o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 25 de setembro de 2011


5 de junho de 1977. a louca é você...


Você me dá as palavras, você entrega, dispensadas uma a uma, as minhas palavras, voltando-as em direção a você e endereçando-as a você – eu nunca as amei tanto, as mais comuns tendo se tornado muito raras, nem tampouco amei tanto perdê-las, destrui-las com o esquecimento no próprio instante em que você as recebe, e este instante precederia quase tudo, meu envio, eu mesmo, para que elas aconteçam apenas uma vez. Uma única vez, você percebe a loucura para uma palavra? Ou para qualquer traço que seja?

Eros na idade da reprodutibilidade técnica. Você conhece esta velha história da reprodução, com o sonho da língua cifrada. Vontade de escrever uma grande história, uma grande enciclopédia do correio e da cifra, mas de escrevê-la cifrada novamente para despachá-la para você, tomando todas as disposições para que você seja sempre a única a poder decriptá-la para você (a escrevê-la, portanto, e a assiná-la), a reconhecer nela seu nome, o único nome que lhe dei, que você me deixou dar a você, todo este cofre-forte de amor, suponho que minha morte esteja inscrita nele, ou melhor, que meu corpo esteja preso nele com seu nome sobre a pele, e que em todo caso minha sobrevivência ou a sua estejam limitadas à vida – sua.

E como frequentemente sem saber Você me dá a palavra, é mais uma vez você que escreve a história, é você que dita enquanto eu me esforço puxando a língua, letra após letra, sem nunca me virar

aquilo que nunca decidirei é publicar algo que não seja cartões-postais, a falar-lhes. Nada me parecerá alguma vez justificá-lo. Adolescente, quando fazia amor contra a parede, e que me dizia a respeito deles – você sabe, eu lhe contei

O que prefiro no cartão-postal é que não se sabe o que está na frente ou o que está atrás, aqui ou lá, perto ou longe, o Platão ou o Sócrates, frente ou verso. Nem o que mais importa, a imagem ou o texto, e no texto, a mensagem ou a legenda, ou o endereço. Aqui, em meu apocalipse de cartão-postal, há nomes próprios, S. e P. acima da imagem, e a reversibilidade se desencadeia, ela se torna louca, eu lhe havia dito, a louca é você – a ligar. De antemão, você distorce tudo o que lhe digo, você não compreende nada, absolutamente nada ou então tudo, que você imediatamente anula, e eu não posso mais parar de falar.



Jacques Derrida, Cartão-Postal, 1979, tradução Simone Perelson e Ana Valéria Lessa.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011


MONÓLOGO

Niño, si mañana no estoy,
quiero que recuerdes
que estuve.
Que te di mi vida,
mis mejores años,
mi ilusión,
mi abrazo cálido.
Niño, quiero que
recuerdes que fui
parte de vos mismo
y que tus manos han sido
hechas por mis manos;
que tus ojos son
parte de mis ojos,
que tu frágil cuerpo
lo construí con el amor
que te tuve,
que le tuve a él
que te tuvimos los dos.
Niño, si mañana no estoy,
quiero que sepas
qua aunque te perdí
vos, vos no me perdiste.
Cada noche, viajo
a encontrarte entre los sueños,
voy rescatando tu risa,
tus lágrimas, tus dulces gestos.
Voy rescatando el abrazo
qua antes te daba,
los besos que recibías
cálido, con la risa en los
ojos azul-verdes.
Ahora, sos una foto,
el dia te transforma
en una pequeña fotografia
en colores.
Ah, pero a la noche,
cuando llegala noche
y voy a tu encuentro,
siento que vuelvo a vivir.
Pero otra vez el dia,
irremediablemente,
me trae la distancia,
el peligroso abismo de lo incierto,
y una tristeza insistente
me have llorar,
una vez, y otra vez...
Cuánto te quiero, pequeño,
cuánto te he querido.
Qué difícil este tiempo
de estar separados,
de que tus pequeñas manos
no se sostengan cálidas
de mis hombros,
de que tu boca chiquita
no se acerque a mi mejilla,
de que tu voz,
tu diminuta voz
no me llame a media lengua...
Cuánto tiempo sin tenerte,
mi chiquitin,
pienso,
que tal vez ya no me recuerdes,
tal vez mi cara sea hoy,
otra cara,
que mis manos que te acariciaron,
sean hoy otras manos,
mi chiquitín,
cuánto tiempo,
cuánto dolor,
cuánta distancia,
tal vez volvamos a vernos,
pero i no volvermos a vernos
quiero, por favor quiero
que en medio de tus confusos recuerdos
busques mi cara.


ANA MARÍA PONCE, 14 de octubre de 1977


Loli, como era conhecida pelos companheiros, mulher-militante-mãe, foi sequestrada a 18 de julho de 1977 e levada a ESMA (Escola de Mecânica da Armada), onde permaneceu até 1978 e desde então é tida como desaparecida. Seus poemas foram entregues a sua família por Graciela Daleo e Alicia Milia. A primeira edição de Poemas saiu em março de 2004, com prólogo do presidente Néstor Kirchner, no qual ele diz ser Ana María Ponce parte dessa "generación signada por el deseo de desterrar del suelo de la Patria la desigualdad y la injusticia". Em fevereiro de 2011, os poemas de Ana María Ponce foram designados por seu filho Luis Macagno como patrimônio do povo argentino. Em junho de 2011 sai a segunda edição de Poemas, passados 35 anos do golpe militar na Argentina.


sexta-feira, 9 de setembro de 2011

 

MORTE-ESCRITURA, MICHEL FOUCAULT 


É preciso falar sem cessar, por tanto tempo e tão forte quanto esse ruído infinito e ensurdecedor – por mais tempo e mais forte para que, misturando sua voz a ele, se consiga se não fazê-lo calar, domá-lo, pelo menos modular sua inutilidade nesse murmúrio sem fim que se chama literatura...

Do interior da linguagem experimentada e percorrida como linguagem, no jogo de suas possibilidades estiradas até seu ponto extremo, o que se anuncia é que o homem é ‘finito’ e que, alcançando o ápice de toda palavra possível, não é ao coração de si mesmo que ele chega, mas às margens do que o limita: nesta região onde ronda a morte, onde o pensamento se extingue, onde a promessa de origem recua indefinidamente...[a literatura se dá como experiência:] como experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude).  

Foucault, As palavras e as coisas,1987 
imagem: Rodrigo Andrade

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

  

MORTE-ESCRITURA, ROLAND BARTHES


A escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. Essa é a idéia central em “A morte do autor: da obra ao texto”, de Roland Barthes (In: O Rumor da Língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988).

Para Barthes, a escritura é um neutro, um composto e um oblíquo para o qual se lança o sujeito. É também o branco e o preto onde toda identidade se perde, principalmente aquela identidade do indivíduo que escreve. Conte-se um fato e esse desligamento acontece. A voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. Isso contrasta em muito com a postura de elevação da pessoa do autor por parte do positivismo em assuntos de literatura.

Mas é a linguagem que pronuncia, não o autor, com sua história, seus gostos e suas paixões. De forma intrigante, Barthes opina que fornecer ao texto um autor é travá-lo, é fechar a escritura. E o reinado do Autor foi também aquele do crítico. Barthes anuncia o lugar onde o texto se escreve: a leitura. Vai-se, portanto, da obra ao texto. É o leitor que dá ao texto suas múltiplas significações, conexões a partir de diversas escrituras que dialogam, parodiam-se e contestam-se. É sintomático, portanto, que o nascimento do leitor implica a morte do Autor.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011


MORTE-ESCRITURA, MAURICE BLANCHOT
"A morte trabalha conosco no mundo: poder que humaniza a natureza, que eleva à existência o ser, ela está em nós, como nossa parte mais humana; ela é morte apenas no mundo, o homem só a conhece porque ele é a morte por vir. Mas morrer é quebrar o mundo: é perder o homem, aniquilar o ser; portanto, é também perder a morte, perder o que nela e para mim fazia dela morte. Enquanto vivo, sou um homem mortal, mas, quando morro, cessando de ser um homem, cesso também de ser mortal, não sou mais capaz de morrer, e a morte que se anuncia me causa horror, porque a vejo tal como é: não mais morte, mas a impossibilidade de morrer."

num outro ponto Blanchot esclarece o que a uns ainda é tão obscuro: a relação Morte-Escritura: 

"Escrever é ser atraído para fora do vivido, do mundo, em direção à Eurídice, aos infernos – espaço da escritura. Orfeu se volta para Eurídice, pois não voltar-se seria trair uma experiência simultaneamente essencial e arruinadora da obra, experiência onde se atinge o ponto extremo, o extremo risco, exigência paradoxalmente impossível da obra. A experiência é experiência da escritura, busca impossível da origem e da morte. É experiência da atração da origem: o desobrar; e impossibilidade de “olhar” a origem: o obrar."
Maurice Blanchot, 1997
imagem: Francesca Woodman

domingo, 28 de agosto de 2011




RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS 

Minha mãe viveu encalacrada entre sua arte poética, suas diminutas crias e marido, la paramour, a cruz, o terço e a memória... 

Ela trocou o mito de Sísifo, vivido na pia da cozinha, pela lavra de professora.
A ciência não salva, mas dá chaves. Para quem vive na prisão, uma chave é a toda-esperança.
No laboratório dessa vida, o fígado dos ratos, os cânceres dos ratos, o 
sexo dos ratos, os olhos e a noite-virada dos ratos refulgiam como nossos paradigmas mais caros.
Adicionamos ferro, vidro e madeira para pôr em pé esse edifício de ossos, músculos, nervos, artérias e veias.
A geometria nos transpassava revoltosos imaginários.
Passou pela nossa janela, na rua humilde, o circo Circe e seu elefante, meu primeiro irmão africano, quando a África era uma áfrica.
 



João Antonio Cajado Botelho
imagem: Alec Soth, a sra. Bonnie segura a fotografia que diz ser de um anjo

sexta-feira, 19 de agosto de 2011



DOS INCONVENIENTES DO LIVRO

impõe-se que os livros se envergonhem do fato de ainda serem livros e não filmes de desenhos animados ou vitrines iluminadas à luz de neon
T. W. Adorno

Aos oito anos de idade Thomas Bernhard monta numa velha Steyr rumo à casa de sua tia Fanny, em Salzburgo. Voltas de bicicleta pela literatura sem que isto se constitua um tema esportivo. Bem ao contrário quando o futebol veste seu surrado uniforme literário e deixa de ser formalmente crônica (por vezes policial) para não escapar aos clichês da autobiografia, restando ao jogo  enredo ou relato – as preliminares, os planos de fundo de uma partida secundária. Juntar à literatura as “cintilações” da vida banal talvez corresponda nos dias que correm a tornar cada vez mais o livro um enfeite do mundo industrializado. Ajustado à ideia de tomar parte do consumismo feliz. Um tanto da pergunta de Sartre, Qu’est-ce que la littérature expressa um certo desacordo com a maneira com que o livro já vinha sendo exposto como mercadoria. E que será cada vez mais difícil vender livro sem as boas intensões do mercado. Das livrarias para as bienais, “feiras” ou para os “salões”, outrora apenas de automóveis. O livro e as encarnações possíveis da escrita em face ao mercado de produtos aleatórios. Ele perde aí os sentidos estabelecidos e legitimados para torna-se apenas um produto. Não há mais o ritual da grande descoberta e seus desenlaces. O maior deles talvez: que o livro cura os ingênuos e os débeis mentais. Se Adorno se chocou ao entrar numa dessas “feiras” sem reconhecer ali os livros que amou e pelos quais sofreu, mundanamente transvestidos numa outra “fisionomia”, não haveria transcorrido tempo suficiente para que o livro se integrasse a esse renovado espaço de existência  e se injetasse no leitor o desejo pelas novas regras de seu uso? Operado a contagem regressiva para o e-book tornar-se o nova volta no parafuso da cultura. E como o livro ainda não se engaja adequadamente com a audiência digital, não raras vezes é sentenciado ao encalhe, à morte pelas traças. Agora cada vez mais confrontado a suas variantes tecnológicas. Toda publicidade se emula pelo contraste, não seria diferente neste caso. O livro esquivo a tudo isso, segue impedido de atuar em qualquer lugar fora do mundo do livro, e cai numa espécie de marginalia que tende a explicar os meios principais, os termos-chave da contraofensiva – o que abrangem, multiplicam, proliferam o seu desuso. O livro se torna cada vez mais um cosmético de segunda mão.

Ney Ferraz Paiva
Imagem: Alec Soth

segunda-feira, 15 de agosto de 2011



3 POEMAS: CAUBY CRUZ


OS ELEMNTOS DO VERBO


Quando digo água quero que entendas fogo
a palavra se estende e deflora
um novo entendimento uma nova
forma insuspeitada mas viva além
de viva constantemente transformada.

Dependo não só dela porém da aceitação
em ti: o céu é inferno e mais que inferno
é este termo amar com que labuto
o meu pretérito alcança meu avô
que morto mas firme em mim, galopando.
E através dele vou, através de seus pastos
e porquê digo pastos entenderás que é noite
e o ar me amansa diante de seus passos.

O que falo importa se alcançar a tua carne
pois flutuar não serve. E é mister que invadas
e descubras porquê foi que hesitei
e hesites comigo, sofras a mesma fome
a mesma água engulas, igual peixe
adores e meus cabelos te cubram.

Então, a primavera que invento poderá
ser tua e teu este mistério este cão
que à noite ladra coisas inteligíveis
e o galo , cujo canto acordará teu homem.


CONSIDERAÇÕES SOBRE UM RETRATO

Não sabemos quem foi
porém seus passos audíveis
surpreendem os estrangeiros
como eu, à tarde
no silêncio morto dos quartos.
Decerto, traria consigo
o látego para o escravo
porque severo foi: pode-se ver
no estilo das cartas violadas
na escrivaninha, por lembranças
que meu pai guardava de outros tempos
pelo quarto de correntes do pátio.
Olha da parede o seu retrato
porém esmaecido cores cinza-escuro
emergindo os olhos frios
mas sensíveis à dor
como no parto. A barba
em ponta o faz severo
e, todavia, marca seu rosto
de beleza triste, beleza
inda constante no tempo das máquinas.
Tudo foi seu. Até a cadeira
onde sento e seus os livros
das estantes. Conhecemos seu gosto
sua memória embora parcial
mostrada apenas do lado direito.
Certo, conheço agora amores seus furtivos
e o que salta do muro de suas cartas
enche sua vida e a minha de poesia.


DONATÁRIO

Donatário de terra imersa
procuro meus campos
meu boi que esqueci anos
mergulhado no mesmo gesto invicto
de mastigar, meu cão também
como também meus sapatos.

A terra desapareceu. Aqui ela ficava.
Rio de pedras várias cortava o terreno
mas eu não via as pedras. Amava a posse
de tudo, donatário que fui deste terreno.
Hoje, chão de peixes


CAUBY CRUZ, nasceu em Belém em 1928, contemporâneo
de Mario Faustino, Max Martins e Benedito Nunes.
Autor de Os Elementos do Verbo (1955).


domingo, 7 de agosto de 2011

por Pedro Correia | 

Na noite de 10 de Fevereiro de 1963, num dos invernos mais frios de que há memória no Reino Unido, uma americana bonita e talentosa, de 30 anos, deitou a filha de três anos incompletos e o filho com apenas 13 meses nas respectivas camas. Na cozinha, preparou-lhes copos de leite e um prato com biscoitos que lhes deixou no quarto quando ambos já dormiam. Depois voltou para a cozinha, fechou a porta, acendeu o fogão a gás e meteu a cabeça envolta numa toalha dentro do forno. Era Sylvia Plath, uma das melhores escritoras de sempre em língua inglesa, autora de poemas decorados por sucessivas gerações de leitores que a idolatram. Tinha aquilo a que hoje chamamos uma personalidade bipolar: alternava sem transição os momentos de intensa euforia com os mais dilacerantes estados de depressão. No ano anterior, logo após ter dado à luz o filho Nicholas, descobrira que o marido, Ted – um escritor quase tão talentoso como ela –, a enganava com a alemã Assia Wevill, mulher de um poeta amigo do casal. Há quem garanta que jamais se recompôs do choque.


O bebê que dormia inocentemente naquele quarto de uma casa vitoriana em Primrose Hill, com um copo de leite e um prato de biscoitos na mesa de cabeceira, era Nicholas Hughes – o circunspecto e reservado filho de Sylvia que se tornou biólogo marinho e um dia decidiu viver nos confins do Alasca, em comunhão com a natureza. Cansou-se de viver numa segunda-feira, 16 de Março de 2009: como se cumprisse um desígnio do destino, enforcou-se num aposento da casa onde vivia. Dir-se-ia que o fantasma da mãe jamais o abandonara desde aquela noite invernosa, uma das mais frias de que há registo no Reino Unido.

Há famílias tocadas pelo sopro da tragédia. Ted Hughes, o pai de Nicholas, bem poderia dizê-lo: passou a viver com Assia pouco após a morte de Sylvia, mas a 23 de Março de 1969 a segunda mulher seguiu os passos da primeira, suicidando-se também com gás. Com a diferença de que não partiu só: minutos antes, matara a própria filha, Shura Hughes, de quatro anos.

Pouco antes de morrer de cancro em 1998, aos 68 anos, Ted escreveu uma longa carta a Nicholas – que nunca casou nem teve filhos – em que mencionava as profundas feridas que o suicídio de Sylvia Plath deixara na família: “Em 1963, sofreste um golpe ainda mais duro do que eu sofri. Terás de lidar para sempre com isso, tal como aconteceu comigo.”

Só quando Nicholas e a irmã mais velha, Frieda, já eram adolescentes Ted Hughes decidiu enfim revelar-lhes como haviam perdido a mãe. Há quem considere que o suicídio constitui um acto de suprema liberdade. Mas nunca saberemos até que ponto existe uma predisposição genética para um tal desfecho, o que invalidaria por completo tal raciocínio: como escrevia há dias Christina Patterson no Independent, “o suicídio é um acto violento que ressoa através de gerações.” Tal como nunca saberemos o que verdadeiramente levou Nicholas a seguir as pisadas da mãe 46 anos depois, no inverno do Alasca. Talvez nos derradeiros instantes pensasse nestes versos de Sylvia Plath: “Dying / is an art, like everything else. / I do it exceptionally well.”

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

‎3 poemas: ALBERTO DA CUNHA MELO
– mirando o mar e altas distâncias
numa luneta de escoteiro –

POEMAS


Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.
Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.
Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.
É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.
Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.


(Poetas da Rua do Imperador, 1986)


DESCOBERTAS


A floresta tem
todos os bichos,
todas as madeiras,
todas as borboletas,
rios gordos, rios magros,
igarapés
e índios tão santos
que não querem o céu;
tudo tem a floresta,
mas penso no teu corpo
e sua mata diminuta,
que uma só borboleta
poderia cobrir.


(Clau, 1992)


CASA VAZIA


Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,


para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,


uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,
ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.


(Meditação sob os Lajedos, 2002)
imagem: Nicholas Hughes

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A sala cheirava a maçã

Na sexta-feira, 15 de fevereiro, houve um inquérito
 judicial no insípido e úmido tribunal de investigação atrás de Camden Town: indícios sussurrados, longos silêncios. A moça australiana em prantos (a babá que Sylvia contratara). Antes, naquela mesma manhã, eu fora com Ted a uma agência funerária em Mornington Crescent. O caixão estava no final de uma longa sala vazia e encortinada. Sylvia jazia rígida, com uma absurda gola pregueada no pescoço. Somente seu rosto aparecia. Estava cinza e ligeiramente transparente, como cera. Eu nunca vira uma pessoa morta antes, e mal a reconheci; suas feições pareciam muito finas e agudas. A sala cheirava a maçã; era um cheiro vago e doce, mas de alguma forma sujo, como se as maçãs estivessem começando a apodrecer. Fiquei contente de sair dali e enfrentar o frio e o barulho das ruas esquálidas. Parecia impossível que ela estivesse morta.
Até hoje acho difícil acreditar. Havia muita vida em seu corpo comprido e sem curvas, de ossos fortes, em seu rosto longo, em seus belos olhos castanhos, tão cheios de astúcia e sentimento. Sylvia era prática e franca, passional e compassiva. Para mim foi um gênio. Às vezes me pego acalentando a ideia infantil de que um dia desses vou encontrar com ela andando em Primrose Hill ou no Heath, e que vamos retomar a conversa no ponto onde paramos. Mas talvez isso seja porque seus poema ainda reproduzem tão bem sua maneira de ser: rápidos, sarcásticos, imprevisíveis, naturalmente criativos, um pouco irados e sempre totalmente seus.   

A. ALVAREZ, O Deus Selvagem, Companhia das Letras, 1999.


vivissecção


li numa antologia de poetas norte-americanos
você foi a única a morrer
olhos vazados cor de fogo de jacinto & enxofre
ainda dispostos a se irar
coração arrancado bem na frente dos filhos
você nem teve tempo de gritar
ovelha na cerração
desorientada & com medo
trinta anos apenas já sacrificada
golpeada por machado
comida por ervas daninhas



Ney Ferraz Paiva, Não era suicídio sobre a relva


sábado, 30 de julho de 2011




AMY MORTA POR WILLIAM BURROUGHS?
Amy Winehouse a vítima de um jogo entre bêbados que acabou mal

O esforço de explicar um vício, conferir-lhe um lugar na economia do ego, talvez seja sempre uma empresa voltada ao fracasso.
J. M. Coetzee sobre William Faulkner


Amy Winehouse poderia ter sido personagem de Beckett, diga-se: uma personagem bem mais decidida, até mesmo para a morte. "Logo ela estará bem morta, apesar de tudo". Mil sinaizinhos indicam. O que Malone (Malone morre, Beckett) tenta prorrogar de uma data a outra, Amy sabe de antemão que muitas festas vão ter que passar sem ela. E não exatamente as festas de são João Batista, do 14 de julho ou da liberdade. Sequer as da transfiguração e assunção. Amy fez todo esforço para ausentar-se. Amy não tava nem aí pra coisas como sucesso e fama. Fez gato-sapato, desdenhou do fato de a terem reduzido a uma celebridade, quando queria ter feito muito, muito mais com a música. Porém tudo foi truncado, deixado distante da personagem que poderia ser – não a que foi assomada pelo pitoresco que a mídia se põe a exibir. É foda, mas é sempre isso. Poderia morrer hoje, ontem ou amanhã. Nenhum espanto mais seria cabível. O serviço sujo está feito. E Amy, por seu turno, se esforçou, precipitou as coisas. Tudo a ver com Basquiat, pensei de imediato quando soube. Ter que decidir por si mesmo. Não ficar neutro e inerte num ambiente de irradiações falsas, negativas, de incompleta atrofia do sensível. Não se pode dizer que ainda role segredos sobre os primeiros e os últimos passos no universo pop. Tudo acontece em um terreno comum, onde a escória circula livremente: traficantes, prostitutas, bajuladores, proxenetas, falastrões, jornalistas de aluguel e similares. De fora e por fora, o grande público espectador assiste, consome e comunga. Pode durar anos e render muito. Como Willian Faulkner, a vida inteira um alcoólatra agudo e crônico. Pode durar pouco e render muito mais ainda. Num ímpeto de impaciência antecipar o fim. Nos dois casos, a saída como de uma regra alternativa: exagerar, extravasar, passar da conta em tudo. Ser o primeiro a se livrar de entusiasmo e motivação. Todos olhando o astro se desintegrar. decidir por si mesmo... a menos que um outro William, o Burroughs resolva a parada a seu modo: entre na história e aperte o gatilho.


Ney Ferraz Paiva
Imagem: "The Only Good Rock Star is a Dead Rock Star"
Amy Winehouse "shot" by William Burroughs instalation, by Marco Perego. Half Gallery, New York City.