o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 8 de junho de 2011


À GUISA DE RETIRO


En una noche oscura,
con ansias en amores inflamada,
[...]
En la noche dichosa
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba cosa,
sin otra luz y guía,
sino la que en el corazón ardía.

São João de la Cruz
Canciones del alma


Retirei-me por um dia da vida. Passei-o na cama com histórias policiais. Pode parecer brinquedo tal retiro. Mas na verdade é lindo e transparente. Retiro-me do mundo, não mostrando a ninguém minhas feridas. Não mostro as minhas nem a Deus. Respondo aos ataques do mundo fazendo corpo mole. É num desses de corpo mole que morrerei sozinha como um homem nu.


Mas um dia mostrarei a Deus a minha face. E esta será tão terrível que Ele se assustará. Minha face lhe dirá: olhe, olhe o que você fez de mim ao me fazer humana. Más será a cara de um cadáver sem susto, já sem perigo de morrer, nada mais tendo a temer. Quando eu perder meu corpo triste ficarei de espírito livre e solto nos ventos das montanhas. Sem nada o que fazer por toda a eternidade. Pousando numa árvore de tronco escuro, ora pousando numa das rochas da terra. As grandes perguntas me aterrorizam. Não ouso fazê-las. Mas eu vou ser alguma coisa depois de morta? E pra quê?


Estou escrevendo na cama, deixei de lado por um instante o livro que lia. Sinto-me sozinha em pleno centro civilizado do mundo. Em baixo do meu edifício estão britando a rua num ruído incessante e infernal. E no meio disso estou eu em silêncio, repousando do último ataque que a vida me deu e que foi quase fatal. Só de quem se ama tanto é que pode partir a grande flechada que nos atinge em pleno rosto espantado. Não me queixo: só que me retiro de cena e faço corpo mole. Mexi-me demais no mundo das paixões e agora recolho-me para lamber minhas feridas ainda quentes de sangue. Não, não estou fazendo confidências. nunca a úmida confidência. E sim o seco depoimento de uma mulher sem ilusões. Pouco me resta, pouco tenho a perder. Estou livre. É uma liberdade grave e muda. Também com certa tristeza que existe na liberdade. Mas sinto que coisas me prendem ao mundo e espero morrer sem que essas coisas me sejam tiradas. Não quero viver muito por medo de dar tempo de me cortarem em pedaços.


Com estilo sem estilo dos bons contistas de história policial, aprendo a relatar, aprendo a denunciar. Eu denuncio a pureza do mundo. Denuncio as trevas em que vivemos, trevas de ambições e desejos que se reviram como cobras empilhadas. Desço fundo no meu retiro espiritual. E por estranho que pareça será do fundo de meu abismo que renascerei com um rosto calmo, quem sabe se até mesmo com a leve força de um sorriso.


Minha cama é dura , as histórias são duras, minha luta é dura, as histórias que vivi são duras. Aceito o desafio. Mas estou no momento sem muita força. Eu quereria poder escrever sobre pedras e não sobre homens. Quero a seca engenharia dos guindastes. Quero este ruído dos britadores que riem alto na luta.


Li hoje histórias de homens que não podem mais resistir – e eu hei de resistir? A tentação do pior é grande e, para não sucumbir a ela, apago-me, apago a chama de minha vida pequena. Reduzo-me a quase zero. Só me resta o ritmo respiratório leve.


E é este ritmo respiratório, que, bem sei, me levará a me levantar desta cama e de novo desejar. Desejar o quê?


Desejar apenas que esse ritmo respiratório tão leve perdure um pouco mais. Para eu poder beijar uma criança. Tudo tem que ser bem de leve para eu não me assustar e não assustar os que amo. Pedem-me pouco, pedem-me quase nada. O terrível é que eu tenho muito para dar e tenho que engolir esse muito e ainda por cima dizer como delicadeza: obrigada por receberem de mim um pouquinho de mim.


Acho que tenho dito. Resta-me me levantar dessa falsa cama de enfermo e começar ainda desajeitadamente a lutar. Tudo isso que eu escrevi, agora, é pra mim mesmo, não é para ninguém mais. Sou dura na queda. Adeus.



Clarice Lispector, texto não datado. Fonte: Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa. Publicado como pós escrito no livro de ensaio “Línguas de Fogo”, Claire Varin, São Paulo: Limiar, 2002.

sexta-feira, 3 de junho de 2011




 
"Está acabado"
Samuel Beckett, Fim de partida
Imagem: Louise Bourgeois, Célula (Arco da Histeria)


As tecedoras


Eu as conheço, as horríveis, as tecedoras envoltas em penugem
em cores que crescem das mãos, do fio
até o coágulo trêmulo movendo-se na rede de dedos ávidos.
Filhas da sesta, lesmas pálidas escondidas do sol,
nas bacias deixadas nos pátios crescem seu veneno e sua paciência,
nas varandas ao anoitecer, nas calçadas dos bairros,
nos espaço sujo de buzinas e lamentos do rádio,
em cada vazio onde o tempo for um pulôver.
Tecem estupidez, lágrimas e desmemória,
tecem, dia e noite tecem a roupa de baixo,
tecem a bolsa onde se afoga o coração,
tecem sinos encarnados e luvas roxas para nossos joelhos.
Tece, mulher verde, mulher úmida, tece, tece,
Amontoa em tua saia matérias putrescíveis
de onde brotaram teus filhos,
Essa lenta maneira de vida, esse óleo de escritórios e universidades,
Essa paixão de domingo à tarde na arquibancada.
Sei que tecem de noite, em horas secretas, levantam-se do sonho
e tecem em silêncio, nas trevas; já fiquei em hotéis
em que cada quarto às escuras era uma tecedora, manga de camisa
cinza ou branca saindo de baixo da porta; e tecem nos bancos,
atrás dos vidros embaçados, tecem nas latrinas e
nos frios leitos matrimoniais tecem de costas para os roncos,
e nossa voz é o novelo para teu tecer, aranha amor, e esse cansaço
nos cobre, agasalha a alma com ponto de cruz
ponto de cadeia Santa Clara,
a morte é um tecido sem cor e os estás tecendo para nós.
Lá vêm, lá vêm! Monstros de nome flácido, tecedoras,
Dedicadas donas de casas nacionais, escriturárias, louras
manteúdas, pálidas noviças. Os marinheiros tecem,
os doentes cercados de biombos tecem para a insônia,
do arranha-céu descem enormes franjas de tecido, a cidade
está embrulhada em lãs que parecem vômitos verdes e roxos.
Já estão aqui, já se levantam sem falar,
somente as mãos onde agulhas brilhantes vão e vêm,
e têm mãos na cara, em cada seio têm mãos, são
centopéias são centomãos tecendo num silêncio insuportável
de tangos e discursos.



JULIO CORTÁZAR. Último round. Tomo I. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.206-9.
imagem: Louise Bourgeois, “Spider Home”, 2002.


segunda-feira, 23 de maio de 2011






assinado o abaixo assinado


fazer-se um signatário, ali uma política possível, ou não? Fazer que se lembra da função um tanto deixada de lado a do intelectual - aquele que se expressa sobre questões que assaltam o espaço público e os rumores do tempo histórico-mundial. Está-se a pensar em Zola, Sartre, Camus, Semprum, Merleau-Ponty, Escobar, Marcuse, Duras, Glauber Rocha, e tantos, tantos. Nomes, são nomes à história - nomes, outros nomes - mas nomes não nos seriam intensidades, formas-modos da à história ali quem sabe ela a encontrar uma parede que a resgatasse do seu livre curso à reatividade, o famoso devir reativo da história que parece sempre e sempre dar as margens de que se nos volte, de que se nos retorne o pior, o que haja de pior (visão de horror de Zaratustra), os fascismos todos tomados desde a algibeira até que se nos forje o rosto sisudo da conformidade? Nomes, nomes, mas por vezes não seria o que a emperra a este devir reativo, o que o faz estancar de sua monótona cadeia da existência - como que na grita de um Kafka, quem sabe um outro do mundo?! Ou nas recusas de um Barthleby, ele já o engastado do tanto o que se lhe exigem, e então não mais? Quisera o tempo da crise lançar as discussões ao tanto delas. Quisera o tempo às crises nos lançarem para bem mais além dos seus efeitos de superfície - onde nos deliciamos tantas vezes com as marolas, as línguas de areia e seus castelos, os nomes escritos rápidos rapidíssimos até que as ondas. Quisera o tempo às crises deflagrar violentas insubordinações - será se se lembra os dias em que se esteve a pensar isto, creio que não faz tanto tempo assim? A leitura dos textos de ainda há pouco nos aproxima o imediato daquelas horas, daquelas urgências. Penso no Foucault a dizer do movimento de um só homem a dizer 'não obedeço mais' face a um poder que o amesquinha. Penso na voltade de transcender (não uma transcendência, um transcendental) às agruras do 'estar aí' do personagem Jorge de Vergílio Ferreira em seu romance Nítido Nulo. É que ele estava à morte, condenado que estava, e o tempo que lhe restava era a totalidade do tempo de sua vida como sendo a de um tempo que resta. E então, o que fazer? Pergunta magnífica, e urgente. Pergunta ela toda depositada ao tanto do intolerável. Está-se à crise, não? Sempre então a recordar o Negri a dizer da crise a condição ontológica à criação. Se trata de repensarmos a ingerência ubíqua, a condição transcendental das agências - sua hipertrofia, os desmandos não como algo um algo do agora - por conta desta ou daquela exigência, mas a condição na que se nos plantou o 'exigir' contínuo que se calca no quê? No suposto ideário da qualidade? Mas onde a qualidade - será que apenas ali, e por estes meios? Será que apenas 'no quando' ao conforme aos supostos meios que se nos planta em injunções descabidas a laminar o que, tantas e tantas vezes, é o que temos de melhor - mais pontente e intenso? Da laminação do capital na fabricação do normatizado - falas que ecoam a um Guattari dos 70', e mesmo o dos 80'. Das regrinhas ao mediano, medíocre - um Foucault à cabeceira. Do assalariamento como o que avilta o trabalhar do trabalho, lembranças a um velho Marx, e das fabulosas leituras de um Carlos Henrique Escobar. Da crítica radical e aos martelos ao apequenamento em que se está ao depósito quando se está apenas e tão somente a cumprir as funções de funcionário público, o intelectual às migalhas uma vez as razões de estado a dizer a ele todo os dias o seu dia que se repete (o beijo na boca corrido que já são às horas... o abraço contido que já é o tempo, o rasgo na arte de que ele pode porque se trata do 'sério'), um Nietzsche aí a dizer de si que ele nada que seria capaz não fosse uma aposentadoria a Basiléia? São tantas as letras que se nos retornam em auxílio, tantas as palavras, a escritura que nos arranja um lugar ao sol quando parece que é do inverno que não se dobra os ares gris do tempo. Mas o presente não nos é amarra, não nos é o que nos acerca ao seu dentro enfarpado, os carretéis de arame no entorno dos hectares, os grileiros ali a ver se se evita o levante, o capitão do mato a arfar o peito como quem toma a si o sonho dos senhores, e estes os senhores a gozar o gozo perfeito dos que não se misturam ao mundo. Parece-me o presente é o que estamos em vias do não mais. Deleuze, Foucault. Seria o caso solicitar aos bons e aos amigos que perdoassem se eu os uso, ou se eu os cito. É que deu-se-me o hábito ao tanto do que estive a fazer. Ensinar em espaço público. Desde há tanto. E mais do que isto, o estar a ler, a tomar o tempo os modos do inútil - o homem parado, estancado diante de um corpo de letras agarrado a um suporte, um livro ali. O homem que lê, esta inutilidade. Mas é que se deu o hábito. Bourdieu andou dizendo o quanto é que custa a que um hábito ele se nos descole. Joga-se, outro modo, com isto aos mercados do simbólico, e então segue-se citando a ver se se consegue algum crédito ao dizer do que se diz. Mesmo que não fosse necessário o citar estando já tudo ali sob a planura da escrita - que é rasgo e corrupção. Tempos de crise. Espera-se espero junto que os olhos ganhem a dimensão do mundo e que não se esteja apenas e tão somente a pleitear por um 'ok' que nos faça retomar o prumo das coisas, do estado de coisas, e que se nos faça crer que tudo é belo e bom, que o azul é toda hora, e que a metafísica é uma boa casa ao que não a têm. Espera-se espero e no meu chamado busco quem sabe arrancar-me a solidão dos que não creem. Mas se se escreve é por um qualquer motivo que não o do silenciar. Silêncio que tantas vezes (nem sempre), mas silêncio que tantas vezes é o dos vencedores, o do coro afônico dos contentes, o dos ganhadores que acertam em cheio o milhar do que avilta aos muitos. Silêncio que é um modo aos fascismos. Lembro-me de um personagem de Primo Levi em seu maravilhoso "É isto o homem?", se trata do personagem Elias Lindzin. Dele - Primo Levi conta que era como um cavalo em força, sua tração era inaudita entre os corpos extenuados do Lager. Elias era aquele que carregava sem grandes esforços três, quatro sacos de cimento, tijolos aos montes sobre o peito de aço, enquanto os outros lutavam com a sua fragilíssima condição: levantar um saco, levar aqui e ali o desconjuntado das pernas braços e o quê fazer. Elias se ria dos outros, os desafiava, os desdenhava. Elias era aquele que, vez ou outra, se recolhia aos cantos onde ninguém podia ir, e de lá voltava com os bolsos cheios, e a pança satisfeita. Não demorou para que Elias - que era quem melhor trabalhava - deixasse de trabalhar. Não demorou. Tornou-se fiscal do trabalho dos outros - espécie de consultor dos SS, fazedor de delação, um ótimo candidato às batatas de que um Machado de Assis disse estar reservada aos vencedores. Encerro este longo email com as palavras de Primo Levi sobre Elias Lindzin: "A questão é séria, mas vamos parar por aqui. Nossas histórias são histórias do Campo de Concentração; já se escreveu muito quanto ao homem fora do Campo. Desejaríamos acrescentar só uma coisa. Elias, até onde nos foi possível julgar e até onde a frase possa ter um significado, era, provavelmente, um homem feliz".


André Queiroz
imagem: gravura ney ferraz paiva

sexta-feira, 20 de maio de 2011


A RESPEITO DO SUICÍDIO DO FUGITIVO W. B.


Disseram-me que você levantou a mão contra si próprio,
Antecipando-se ao magarefe.
Oito anos exilado, observando a ascensão do inimigo,
Por último levado a uma fronteira intransponível,
Consta que você transpôs uma transponível.
Reinos desmoronam-se. Os chefes dos bandos
Comportam-se como estadistas. Os povos
já não se veem mais, debaixo dos armamentos.
Assim, o futuro encontra-se nas trevas, e as boa forças
São fracas. Você viu tudo isto.
Quando destruiu o corpo atormentável.


Bertolt Brecht
imagem: ney ferraz paiva

terça-feira, 17 de maio de 2011



ALEGRIA BREVE, de Vergílio Ferreira


Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele pátio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quanto estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o retângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome. Ainda há cães pela aldeia? Babam-se e uivam sinistramente. Tomo uma pedra, disparo-a contra um, desaparecem ambos a ganir. E de novo o silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem os olhos. Olho-a sempre, interrogo-a. Quando estou cansado de cavar, enxugo o suor e olho-a ainda. Um diálogo ficou suspenso entre nós ambos, desde quando? – desde a infância talvez, ou talvez desde mais longe. Um diálogo interrompido como tudo o que aconteceu e que é necessário liquidar, saldar de uma vez. Estou só, horrorosamente só, ó Deus, e como sofro. Toda a solidão do mundo entrou dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchado – sou o Homem! Do desastre universal, ergo-me enorme e tremendo. Eu. Dois picos solitários levantam-se-me adiante, lá longe, trêmulos no silêncio. Entre eles e a aldeia há um vazio escavado na montanha, donde sobem as sombras e a neblina. Pela manhã a neve infiltra-se pelos desfiladeiros, e toda a serra e a aldeia flutuam. Então é como se o tempo se esvaziasse e a vida surgisse fora da vida. Mas agora o ar é puro, transparente, como um sino na manhã. Só as sombras se erguem desde o fundo. Com a neve acumulada tomam um tom violáceo. Mas é um tom nítido como o espectro solar. Os dois picos, de arestas limpas, vibram imperceptivelmente no céu úmido e já escuro.

Trago o corpo de minha mulher embrulhado num lençol. É estranho como pesa. Dir-se-ia que a terra o exige com violência. Gostaria de a olhar pela última vez, e no entanto não é fácil. O lençol branco confunde-se com a neve. Assim é como se o corpo se confundisse também. A toda a borda da cova, a neve ficou suja da terra acumulada. Será a fundura bastante? Metro e meio, talvez. De comprimento, está bem. Encosto-me ao cabo da enxada e é estranho que não reconheça em mim um sentimento distinto. Cansaço, decerto, e o orgulho e o medo. Será tudo o mesmo? E a resignação, talvez, ou mesmo a plenitude. Estás velho, como o não sabes? estás velho. Talvez seja assim a velhice: um esgotamento longo de tudo. E no centro, breve, uma verdade final. Como um objecto precioso que se tira da terra e se limpa – qual a tua verdade final? Mas estou tão cansado. Agora não. Olho a aldeia abandonada, perdida na montanha, ouço o silêncio. E sinto-me aí disperso, irisado em espaço, íntegro e puro. E nu. Mas quando vou a erguer o corpo, não resisto: subtilmente afasto as dobras do lençol. Então Águeda aparece-me à última luz da tarde de Inverno. Magra, sisuda, indignada com a vida. Pus-lhe o terço nas mãos, um pouco talvez para a reconciliar consigo, para ter um sono mais fácil. Mas a face agreste de boca cerzida, as mãos quase enclavinhadas fixaram para sempre a imagem de um desespero.

– Dorme.

Cubro-a de novo, suspendo-a a custo. Afinal a cova ficou curta: os joelhos soerguem-se-lhe um pouco. Uma das dobras do lençol deslizou e tenho de me debruçar para a compor. Baixo-me, tremente, uma onda de suor vem bater-me em todo o corpo – que é que me assusta? Onde é que? É tudo tão grande. A noite cresce no céu, é necessário acabar tudo de pressa. Sobre nós, os ramos nus da figueira começam a apagar-se na sombra. A terra cai na cova com um rumor fofo. Vou à loja buscar estacas para fazer uma cercadura. Um dia ponho-lhe uma lápida, talvez, ou alinho à volta lascas de pedra com se faz nos canteiros. Possivelmente cairá neve de noite e apagará aquelas manchas de terra. Mas é preferível cobri-la já com neve limpa do quintal. Com a pá vou apanhando pequenos blocos brancos que espalho sobre a sepultura. Depois aliso a superfície para que tudo fique perfeito. Entro enfim em casa e estiro-me num sofá, voltado para a janela de postadas abertas. Para lá do grande vazio, os dois morros sobem pelo céu com uma alvura pálida. Ligeiramente parece-me que se movem quando os fito intensamente.


Editora Portugália, Lisboa, 1965
imagem: ney ferraz paiva

quarta-feira, 11 de maio de 2011



Ernesto Sabato: o delirante morreu enterra-se o estrangeiro


Ney Ferraz Paiva


Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Sabato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.Franco Mogni, entrevista Sabato, Revista Che, anos 1970.
Arisco é o destinoesta é a lição de etimologia que se pode arrancar à obra de Ernesto Sabato e a ele mesmoescapar tanto na vida quanto na escrita. Ele que duelou com Borges e sobreviveu, jamais como adulador, a fazer concessões nem fingimentos, ainda que ferido mortalmente por um diálogo de alta voltagem entre rivais. Ele que sempre recambiou a escrita aos lugares de túneis e sombras entre homens feridos, quase sempre abatidos. Mais do que queimar livros há quem mande trucidar homens. Livros valem menos do que sentenças de morte. O grande-cão da morte ronda a América Latina. O Anjo Exterminador e seus incontáveis discípulos cegos. A escrita de Sabato não foi menor que o contexto adverso a que ele resistiu e devemos continuar resistindo. Escrita que incitou um contato intensivo com a população oprimida da Argentina. Com a juventude e as mães dos desaparecidos políticos. Mas escrever é menor que tudo isso, Sabato compreendia, e por isso soube manter-se também como um homem à parte, um outsiderdistante, talvez, ou tímido, com um problema visual a bloqueá-lo cada vez mais num ambiente retrospectivo, silencioso, mas que não paralisou a sua escrita nas reminiscências e autoexílios da emoção em um tempo turvo. Sabato o protagonizou. Ora nas ruas, ora pintando, ora escrevendo. Fez a Argentina falar ao mundo. Uma Argentina eminentemente política. Se nunca ninguém viu o Estado, é talvez porque de fato ele não exista, no entanto, as ditaduras latino-americanas não foram regimes de idealismo transcendental, o que inclusive certos espíritos altivos que caem de quatro pelo poder chegam a considerar. Às ditaduras se juntaram o capitalismo, o tribunal, a igreja, a imprensa. Todo ardil dos farsantes. Sucessivos governos dos Estados Unidos, não menos totalitários e espúrios, sobretudo porque tratavam de executar ações que visavam impor “padrões mais elevados de Estado” como forma de desmobilizar os males do marxismo pela América Latina e alhures. E todos esses vestígios de realismo não poderiam ser simplesmente descartados como se Sabato abrisse mão de apenas um entre tantos temas artísticosum estilo, uma inspiração fugazantes, Sabato teve que captar o momento expressivo da escrita e não sucumbir. O que não é pouco, é certo. Por essa época os escritores latino-americanos foram lançados a essa escolha, mas nem todos perceberam claramente do que se tratava. Foi através de Sabato que, pela primeira vez, muitos se deram conta. Sabato ousou dizer o que se passava à frente; e imaginou o tempo que se viviaisso de fato, não é pouco. E atentou chamar-se constantemente de homem cético. O ceticismo é um efeito que a literatura recolhe de suas entranhas e que se desdobra em vastas operações de escala entre ritmo e sentido. O ceticismo da escrita sem metáforas. De conceito, julgamento e conclusão. Talvez, por isso mesmo, se possa aproximar Sabato de um certo Walter Benjamin. Ambos aliados num mesmo risco de singularidade a que nem todo grande escritor adere. Talvez ao longo do vasto percurso da indiferença muitos fracassem. Mas como não deixar o sofrimento atravessar o vale estreito entre a vida e a escrita? Seguir sem enfrentar os efeitos de desvalorização do homem? Não cumular nenhum recalque? Sabato teve por todas essas razões (e mais algumas) uma trajetória difícil, de embates e combates imprescindíveis para continuar vivendo, gravados em suas feições. E que hoje se faça outro comércio de fronteira entre os governos latino-americanos, os Estados Unidos e a Europa, como se os dois íltimos estivessem em seu próprio território, impondo o que venha a ser o desalentado valor dos termos “democracia”, “liberdade”, “legalidade”, repisando instantaneamente alguns sinais de paródia, algumas variações de rótulos, abertas combinações de incerteza e medo, consignados os erros, evidenciados os equívocos e anunciado o terror, com os quais talvez não se quisesse mais ver negociadas e desistimuladas as possibilidades de variação, diversidade e revezamento da justiça. Sabato e todos os seus leitores talvez tenham, numa certa medida, subestimado que a história é reativa. Que estão impugnados os finais felizes. Que não se pode pretender deter o tempo em seu túneis e tumbas. Mesmo se nessa operação um dos maiores escritores e críticos do século XX esteja envolvido. E que tenha morrido num lugarejo de Buenos Aires, aos 99 anos. Um delirante e extenso ritual de “carpe diem”.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       




Ernesto Sabato faleceu em 30 de abril de 2011, em Santos Lugares, Argentina. Autor dos memoráveis e atualíssimos O Túnel (1948) Sobre Heróis e Tumbas (1961). Como Borges, Sabato não ganhou o prêmio Nobel.



sábado, 30 de abril de 2011



ESCOLA


A notícia veio de supetão: iam meter-me na escola. Já me haviam falado nisso, em horas de zanga, mas nunca me convencera de que realizassem a ameaça. A escola, segundo informações dignas de crédito, era um lugar para onde se enviavam as crianças rebeldes. Eu me comportava direito: encolhido e morno, deslizava como sombra. As minhas brincadeiras eram silenciosas. E nem me afoitava a incomodar as pessoas grandes com perguntas. Em consequência, possuía ideias absurdas, apanhadas em ditos ouvidos  na cozinha, na loja, perto dos tabuleiros de gamão. A escola era horrível - e eu não podia negá-la, como negara o inferno. Considerei a resolução de meus pais uma injustiça. Procurei na consciência, desesperado, ato que determinasse a prisão, o exílio entre paredes escuras. Certamente haveria uma tábua para desconjuntar-me os dedos, um homem furioso a bradar-me noções esquivas. Lembrei-me do professor público, austero e cabeludo, arrepiei-me calculando o vigor daqueles braços. Não me defendi, não mostrei as razões que me fervilhavam na cabeça, a mágoa que me inchava o coração. \inútil qualquer resistência.

Trouxeram-me roupa nova de fustão branco. Tentaram calçar-me os borzeguins amarelos: os pés tinham crescido e não houve  meio de reduzi-los. Machucaram-me, comprimiram-me os ossos. As meias rasgavam-se, os borzeguins estavam secos, minguados. Não senti esfoladuras e advertências. As barbas do professor eram imponentes, os músculos deviam ser tremendos. A roupa de fustão branco, engomada pela Rosenda, juntava-se a um gorro de palha. Os fragmentos da carta de ABC, pulverizados, atirados ao quintal, dançavam-me diante dos olhos. "A preguiça é a chave da pobreza. Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. D, t, d, t." Quem era Terteão? Um homem desconhecido. Iria o professor mandar-me explicar Terteão e a chave? Enorme tristeza por não perceber nenhuma simpatia em redor. Arranjavam impiedosos o sacrifício - e eu me deixava arrastar, mole e resignado, rês infeliz antevendo o matadouro...

Dias depois, vi chegar um rapazinho seguro por dois homens. Resistia, debatia-se, mordia, agarrava-se à porta e urrava, feroz. Entrou aos arrancos, e se conseguia soltar-se, tentava ganhar a calçada. Foi difícil subjugar o bicho brabo, sentá-lo, imobilizá-lo. O garoto caiu num choro largo. Examinei-o com espanto, desprezo, inveja. Não me seria possível espernear, berrar daquele jeito, exibir força, escoicear, utilizar os dentes, cuspir nas pessoas, espumante e selvagem. Tinham-me domado. Na civilização e na fraqueza, ia para onde me impeliam, muito dócil, muito leve, como os pedaços da carta de ABC, triturados, soltos no ar.


Graciliano Ramos, Infância
imagem: Janet & George

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A barca neobarroca



O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.
Pascal, Pensamentos

Ao Capitão do Fim

A poesia de Paulo Plínio Abreu goza ainda do enclausuramento a que foi lançada. Seu estilo desnorteante promoveu, nas raras e esparsas vezes em que seu texto veio a público, a segmentação endurecida de suas margens. Pelas idiossincrasias sintático-semânticas, o desenvolvimento circular dos temas, as ambiguidades crescentes dos versos: clareza e ilegibilidade, amplitude e aniquilamento, limiar e travessia. Longe de seu destinatário, a obra sobreviveu por conta de sua própria fantasmagoria. O nome Paulo Plínio Abreu suprimiu, com o tempo, o título incerto do único livro que o poeta organizou sem nunca o publicar. Morto aos 38 anos, seu nome perseverou e impôs uma obra contra toda e qualquer redução e apagamento. Através desse nome o imaginário latente do poeta se manifesta ainda hoje. É certo dizer, portanto, que Paulo Plínio Abreu é uma escritura. 

Um nome que, se pronunciado, evoca as exigências literárias mais radicais. Nos longínquos anos 1930, Paulo Plínio Abreu se movimentou em busca dos lugares para onde a maioria dos outros não se dirigiam. Uma esfera mais alta de escritura que se quis desmembrar de um corpo estético sem vigor, o naturalismo representacional, há muito impossibilitado de gerar influências, transformações, metamorfoses. O poeta entende esse processo de eliminação e o ultrapassa. Porém, mais do que inovação, sua poesia é reinvenção. Ela se revigora do barroco explosivo que incendeia. E vai estabelecer uma hermenêutica que se fundamenta numa filosofia particular de ruptura e rebelião, assumindo proporções a um tempo apocalípticas [“Inevitavelmente os cães uivarão dentro da noite/e o vento sacudirá as árvores frias do jardim”] e de esplendor [“Eu subi do fundo do mar como um líquen liberto/para ouvir a sua voz que era imensa”]. Pelo mar revolto e infatigável de uma retórica que se expressa em busca da vastidão, sem dispensar os detalhes e as minúcias, as imagens inversas se sucedem. Espaços fechados e escondidos se desvelam, como um sistema que se reconstitui. 

Um ambiente que se abre a toda passagem e a toda circulação. Que se une e se desmembra. Que é parte e é todo. A “força de um pensar antigo” que o autor propõe e promove, desencadeando um choque na aparente unidade entre mito, símbolo e alegoria. Uma engrenagem, por assim dizer, neobarroca, de uma barca “quase ave” [anjo, mas também livro] que se lança de um porto poético remoto [“De um tempo imemorial eu acompanho as tuas viagens”] para se integrar ao fraseado moderno de Mallarmé, Rilke, Fernando Pessoa, e mesmo ao surrealismo, e daí se propagar – pra frente e pra trás –, traçar rotas, conexões. Chegar mesmo, pela sua vidência, aos transcursos de Nietzsche e Walter Benjamin. Mas tal máquina de desejo acabará por operar, através da “noite/carne/vento/ilhas”, apenas um inevitável encontro com a morte – esse “país estranho” onde misteriosamente se conjugam imagens inconciliáveis como “desolação/naufrágio/amor”. Supondo talvez, por último, um sempre esperado triunfo. A descida vertical que sugere o “retorno” e a “pausa” de Sísifo, que tanto interessou a Camus. Aqui, num mergulho submarinho, mas de igual modo sem fim. Este o triunfo da linguagem, de sua forma transformada e reescrita. Pelo que pressente, oculta e revela. A palavra “anjo à porta de Tobias”. Dentro ou fora da cidade, próximo ou a caminho pela planície ou pelas águas, a mesma viagem sem saída, em que num certo ponto nunca anunciado o poeta/anjo se percebe acorrentado, deslocado, caído. Desterritorializado desde sempre, sem ter como reagir. Sua travessia é “um corredor” longo e fechado. A vitória, vacilante e desproposital. A morte não oferece linha de fuga. 

Há apenas um percurso possível para quem escreve – o mapa da escrita. Assim Paulo Plínio Abreu se lançou além da pequena enseada, da pequena e isolada província, da pequena língua. Seu mapa é o mistério maior. O convite fatal. O eclipse. São estas as alusões que se multiplicam e deixam para trás uma “Tróia incendiada”, num texto que se desfaz e refaz pelo jogo da leitura e desleitura. Mas como pode se dar isto hoje? A única edição da poesia de Paulo Plínio Abreu, feita em 1978, precariamente editada e distribuída, não se conhece mais. Vive seu inferno pré-informática, as desgraças [ou seriam as bênçãos?] do inacessível num mundo sem os meios digitais. O covil dos inéditos. Dos leitores que tendem a ler somente o que todo mundo lê. Essa retrospectiva edição feita por uma não-editora, mas preparada por alguém que conheceu o poeta e foi seu raro e atento leitor, o professor Francisco Paulo Mendes, urge que se reedite por uma editora comercial, para que possa circular em todo o Brasil. Que se gaste com ela uma pequena parte dos milhões da Secretaria de Cultura do Pará e do seu marketing institucional. Nesta edição já tão sem vida no mundo das letras, os “poemas esparsos” em nada divergem ou se excluem dos 21 poemas iniciais, selecionados pelo autor para compor o livro que parcialmente organizava. Convivem com a mesma veemência, apresentam as intercambiáveis modulações de uma mesma escrita, fazendo supor que se constituem originalmente e que se engolfam no mesmo enredo subterrâneo da composição de um livro que parece não ter como perder sua aura. Esse trabalho e esse esforço de reprodução da obra de Paulo Plínio Abreu se estendem até nós, como uma rede invisível lançada em torno de distintas e inesperadas formas de linguagem e das novas tecnologias. Tal edição terá que resolver este e outros impasses. Limpar o mofo e as traças que abalam a saúde desta obra. Tanto mais pelas opiniões e críticas desacertadas, pelas elucubrações e invectivas superficiais e equivocadas. Pela obsedante clausura. 


Ney Ferraz Paiva
imagem: Cesar Calvo
http://poesiaspauloplinioabreu.blogspot.com/

sábado, 23 de abril de 2011


SONHEI
por Radovan Ivsic

1.
Só, completamente só, caminho sobre uma nuvem. Minhas pernas são acariciadas por uma relva tão transparente que não a vejo. Estou maravilhado pelo silêncio. Tomo um pouco d’água escura e transformo a nuvem numa jovem que amo loucamente até a minha morte, na solidão.

2.
Estamos sentados na beira de um rio, ela e eu. Ela me fala, e o murmúrio de suas palavras torna-se uma nuvem de cerejas que se pousa sobre meus cílios. Respiro calmamente e penetro nas imagens que ela teria desejado esconder de mim. Ela ri, depois pega uma montanha e a pousa sobre meus lábios, entre nossos beijos.

3.
Viro-me, vejo o mar de uma cor indeterminada e três conchas vermelhas. De um cipreste sai um cervo. De seu olhar tranquilo brotam avencas numa angra. Ajoelho-me para colher um pouco da relva escondida entre os seixos. Espero o cervo adormecer. Quando o vejo chorar lágrima após lágrima, cravo-lhe a relva entre os galhos. Uma jovem azul sai-lhe da cabeça e por inteiro tremo com os beijos nus que ela deposita sobre minhas pálpebras. Com um supremo esforço, abro os olhos para quebrar o segredo, mas uma lâmina de onda negra o arrebata e choro toda noite no vento, frio.

4.
Esta floresta é clara como seda. Um esquilo branco flui caudaloso nas ramagens e me traz a primavera desvairada. Pergunto-me se é preciso esperar até que o amor ecloda o galho morto da esperança ou se não seria preferível partir em direção à praia, entrar furtivamente na água e nadar amplamente até o alto mar, tão novo. Gostaria de andar, mas sinto que não tenho mais pernas. Tornei-me uma árvore e tenho folhas. Estou a ponto de brotar e rio, mas não é mais um riso, é o murmúrio ameaçador da minha nova folhagem. Deveria me preparar para o amor mas torno a me fechar e nado em direção ao sono.

5.
As cores me circulam e me sublevam. O que vejo então não é mais nem uma árvore, nem uma montanha, nem um camaleão, nem um arco-íris, nem o dia. De todos os lados, as flores nascentes me fixam, vêm e desaparecem por trás de minhas pálpebras, por trás de minha obscuridade. Banho-me com as algas nuas, e uma só vaga poderia fazer cintilar o pesado anel da tranquilidade. O silêncio se espalha como uma onda em torno da pedra caída num lago imóvel, largo, onde nem mesmo o eco pode salvar o passado. Em meu olho alguma coisa se mexe como o jogo jocoso dos seixos da torrente e depois há a árvore como uma sombra que eu gostaria de visitar mas permaneço petrificado. Parece-me que não posso me mexer senão à maneira do girassol, seguindo o sol.



Radovan Ivsic
tradução: Éclair Antonio Almeida Filho
imagem: Ney Ferraz Paiva

sábado, 16 de abril de 2011


lúcio-lúcifer


suave morte para os filhos é a ausência
tu que não os tiveste
ainda assim nos desamparas
suscitas do teu largo silêncio
a mensagem das pedras
– a casa assassinada


ney ferraz paiva
imagem: louise bourgeois, femme maison, 1947

segunda-feira, 4 de abril de 2011






salomão & eu descíamos aquela rua
quase sem nos mover
em direção aos confins da garganta
verdadeiro fim do mundo
onde nem o amor pode penetrar
talvez a morte
explosiva expulsiva viagem
no mar uivador  à noite
assoviando palavras efêmeras
tiragens excessivas
a senha da juventude pra sempre esquecida
desfeito sailormoon saído igual a si
si mesmo barroco pirateado em diversas bastardias
animal de duplas vozes rizomático
como um tratado de filosofia
leio mais uma vez a cópia de seu último e-mail
"a alta & a baixa do café não servem mais pra poesia
viva o roteiro experimental & livre de Oswald!"
ele me dizia desbragado cavalo do diabo às tontas sem freio
a rua nos descia estreita alameda ou cova
leva o nome & não ao homem torquato neto
belo marujo a nos arrastar ao fervor das águas fundas
jovem sem idade embalsamado & enterrado de pé em Teresina
"meu corpo sou eu atravessando os andes comigo contigo"
como em qualquer porto marítimo
navios invisíveis serpenteando frondosos
nenhuma vivalma nos seguia
apenas esse morto labiríntico
certo da nossa breve estadia
na enseadalinguagem
onde o cerco se fecha
a viagem se abre
luxuosa & oceânica avenida
dois velhos bucaneiros sem navio


ney ferraz paiva, nave do nada, 2004