Ernesto Sabato: o delirante morreu enterra-se o estrangeiro
Ney Ferraz Paiva
Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com
uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo
tempo. Sabato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os
dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos, num rosto que
mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer
parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Tira os óculos e sorri meio de lado,
acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O
último dos moicanos. — Franco Mogni,
entrevista Sabato, Revista Che, anos 1970.
Arisco é o destino — esta é
a lição de etimologia que se pode arrancar à
obra de Ernesto Sabato e a ele mesmo — escapar tanto na vida
quanto na escrita. Ele que duelou com Borges e sobreviveu, jamais como
adulador, a fazer concessões nem fingimentos, ainda que ferido mortalmente por
um diálogo de alta voltagem entre rivais. Ele que sempre recambiou a escrita
aos lugares de túneis e sombras entre homens feridos, quase sempre abatidos.
Mais do que queimar livros há quem mande trucidar homens. Livros valem menos do
que sentenças de morte. O grande-cão da morte ronda a América Latina. O Anjo
Exterminador e seus incontáveis discípulos cegos. A escrita de Sabato não foi
menor que o contexto adverso a que ele resistiu e devemos continuar resistindo.
Escrita que incitou um contato intensivo com a população oprimida da Argentina.
Com a juventude e as mães dos desaparecidos políticos. Mas escrever é menor que
tudo isso, Sabato compreendia, e por isso soube manter-se também como um homem
à parte, um outsider — distante, talvez, ou tímido, com um problema
visual a bloqueá-lo cada vez mais num ambiente retrospectivo,
silencioso, mas que não paralisou a sua
escrita nas reminiscências e autoexílios da emoção em um tempo turvo. Sabato o
protagonizou. Ora nas ruas, ora pintando, ora escrevendo. Fez a Argentina falar
ao mundo. Uma Argentina eminentemente política. Se nunca ninguém viu o Estado,
é talvez porque de fato ele não exista, no entanto, as ditaduras
latino-americanas não foram regimes de idealismo transcendental, o que
inclusive certos espíritos altivos que caem de quatro pelo poder chegam a
considerar. Às ditaduras se juntaram o capitalismo, o tribunal, a igreja, a imprensa.
Todo ardil dos farsantes. Sucessivos governos dos Estados Unidos, não menos
totalitários e espúrios, sobretudo porque tratavam de executar ações que
visavam impor “padrões mais elevados de Estado” como forma de desmobilizar os
males do marxismo pela América Latina e alhures. E todos esses vestígios de
realismo não poderiam ser simplesmente descartados como se Sabato abrisse mão
de apenas um entre tantos temas artísticos — um estilo, uma
inspiração fugaz — antes, Sabato teve
que captar o momento expressivo da escrita e não sucumbir. O que não é pouco, é
certo. Por essa época os escritores latino-americanos foram lançados a essa
escolha, mas nem todos perceberam claramente do que se tratava. Foi através de
Sabato que, pela primeira vez, muitos se deram conta. Sabato ousou dizer o que
se passava à frente; e imaginou o tempo que se vivia — isso de fato, não é
pouco. E atentou chamar-se constantemente de homem cético. O ceticismo é um efeito
que a literatura recolhe de suas entranhas e que se desdobra em vastas
operações de escala entre ritmo e sentido. O ceticismo da escrita sem
metáforas. De conceito, julgamento e conclusão. Talvez, por isso mesmo, se
possa aproximar Sabato de um certo Walter Benjamin. Ambos aliados num mesmo
risco de singularidade a que nem todo grande escritor adere. Talvez ao longo do
vasto percurso da indiferença muitos fracassem. Mas como não deixar o
sofrimento atravessar o vale estreito entre a vida e a escrita? Seguir sem
enfrentar os efeitos de desvalorização do homem? Não cumular nenhum recalque?
Sabato teve por todas essas razões (e mais algumas) uma trajetória difícil, de
embates e combates imprescindíveis para continuar vivendo, gravados em suas
feições. E que hoje se faça outro comércio de fronteira entre os governos
latino-americanos, os Estados Unidos e a Europa, como se os dois íltimos
estivessem em seu próprio território, impondo o que venha a ser o desalentado
valor dos termos “democracia”, “liberdade”, “legalidade”, repisando
instantaneamente alguns sinais de paródia, algumas variações de rótulos,
abertas combinações de incerteza e medo, consignados os erros, evidenciados os
equívocos e anunciado o terror, com os quais talvez não se quisesse mais ver
negociadas e desistimuladas as possibilidades de variação, diversidade e revezamento
da justiça. Sabato e todos os seus leitores talvez tenham, numa certa medida,
subestimado que a história é reativa. Que estão impugnados os finais felizes.
Que não se pode pretender deter o tempo em seu túneis e tumbas. Mesmo se nessa
operação um dos maiores escritores e críticos do século XX esteja envolvido. E
que tenha morrido num lugarejo de Buenos Aires, aos 99 anos. Um
delirante e extenso ritual de “carpe diem”.
Ernesto Sabato faleceu em 30 de abril de 2011, em Santos Lugares, Argentina. Autor dos memoráveis e atualíssimos O Túnel (1948) e Sobre Heróis e Tumbas (1961). Como Borges, Sabato não ganhou o prêmio Nobel.
Ernesto Sabato faleceu em 30 de abril de 2011, em Santos Lugares, Argentina. Autor dos memoráveis e atualíssimos O Túnel (1948) e Sobre Heróis e Tumbas (1961). Como Borges, Sabato não ganhou o prêmio Nobel.