinheiro de sobra e tudo ficaria bem a não mais poder. Eles nem precisariam sustentá-la na velhice.
(...)
Quanto a mim, jamais conheci o amor de um pai, o amor de um homem sólido, com laços de sangue, 
após a idade dos oito anos. Minha mãe matou o único homem que me amaria incondicionalmente pela 
vida fora: apareceu certa manhã com lágrimas generosas nos olhos e contou que ele se fora para sempre. Eu a odeio por isso. 
Eu a odeio porque ela não o amava. Ele era um ogro. Mas sinto sua falta. Ele era velho mas ela quis se casar com um velho e quiz que ele fosse meu pai. Era culpa dela. Os olhos dela que se danem.


Eu odeio os homens porque eles não ficam sempre a meu lado e não me amam como um pai: eu poderia fazer furos neles e mostrar que não havia recheio de pai. Eu os instigava se declarar e depois dizia que não tinham a menor chance comigo. Odiava os homens porque eles não precisavam sofrer como as mulheres sofriam. Eles podiam morrer ou ir para a Espanha. Eles podiam se divertir enquanto uma mulher sofria as dores do parto. Eles podiam jogar enquanto a mulher suava para economizar a manteiga do pão. Os homens, nojentos e vagabundos. Eles pegavam o máximo que podiam e depois tinham ataques de fúria, ou morriam ou iam para a Espanha que nem o marido da fulana de lábios carnudos.

Arranje uma imitação de homem, pequeno, miúdo, confiável, amoroso, uma gracinha que lhe dê filhos e pão e um teto seguro e um gramado verde e dinheiro dinheiro dinheiro todos os meses. Compromisso. Uma moça esperta não pode ter tudo o que deseja. Arranje o melhor que puder. Pegue qualquer um que valha pena você possa controlar e dominar com doçura. Não deixe que fique nervoso ou morra ou vá para Paris com a secretária gostosa. Faça tudo para ele ser bom bom bom.

(...) 
(páginas 497 a 500, 12/12/1958)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Sylvia Plath Reads Lady Lazarus



LADY LAZARUS


Tentei outra vez.
Um ano em cada dez
Eu dou um jeito —

Um tipo de milagre ambulante, minha pele
Brilha feito abajur nazista,
Meu pé direito

Peso de papel,
Meu rosto inexpressivo, fino
Linho judeu.

Dispa o pano
Oh, meu inimigo.
Eu te aterrorizo? —

O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda?
O hálito amargo
Desaparece num dia.

Em muito breve a carne
Que a caverna carcomeu vai estar
Em casa, em mim.

E eu uma mulher sempre sorrindo.
Tenho apenas trinta anos.
E como o gato, nove vidas para morrer.

Esta é a Número Três.
Que besteira
Aniquilar-se a cada década.

Um milhão de filamentos.
A multidão, comendo amendoim,
Se aglomera para ver

Desenfaixarem minhas mãos e pés —
O grande striptease.
Senhoras e senhores,

Eis minhas mãos
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,

No entanto sou a mesma, idêntica mulher.
Tinha dez anos na primeira vez.
Foi acidente.

Na segunda quis
Ir até o fim e nunca mais voltar.
Oscilei, fechada

Como uma concha do mar.
Tiveram que chamar e chamar
E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas.

Morrer
É uma arte, como tudo o mais.
Nisso sou excepcional.

Desse jeito faço parecer infernal.
Desse jeito faço parecer real.
Vão dizer que tenho vocação.

E muito fácil fazer isso numa cela.
É muito fácil fazer isso e ficar nela.
É o teatral

Regresso em plena luz do sol
Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito
Aflito e brutal:

"Milagre!"
Que me deixa mal.
Há um preço

Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração —
Ele bate, afinal.

E há um preço, um preço muito alto
Para cada palavra ou cada toque
Ou mancha de sangue

Ou um pedaço de meu cabelo ou de minhas roupas.
E aí, Herr Doktor.
E aí, Herr Inimigo.

Sou sua obra-prima,
Sou seu tesouro,
O bebê de ouro puro

Que se funde num grito.
Me viro e carbonizo.
Não pense que subestimo sua grande preocupação.

Cinza, cinza —
Você fuça e atiça.
Carne, osso, não há mais nada ali —

Barra de sabão,
Anel de casamento,
Obturação de ouro.

Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado.
Cuidado.

Saída das cinzas
Me levanto com meu cabelo ruivo
E devoro homens como ar.


Sylvia Plath, Lady Lazarus


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012



MORTE-RESSURREIÇÃO DE LADY LAZARUS


 

o frio o gás os barbitúricos falharam
a arte de morrer é interminável
esse o mar onde escreves de novo
transpões a terra entre Boston & 
Londres
águas antigas que envenenam
como um amplo pomar ou a lua
o mal chega ao fim já recomeça
um aborto          uma apendicite
torrente cada vez mais profunda
nada que te fizesse adoecer mais do que todos
claro a dor o dom era teu a maior parte
esse negócio de viver a irracionalidade
chega-se lá estanca & se está de volta
uma mulher que morre – abelha rígida 

outrora rápida sarcástica imprevisível


ney ferraz paiva
imagem: sylvia plath

Frank O´Hara reads "Having a coke with you"



Tomar coca-cola com você


é ainda mais divertido que ir a São Francisco, La Jolla, Tijuana, Tecate, Ensenada
ou ter o estômago revirado de enjoo na Madison Avenue em Nova Iorque
em parte porque nesta camisa laranja você me parece um São Francisco melhor mais feliz
em parte por causa do meu amor por você, em parte por causa do seu amor por vodca
em parte por causa das margaridas laranja fluorescente cercando os ipês
em parte por causa do mistério que nossos sorrisos vestem diante de gente e estatuaria
é difícil de acreditar quando estou com você que pode haver algo tão imóvel
tão solene tão desagradavelmente definitivo quanto estatuaria quando bem em frente
no ar quente das quatro da tarde em São Paulo nós vagamos em círculos um entre o outro
sem parar como uma árvore respirando por suas oftálmicas
e a exposição de retratos parece não ter qualquer rosto, só tinta
você de repente pergunta-se por que diabos alguém deu-se ao trabalho de fazê-los
                                                                        eu olho
você e preferiria olhar você a todos os retratos do planeta com exceção
talvez do Autorretrato com corrente de ouro de vez em quando que está no MASP
a que graças aos céus você ainda não foi então podemos ir juntos pela primeira vez
e o fato de que você se move tão lindo resolve mais ou menos o Futurismo
assim como em casa eu nunca penso no Nu Descendo uma Escada ou
num ensaio um único desenho de Da Vinci ou Michelangelo que antes me boquiabria
e de que adianta aos Impressionistas toda a sua pesquisa
quando eles nunca conseguiam a pessoa certa para encostar-se à árvore ao pôr-do-sol
ou a propósito Marino Marini se ele não escolheu o cavaleiro com o mesmo cuidado
                                                                   que o cavalo
é como se eles tivessem sido fraudados em alguma experiência maravilhosa
que eu não pretendo desperdiçar o motivo pelo qual estou aqui falando tudo isso para você

Frank O´Hara
Contextualização: Ricardo Domeneck

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Jards Macalé - Farinha do Desprezo (1972)



Já comi muito da farinha do desprezo, Jards, nisso somos irmãos/ arrancam
nossa carne com os dentes, sem que isso seja uma tragédia grega/é
porrada mesmo pra cima da gente/quando se quer aproveitar o dia como se
quer/você enfrenta de frente/eles vêm encapuzados/te roubar as tochas
da tua vontade/isso me faz lembrar Lampião, Jards, agarrando-se ao dorso
dos trocos/das pedras/pra não se deixar prender/quando ele dizia sem
culpa/minha consciência em comi com farinha!!!...

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

RACISMO DE ESTADO - "COMO O PAÍS TOLERA ISSO?" - Boaventura de Sousa Santos repudia violência no Pinheirinho, e...


FELIZ ANIVERSÁRIO SÃO PAULADA!!! - As famílias desalojadas do PINHEIRINHO, aviltadas, ameaçadas, feridas, desmoralizadas pela polícia e pelo governo fascista de São Paulo, que massacra os mais desfavorecidos, os que lutam todos os dias para garantir o mínimo - e que cabe constitucionalmente ao Estado prover, e oposto a isso, submete, domina, controla, massacra, "desce a porrada" - o ato é perplexante, vergonhoso, amesquinhador, inaceitável num Estado que é o mais rico do país - mas cadê o caráter? a justiça? a dignidade? a isso se sobrepõe a longevidade de um território reservado apenas a minoria endinheirada e covarde, à classe dominante de sempre...

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012



tangida por éolo



da extrema aridez à exuberância extrema
não sou indiferente aos elementos que lhe tumultuam a face
árvore que sou tenho seiva e axioma
fabrico por osmose vida
tabebuia eugênia persea artocarpus plinia hymenaea
passo interferindo na fronteira ideal dos hemisférios
sendo as vezes rarefeito colar de ilhas
bioma sim bioma não sem frequentes esterilidades
líquens  que preparam a vinda das lecídeas frágeis
não deixo o platô desnudo
tudo permito, água nos meus joelhos vento nos cabelos
me estendo fundo na terra
em sucessivas fases de transfigurações maravilhosas


juliete oliveira
imagem: terry winters

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

insondável agosto


                                                        a Jorge Luiz Borges

nascendo sempre na impropriedade da certeza
gosto de pensar na volátil verdade da juventude
a cobrir teu rosto
o traçado eloquentíssimo do rio da Prata nos olhos
forasteiro em segurança
isolador de invencionices
as mãos a manejar diversas naus
no peito a fatalidade da lei
desencadeada em todos os quadrantes
assim vejo teus cabelos
                                     paragens opulentas e inacessíveis
nenhum embate estúpido da perversidade
só a leitosa idade em consórcio com os condenáveis




juliete oliveira
salgueiro, 24 de agosto de 2011

domingo, 8 de janeiro de 2012


O Branco Hotel

Em cada cidade um cemitério
um túmulo para cada residência
um morto exclusivamente para o pranto de dois olhos.
Hoje é o dia dos desacordados, dos sonâmbulos e dos fantásticos.
Tenho um irmão num cemitério
fora um que tinha o meu nome.
Tenho uma namorada num cemitério.
São os hóspedes de um branco hotel
que perturba as floristas.

Lêdo Ivo, O Sinal Semafórico
imagem: Francesca Woodman

domingo, 1 de janeiro de 2012



AS COISAS CERZIDAS EM ARTAUD
entrevista à Revista E, SESC São Paulo por André Queiroz

É possível dizer que existe nas ideias de Artaud – na sua visão do que é o teatro, em sua opinião sobre o que vem a ser a representação – uma espécie de luta contra o predomínio da dramaturgia em relação à encenação?
Trata-se, sem dúvida, de uma crítica absolutamente radical aos modos da dramaturgia de então, qual seja, um certo modo de se pensar o teatro, de se operá-lo desde a dramaturgia, mas não apenas aí. Trata-se também da crítica ao que Artaud irá chamar de psicologismo tão marcado no teatro que se fazia (mas será não se o faz ainda?). Artaud queria dissipar a cena na que se forjava o drama burguês, e o ramerrão das palavras que supõe contar a intimidade do homem, os seus segredinhos de bastidores, os seus fantasmas íntimos, as suas irrealizações levadas ao palco como que num psicanalismo generalizado às encenações. Artaud operava a partir de outra perspectiva ao teatro. Um teatro ritual no qual se evocava outras relações do homem. Talvez não mais o homem numa relação de si a si, mas o homem que se esgarça numa relação com o infinito, com a presença mágica da natureza. Não a natureza como o que se apreende sob o domínio da técnica ou mesmo a natureza numa contrapartida a isto – a natureza sob os cuidados dos ambientalistas que a buscam preservar dos barbarismos da cultura. Artaud solicita o trágico. E nesta solicitação dizer a natureza é dizer algo bem outro do que se costuma. Seu teatro é um teatro perpassado das relações entre o homem e os poderes mágicos desta natureza muito pouco cordial, muito pouco harmônica, mas ela, a natureza abismada na que o homem trespassado pelo que o sobressalta ele o homem está em definitivo ao risco de um seu esgarce. Diria – está fora de causa terminar bem. Esta a radicalidade do teatro em Artaud. Bem além de uma discussão acerca da palavra, ou da ausência dela. Certo que rebate também aí. Mas não se trata de se situar aí e apenas aí, qual seja, na recusa da palavra se buscamos compreender o que pretendia Artaud ao pensar no seu teatro metafísico.
Pergunta de praxe: quem você citaria como influenciados pelo teatro de Artaud além Peter Brook, que fala muito. Grotowski? E aqui no Brasil, Zé Celso? Alguém mais?
Respondo sem pestanejar: Ói Nois Aqui Traveiz. A incrível companhia de atuadores de Porto Alegre. Companhia com mais de 30 anos de funcionamento, de pesquisa teatral – mas Companhia imenso nova, Companhia juveníssima porque o seu mapa do fazer é sempre voltado à redefinição contínua do que se está a experimentar. Um teatro da prática, um teatro que é a prática e neste sentido, o pensamento sem tutelas, sem heranças à tradição e aos fiadores de plantão que estão sempre a exigir ‘releases’ do que se está a fazer como salvaguarda aos modos da criação. Todavia não há a salvaguarda. Todavia não há a sugestão prévia a temperar o que se dá ao experimento e no próprio corpo do experimentar. O que se vê senão a torrente do tanto fazer? Mas se está a este tanto fazer. No entanto, eu arrancaria da questão o termo ‘influência’. Não diria que eles estão influenciados por Artaud, ou por Grotwski, ou por Heiner Muller. Ou, ou – isto, aquilo. Diria que se está atravessado por estas estéticas. Diria que se está atravessando tais pensamentos. Porque o de que se trata é de um pensamento ao teatro, ou o teatro como modo de pensamento. Não quero dizer: a racionalização que se possa abstrair da cena teatral. O predomínio de uma busca conceitual a um fazer do teatro. Não digo isto. Diria que se está de todo perpassado por este pensamento que é corpo. Como em Nietzsche, como em Artaud. E o estar de todo perpassado por este pensamento-corpo é estar a sua devoção no que se faz quando do fazer. Por exemplo, veja que se trata de uma Companhia de Atuadores. Não uma Companhia de Atores. Porque talvez este significante esteja gasto em demasia. Talvez ele esteja eivado de sentidos que comprometem o fazer, que ele esteja encarquilhado dos moldes à produção, a uma certa ideia de teatro como espetáculo que não comporta o ‘aquilo’ que o Oi Nois Aqui Traveiz evoca. O teatro laboratório, o teatro vivência, o teatro ritual. Pude assistir ao Amargo Santo da Purificação – uma montagem alegórica da vida de Carlos Marighella. Assisti duas vezes a esta montagem. Na Cinelândia, no Rio de Janeiro, e na praça central do Crato, na região do Cariri cearense. Marighella não era contato didaticamente para o deleite de quem estava às cenas. Não se fazia com ele uma pequenina mostra de teatro pedagógico a cooptar as gentes na direção da memória e do arquivo. Tratava-se de pensa-lo sob o ensejo do poético no que os princípios de constrangimento do real eles se espatifam. Não haviam panfletos. Havia uma convocatória que tomava em assalto aos que estavam, incautos, a audiência de tudo. Convocatória pela música, pela dança, pelas alegorias, pela palavra – mas não a palavra-diálogo que contracena indivíduos, sujeitos mantidos pelo contrato social burguês. A palavra era derrapada – no que ela se lançava, era o desconforto o que se experimentava. Talvez me perguntasses: “desconforto com o quê?’ Digo aos modos que me surgem agora: desconforto com a condição de homem. O que, de algum modo, Primo Levi sugeria: da vergonha de ser homem. Basta um breve olhar ao redor e há de se saber do que estou a me referir. Este ao redor pode ser a cartografia dos horrores do século XX, ou as de agora agorinha. Aquele Marighella nos lembrava isto – algo que em definitivo é desalentador ao coro dos contentes que prima por aí. Eis uma indicação. Um teatro sem eira nem beira – mas ao desaprumo dos costumes, como um prego firmado à passividade das pessoas. Artaud sim. Oi Noiz Aqui Traveiz está a operar isto.
Mesmo tendo sido também poeta, ator, roteirista de cinema e até pintor, por que é no teatro que encontramos as maiores referências a Artaud?
Questão é que em Artaud as coisas estão esbarradas, envoltas em processos de indiscenibilidade. O teatro, a literatura, o atuador, a poesia, o texto epistolar. As coisas estão cerzidas pela experimentação do que é Artaud. Diria antes, do percurso-Artaud. Porque Artaud é,sobretudo,um percurso. Como Nietzsche é também um percurso. Percurso que em Nietzsche sugere Sils Maria, a Itália, o verão aqui, os invernos ali. O pensamento que é corpo esmerilhado pelas vertigens da natureza, pelos humores ao clima, pelas dores de cabeça uma vez as variações do clima e das paisagens. São painéis ao pensamento. E em Artaud – a Irlanda, o México, O Oriente, e os claustros. Não apenas os claustros da internação psiquiátrica mas também isto. Há claustros no aberto. Artaud, o solitário. O percurso-Artaud não diria ser uma resposta ao que lhe surge, ao que se lhe dá. Por exemplo, sua correspondência com Jacques Rivière, editor de La Nouvelle Revue Française. Rivière que recebe poemas de Artaud. Rivière que dirá a Artaud que seus poemas são inconclusos, imperfeitos, cheios de deslizes. Rivière que lhe solicitará contar a sua vida, associar a escritura àquele que se é – como numa clínica inadvertida às caças do sentido que falta. Artaud que lhe dirá não se tratar de imperfeição formal ao poema, mas que se trata da condição na que o pensamento lhe é, um pensamento abaixo, um pensamento por espasmos. Diria, vez mais, o percurso em Artaud não é reativo, ele não está a resposta do mundo. Mas se trata de uma assinatura de mundo. Artaud fabrica obra como modo de ocupar o percurso que é ele. Por vezes, tantas vezes, parece ser incompatível um algo assim aos modos de funcionamento da sociedade em que estamos – sociedade compartimentada na que os escaninhos atendem aos interesses cindidos por área de atuação, campo de saber, regime de especialistas.
O que o interessava nos surrealistas? Seria legal falar dessa conexão na matéria, porque normalmente as pessoas pensam nas artes plásticas quando falamos em surrealismo... E é aqui que vc poderia me falar sobre o diálogo dele com a sociedade artística e intelectual da época, em Paris. Tendo em vista a efervescência cultural da cidade na época, como isso afetou Artaud – e, claro, como Artaud influenciou esse cenário.
Pela explosão da consciência como campo de absorção e apreensão do mundo. Pela explosão dos ditames do sujeito de razão que pensa ser mediação de tudo. Pela explosão do império dos sentidos desde a razão que lhes governaria e que lhes acenaria o seu primado de valor. No entanto, os surrealistas estarão demasiado envoltos com as descobertas da psicanálise, o inconsciente como campo alargado no que o sujeito psicológico redefine os territórios de seu domínio. Artaud então partirá para outras paragens. Falei aqui dos ingressos ao Oriente. Não necessariamente ao Oriente geográfico. Mas ao Oriente que há em todo Ocidente. Oriente como lugar-vetor de um pensamento-outro. Pensamento este que não reitere o primado do homem, do sujeito do conhecimento que busca paralisar o objeto sob o seu escrutínio. Artaud rompe com os surrealistas. Lança-se a este Oriente no que o homem está imerso à condição de ser pequena nódoa – ou um algo que se estilhaça, ou um algo que se apaga para que então possa emergir o de que se trata. Sobre as influências, o tema que regressa, eu diria que Artaud foi, sobretudo, o náufrago. Depois se lhe atribuirá um lugar no cenário dos que se distinguem. Sempre atendendo àquela fórmula-ótima na que o bom poeta é sempre o poeta morto. Em vida, Artaud será aterrorizado pelos fascismos de toda ordem, os claustros a que me referi. Lembro-me bem de suas Cartas desde Rodez. Numa delas, carta ao seu psiquiatra Gaston Ferdière, ele dirá de sua condição de interno àquela instituição, ele que lá entrara com quase trinta dentes na boca, e que depois de anos, um dois três os anos, ele terá 8 dentes à arcada, e ele dirá: eu gostaria de saber quem é que é o responsável por esta perda de dentes, quem é que assina esta usurpação… ele diz algo assim, com as palavras que lhe coube, mas era isto o que ele estava dizendo. Falar da influência de Artaud, falar da ressonância de seu pensamento na sociedade daquela época é de algum modo deitar-se ao esquecimento do que lhe coube – o sequestro de sua vida pelo aparato médico-psiquiátrico com todo o seu apetrecho disciplinar de intervenção e interdição. Há que se lembrar também que aos internos se lhes dá o esquecimento como condição a si. No caso de Artaud, por 4 anos, este esquecimento se redobra vá se saber a que enésima potência… é que Artaud é interno das instituições psiquiátricas no quando da França sob a ocupação alemã, naqueles 1940-1944. Será se pode imaginar o que era aquilo, o que lhe coube?
André Queiroz é filósofo. Escritor, ensaísta e professor. Autor, dentre outros, de Foucault – o paradoxo das passagens (1999); Tela atravessada – ensaios sobre cinema e filosofia (2001); O Presente, o intolerável – Foucault e a história do presente (2004; 2011); Em direção a Ingmar Bergman (2007); Antonin Artaud, meu próximo (2007); Imagens da biopolítica I – cartografias do horror (2011); Palavra Imagem – filosofia cinema literatura (2011); Patchwork – livro para teatro (2011). Organizou, prefaciou, os seguintes livros: Foucault hoje? (2007); Barthes & Blanchot: um encontro possível? (2007); Apenas Blanchot! (2008).