o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011


HÁ UM FERNANDO PESSOA EM MIM QUE DEUS ME DISSE


tive sempre o mesmo pai a mesma mãe
eu que fui vário
nascemos como as pedras com todos os sexos
meu coração dá as ordens
cortejando mulheres
seres à deriva
indiagnosticáveis desejos
meu horóscopo é o mesmo de fernando pessoa
impostas certas cláusulas contratuais
o parentesco não me serve de nada
um a um eu os vi morrer todos eles
gagos de voz & de mãos
sem uma saída viva pra vida


ney ferraz paiva
imagem: fernando lemos

domingo, 20 de fevereiro de 2011





três anos de Paris
sitiado & sitiante
sob a força de um destino cego


um vago amor duas ou três paixões
nem deuses nem cantos
nem a beleza das mulheres


dispersar-se foi a forma que achou pra habitar a terra
ou ainda:certa zona louca de seu mundo interior
até o ponto extremo de não mais se distinguir nem se saber


mostrar a imagem nada além de imagens obter
cinquenta & um poemas – eis tudo
nem mito nem ciência nem razão
nenhum outro indício


houve ainda duas ou três cartas enviadas a Fernando
[trancara-se & sela-se pro amigo]
véu negro da palavra o silêncio
última intuição que talvez seja a verdadeira



ney ferraz paiva, do livro nave do nada
imagem: robert e shana parkeharrison

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011



m/m



vi teu novo livro
o velho rei ri uma outra vez
oracular & tipográfico
sol de mil línguas
sal do mar morto
palavras que se encaixam pra ser ouvidas longe
amalgamada infatigável enfurecida fonte
baforadas do velho credor
na rede em que lê-escreve ressoando
te roendo
bebe agora a primeira dose do dia -
à vossa saúde




ney ferraz paiva, do livro val-de-cães
imagem: marcia huber 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Os homens submersos voltarão?


Não sou um autor defunto, sou um defunto autor. 
Machado de Assis


Não há reencarnações literárias. À parte leitura e obra, o escritor é amorfo à ressurreição. Depois de sua morte temos que seguir em frente. Quando Carlos Drummond morreu, restava-nos ninguém menos do que João Cabral de Melo Neto, ainda que no Olimpo não tivesse havido nenhuma sucessão ou transição. Drummond e Cabral faziam parte do mesmo mundo incomensurável de todos os mortais. Nem mesmo nessa hora a literatura distingue seus filhos diletos. Toda passagem da morte para a glória literária é incerta. Os serviços pós morte de um escritor enfrentam o grave problema da invisibilidade que aniquila qualquer indivíduo. Há de se fazer seminários, simpósios e debates em torno de sua obra. Trocas de pensamentos com o além costumam imprimir certo vigor ao desaparecido. Documentários também costumam ajudar bastante. Mas nada é tão definitivo como publicar as cartas do falecido (ai do escritor que não escreve cartas!). É dessa forma que ele pode estar de volta, rompendo o silêncio que o quis aniquilar.



A edição de fevereiro da revista “Bravo!” publica matéria que praticamente ocupa toda a seção destinada à livros. É que Drummond está de volta. Cartas trocadas entre ele e Cyro dos Anjos serão publicadas este ano. Mas desde já podemos pressentir os sinais e as reviravoltas de sua aparição? Drummond foi um poeta que escolheu viver na República de Platão. Ao longo de meio século de lida com a palavra jamais se lançou a nenhum infortúnio. Acomodado, calmo e pouco dado à fala, foi acusado inúmeras vezes de exercer acriticamente e sem transparência o ofício. Mário Faustino chegou a assinalar que se tratava de um poeta que não manifestava “grande interesse pelo progresso da Poesia”, e que atravessou de forma opaca momentos cruciais da vida sócio-cultural de seu tempo. Desprendido do limbo, dessa vez as confidências do itabirano conseguirão abalar a inércia atual dos arraiais literários?



Uma primeira coisa a considerar, em se tratando de uma prática pessoal, é se as cartas superam aspectos como contexto e particularidade – e talvez a forma de se chegar a uma resposta seja avaliar os motivos que levaram Drummond a não escrever suas posições estéticas direto nos jornais. Se tudo era operado a partir de uma análise crítica rigorosa e não apenas como comentário subjetivo, destinado à confidência e ao desabafo sentimental. Pelo que se lê na revista, os excertos das cartas, tratados como “opiniões fortes” no título da matéria, se voltam preferencialmente contra dois grupos: os regionalistas Nordestinos e os escritores de formação católica. Drummond parece movido por certo modo de ver e não de interpretar uma crise que de fato existisse. Segredar opiniões fortes, confidenciá-las a um interlocutor amigo, sem, contudo se rivalizar esteticamente, de forma nítida, com nenhum dos autores. É o que acontece aqui. Drummond tinha parceiros tanto num grupo quanto no outro. Um extenso e variado acervo fotográfico o coloca repetidas vezes ao lado de um José Lins do Rego ou de um Vinicius de Moraes. Ao fomentar melhores traços para o romance brasileiro a partir de o “Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos, sua aposta não escapa de parecer hoje uma piada sinistra. E assim como os nordestinos seguem assegurando seus nomes e obras no espaço literário, é o caso citar Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito, as vãs simetrias de humor e estilo do missivista impiedoso acabariam por confirmar, em 1976, mais do que afinidades e entusiasmos com a escrita de Adélia Prado, poeta católica a que recomendou e incensou ao galardão – antecedida por Cecília Meireles e Lúcio Cardoso.




Drummond deveria duvidar um pouco mais das circunstâncias e do seu vasto coração. Isso vale para os célebres e os iniciantes. Ternas hipérboles ligavam o poeta sobretudo aos conterrâneos mineiros. O que de forma alguma o torna inferior a seus pares. Há uma face nebulosa da cena intelectual brasileira em que o infinito abismo só pode ser evitado com fisiologismo e fácil elogio. Muitos enigmas ainda a se decifrar no vasto, mas nem tão variado, cânone da literatura dita nacional. Crescentes e sórdidos labirintos separam do grande público a reimpressão literal dos fatos. É dessa maneira que se constroem reputações, carreiras bem sucedidas e se recebe rentáveis prêmios. Há sempre uma carta, bilhete, ou mais atual: um torpedo, um e-mail que intermedeie patrocínios relâmpagos e estratosféricos valores que a burocracia dos editais não têm como atender. Passos secretos e semidivinos. Afinidades na forma e no tom. Assim declaram as odes e os espelhos. A idiossincrasia kafikiana dos gabinetes e o sobrenatural que vez por outra nos espreita.

Excertos das cartas de Carlos Drummond para Cyro dos Anjos:

“O arraial das letras anda muito alvoroçado com os últimos produtos do engenho nordestino, que são uma tragédia de Raquel, onde os personagens se matam a metralhadora em cena aberta, e o romance de Zé Lins. (...) O livro de Raquel, pelo menos, tem o mérito de uma linguagem saborosa, mas falta-lhe sequer resquício de interesse psicológico, pois a alma de Lampião e de seus cabras é tão elementar como a do Zé Lins. Já o livro deste lucraria talvez em arte se fosse escrito pelo próprio Lampião.”
(11 de outubro de 1953)

“Ainda não pedi notícias de seu romance, que me interessa muito. É da maior importância que você o conclua, contribuindo para que se retifique o conceito atual do romance entre nós. A mim não me satisfaz nem a transcrição imediata e anti-crítica de aspectos de uma vida regional, como fazem os rapazes do norte (entre parênteses: como escrevem mal!), nem essa literatura ‘restaurada em Cristo’ com que nos aporrinham os pequeninos gênios marca Lúcio Cardoso.”
(04 de agosto de 1936)


Ney Ferraz Paiva, Salgueiro-PE, fevereiro 2011.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011


Um pedaço de poesia no bolso – e nos lábios



Em “Olhos de Barro”, José Geraldo Neres associa imediatamente o corpo à terra, como signos que contaminam o espaço. Pedaços que se juntam do mundo inteligível a outros – “esses que nos acenam da outra margem”, como diz Mia Couto na epígrafe de abertura –; uma vez que o livro logo se lança a variadas margens de enunciações, lugares e portos, e outros tantos anúncios de itinerários – música, sonho, noite, chuva, voz, espelho. Signos extraviados como o próprio livro se extravia a um encontro com o leitor, numa viagem entre parêntesis, sem acertos prévios. “Molhado caminho a costurar corpos”, a evocar as misturas que não podem esperar – uma à margem da outra, “ombro a ombro” expostas, abertas, a circular por uma tipografia de lugar nenhum onde só os “corpos se inclinam em resposta”, que pode ser mesmo a mais insignificante, corriqueira, modesta, (um aceno). Que mais se pode dizer? Se a poesia está nos lábios, também pode se enfiar no bolso, como um tipo especial de objeto de família. É por esse duplo movimento que José Geraldo Neres nos mostra a fotografia antiga (ainda que breve) de sua poesia. Sem arremedar ou traduzir paisagens. Antes, a esgarçar significativamente e de forma plural a vida. Lançado à terra, o corpo livra-se das barreiras do estereótipo. “As casas caem com o passar do tempo”. E a poesia (nomes, cheiros, sombras) põe o mundo num novo princípio, ainda que uma vez mais prevaleça caprichosamente as imagens fixas da fadiga. Sendo antiga, a poesia escapa da perspectiva do futuro, sem os danos colaterais das outras linguagens. E por isso mesmo ela é sempre o frescor irrefreável do novo, num momento: “corpos de terra, agora pó, parede, casa”.



os que acenam da outra margem II

Os pés crescem a brincar ladeira abaixo. Meu nome. Carrinho
de barro sem palavras. As marcas da chuva na terra sequer acompanham
nossas sombras. A rua deságua nas raízes das casas.

Espreitado por portas e janelas, o céu se arrepia. Molhado caminho
a costurar corpos. Ladeira abaixo, fome não existe. O tempo, língua de
outra língua, desenha outros carrinhos. Corpos se inclinam, verdes olhos
acenam em silêncio. A força do vento causa inveja aos anjos.


Ney Ferraz Paiva
Olhos de Barro, José Geraldo Neres, Editora Multifoco, Orpheu poesia, 2010
imagem: Sigmar Polke, primavera

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011


Luiza menina espantalho






Sartre conta que a morte do seu pai, devolveu sua mãe à prisão e deu-lhe liberdade, porque se tivesse sido de outra forma, confessa “não há bom pai, é a regra... houvesse vivido meu pai deitar-se-ia sobre mim durante muito tempo e esmagar-me-ia”.

Para Luzia, personagem do curta-metragem “Menina Espantalho”, do diretor Cássio Pereira dos Santos, de 2008, o pai é um peso a esmagar as tentativas da menina de ler o mundo através dos livros. Limitada ao universo feminino que o pai reconhece, com a anuência da mãe, Luiza se entrega às artimanhas da invencionice infantil. Já com uma leve pitada de malícia feminina ela convence o irmão – único a receber o benefício da educação formal, por ser menino – a ensiná-la a ler.

Tudo feito na calada da noite, sob a luz trêmula da lamparina; a menina é iniciada nos sussurros das sílabas-senhas do alfabeto. Como contraponto a tentativa da mãe em adestrar a pequena Luiza nos afazeres domésticos e pouco fetichizados, como é o caso do bordado para o qual a menina não denota nenhuma habilidade. Uma alegre visão é a mãozinha dela passeando nas cerdas do arroz novinho, recém-nascido com o seu verde tenro, que no vigor da cena lembra Manuel de Barros: “Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:/Que o esplendor da manhã não se abre com faca”.

Todas as coisas atadas bem naquele ponto de junção em que a verdade dos fatos quer ser tão somente a verdade de um mundo que almeja explodir geografias, destinos, mapas – espécie de gramática expositiva do chão – descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas (Manuel de Barros). Incansavelmente a vida é lavrada em uma alegoria de que o tempo da leitura pode ser o mesmo da lavoura, uma trajetória que pode brotar em qualquer ponto entre preparar o solo e colher o alimento. Muito menos que isso compreendido, visto habitar a repetição e a intensidade de dias banais: a mãe e o seu silêncio – onde para a mulher falar é prata, calar é ouro; o pai e o semblante enraizado, endurecido – estudar é coisa para homem, embora ele mesmo não tenha podido fazê-lo.

Está tudo ali, sem ser uma definição, nem mesmo em partes menores, da vida e do mundo; sequer uma sublevação: nenhum ato é mais importante do que outro, mesmo no momento em que o pai é tomado de emoção com a leitura inesperada da carta do irmão feita por Luiza; não há ambivalências aí, há a simplicidade do ato, residindo aí toda beleza do filme: ele não quer recuperar uma cronologia histórica, nem desfraldar a bandeira iluminista. Fala apenas das coisas como elas são com a inflexão próxima de quando se lê um belo romance ou se descobre um bom poema – ou um filme singular.

Juliete Oliveira

Salgueiro-PE, janeiro 2011

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Orquestrar o Rio de Janeiro



O que significa uma equipe de reportagem desembarcar no Alemão junto com a polícia? Como se dá tal encontro ou incorporação? Com que fim? Este encadeamento de perguntas não comporta na verdade a complexidade que parece enfatizar. Ele escamoteia e embota ainda mais os fatos e o raciocínio. Em meio a tantos jargões (“demonstração de força”, “recuperar o controle”, “ocupar território”) e por causa de um deles, justamente o que mais escapa ao discurso militar, talvez seja preferível pensar que a Vila Cruzeiro tenha sido apenas o ensaio de um grande concerto que se daria horas depois. O lugar se tornou simbólico desde que um orquestrante foi morto ali durante uma incursão pessoal. Agora a maior apresentação de todos os tempos aconteceria no Alemão. Em mais uma sensacional cobertura da grande mídia a cidade toda veria e escutaria. Os moradores nervosos, aflitos. O suor escorrendo sem tempo para secar a testa. Nos cômodos sombrios, quantos esperariam, em silêncio? Logo iria começar. A operação, muito bem "orquestrada", estava sendo anunciada como a continuação final de “Tropa de Elite 2”. Dessa vez a sensação de justiça não poderia ser menor do que antes. Com a possibilidade dos criminosos serem aniquilados para sempre, todos deviam estar sentindo o mundo vibrar na mão. Apenas a orquestra não movia um só músculo. Tem de ser agora. Dias depois as chuvas ocupariam a cena. Até aqui ninguém podia dizer quando chegaria o temporal, mas ele viria, tão certo como os campos floridos da primavera, ele sempre vem. Enquanto isso, no Alemão, todos esquadrinhavam. Antes do entardecer a orquestra já deveria ter acabado sua apresentação. E a vida estaria desbloqueada. Na penumbra do quarto ou na densa dureza das ruas, todos eram obrigados a esperar. Impossível calcular o tempo entre um e outro relâmpago. Aquele primeiro ao menos esvoejaria imprecisa esperança. Quinze dias, um mês depois o outro. A chuva a se esticar sobre a terra. A terra movendo-se no ritmo da morte. Os comentaristas não estabeleceriam nenhuma conexão entre os fatos. Ainda que a cobertura da ocupação se estendesse pelos dias e em todas as direções. Coisas assim é bom que irrompam de repente, entrecortadas, adversas. “Fatos isolados”. É o que todo repórter e todo político relincha. Limitados pela zona de luz de tamanha sensatez. Uma ou outra vibração quase sempre repetida toma lugar da indignação. Que esta foi a última vez; que a partir de agora tudo vai melhorar; que estamos no caminho certo... O Estado democrático e suas legitimidades. Com ele uma coisa ruim até pode terminar, mas em seguida outra está começando, inevitável. Quem poderia saber das chuvas, enchentes e deslizamentos de verão? Todos pegos pela novidade e pelo ineditismo próprio das estações. Ninguém a se responsabilizar, pelo tanto que se revestem dos discursos morais – que cortariam a mão antes de pegar a propina não fosse essa uma prática “normal”. Como ainda o Rio de Janeiro pode ser afastado de tamanha pobreza? Com paredes “acústicas”? O Rio de Janeiro surpreendentemente tão empobrecido quanto o mais longínquo município do norte do Brasil. Em sua infraestrutura sim, mas também em seu espírito. Na dissimulação afetada dos dirigentes, que forjam uma cidade de exacerbada desigualdade como jamais foi – sem que esta seja mais uma interminável frase nostálgica, que tenta impor o prestígio de outros tempos. A frase suscita as diferenças sociais, os conflitos pessoais, os concentrados privilégios. E é esta cidade apequenada, desorquestrada do futuro, que se inclina ora para aplaudir ora para lamentar os repetidos consertos de dramáticas possibilidades.


Ney Ferraz Paiva, jan 2011
imagem: Andy Warhol 

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O Cortador de água


Cidade subaquática em Shicheng, na China


Foi num dia de verão, há alguns anos, numa cidadezinha do leste da França, talvez três anos, ou quatro, à tarde. Um empregado da companhia de fornecimento de água foi cortar a água em casa de pessoas que estavam um pouco à parte, um pouco diferentes dos outros, digamos, retardadas. Moravam numa estação fora de uso – o T.G.V.* passava pela região – que a comuna lhe propiciara. O homem fazia pequenos trabalhos para as pessoas do lugar. Provavelmente contavam com um auxílio da prefeitura. Tinham dois filhos, de quatro anos e de um ano e meio.

Defronte à casa deles, muito perto, passava aquela linha do T.G.V.* Eram pessoas que não tinham condições de pagar suas contas de gás, eletricidade e água. Viviam numa grande pobreza. E, um dia, chegou um homem para cortar a água na estação onde viviam. Viu a mulher, silenciosa. O marido não estava em casa. A mulher um pouco retardada com uma criança de quatro anos e um bebê de um ano e meio. O empregado era um homem aparentemente como qualquer homem. Esse homem, denominei-o o Cortado de água. Ele viu que era em pleno verão. Sabia que era um verão muito quente porque o vivia. Viu a criança de um ano e meio. Havia recebido ordem de cortar a água, foi o que fez. Respeitou seu emprego de tempo: cortou a água. Deixou a mulher sem água para dar banho nas crianças, para lhes dar de beber.

Na mesma noite, aquela mulher e seu marido pegaram as duas crianças e foram se deitar sobre os trilhos do T.G.V. que passava defronte à estação fora de uso. Morreram juntos. Cem metros a vencer. Deitar-se. Sossegar as crianças. Adormecê-las talvez com canções.

O trem parou, dizem.

Pronto, a história é essa.

O empregado falou. Disse que tinha ido cortar a água. Não disse que havia visto a criança, que a criança estava lá, com a mãe. Disse que ela não tinha se defendido, que não tinha lhe pedido para cortar a água. É só o que se sabe.

Tomo esse relato que acabo de fazer e de repente ouço minha voz – ela não fez nada, não se defendeu. É isso. Deve-se saber disso pelo empregado da companhia das águas. Ele não tinha razão alguma para não fazê-lo, visto que ela não lhe pediu que não o fizesse. Será isso que devemos apreender? É uma história de deixar louco.

Prossigo. Tento ver. Ela não disse ao empregado da companhia das águas que havia duas crianças a considerar, pois ele estava vendo as duas crianças, nem que o verão estava quente, pois ele estava nesse verão quente. Ela deixou que o Cortador de água se fosse. Ficou sozinha com os filhos por um momento, depois foi à cidade. Foi até um restaurante que conhecia. Nesse restaurante, não sabemos o que disse à proprietária. Não sei o que ela disse. Não sei o que a proprietária falou. O que se sabe é que ela não falou da morte. Talvez ela tenha contado a história, mas não disse que queria se matar, matar os dois filhos, o marido e ela mesma.

Como os jornalistas não sabiam o que ela dissera à proprietária do restaurante, deixaram de assinalar esse acontecimento. Entendo por “acontecimento” o instante em que essa mulher saiu da casa dela com os dois filhos, depois de ter se decido pela morte de toda a família, com um objetivo que ignoramos, de fazer alguma coisa ou dizer alguma coisa que ela tinha a fazer ou dizer antes de morrer.

Nesse ponto, restabeleço o silêncio da história, entre o momento do corte da água e o momento em que ela voltou do restaurante. Ou seja, restabeleço a literatura com seu silêncio profundo. É isso que me faz avançar, é isso que me faz penetrar na história; sem isso, fico do lado de fora. Ela teria podido esperar o marido e anunciar-lhe a notícia da morte que decidira. Mas não. Foi até à cidade, foi àquele restaurante.

Se essa mulher tivesse se explicado, a coisa não teria me interessado. Christine Villemin, que não é capaz de alinhar duas frases, me fascina, porque também tem o que essa mulher tem: a violência insondável. Existe um comportamento instintivo que podemos tentar explorar, que podemos restituir ao silêncio. Restituir ao silêncio um comportamento masculino é muito mais difícil, muito mais falso, porque os homens não são o silêncio. Em épocas passadas, em épocas distantes, há milênios, o silêncio são as mulheres. Portanto a literatura são as mulheres. Ou bem se fala delas na literatura ou elas próprias o fazem, mas são elas.

Portanto, essa mulher a respeito de quem se imaginava que não falaria, visto que jamais falava, deve ter falado. Não deve ter falado de sua decisão. Não. Deve ter dito alguma coisa em lugar disso, em lugar de sua decisão, e que, para ela, era seu equivalente e ficaria sendo seu equivalente para todas as pessoas que ficassem sabendo da história. Talvez fosse uma frase sobre o calor. Ela teria ficado sagrada.

É nesses momentos que a linguagem atinge sua máxima potência. Seja o que for que ela disse à proprietária do restaurante, suas palavras diziam tudo. Aquelas três palavras, as últimas que precederam o empreendimento da morte, eram o equivalente do silêncio daquelas pessoas durante sua vida. Essas palavras, ninguém as guardou.

Isso acontece todos os dias do mesmo jeito na vida, no momento de uma partida, de uma morte, de um suicídio que as pessoas não imaginam. As pessoas esquecem o que foi dito, o que precedeu e deveria tê-las alertado.

Os quatro foram se deitar sobre os trilhos do T.G.V. defronte da estação, cada um com um filho nos braços, e esperavam um trem. O Cortador de água não teve nenhum problema.

Acrescento à história do Cortador de água que aquela mulher – que diziam retardada –, seja como for, sabia alguma coisa de modo definitivo: é que ela nunca mais poderia, assim como nunca tinha podido, contar com quem quer que fosse para tirá-la da situação em que estava com a família. Que estava abandonada por todos, por toda a sociedade, e que só tinha uma coisa a fazer, morrer. Ela sabia disso. É um conhecimento terrível, muito sério, muito profundo, que ela tinha. Portanto, mesmo o retardamento dessa mulher, a partir desse suicídio, seria algo a considerar, caso se falasse dela alguma vez, coisa que jamais se fará.

Sem dúvida é aqui, pela última vez, que sua memória será evocada. Eu ia dizer o nome dela, mas não sei qual é.

O caso foi arquivado.

Fica na cabeça a sede fresca e viva de uma criança no verão quente demais a poucas horas da morte e o andar em círculos da jovem mãe retardada à espera da hora.

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* trem de grande velocidade

Marguerite Duras, A vida material, Tradução Heloísa Jahan, Editora Globo, 1989.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Literato Cantabile





Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;

agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam assim:
do precipício:
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício.
e não se sabe nunca mais do fim. 

agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim, a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.
você não tem que me dizer
o número do mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo
só tem que me dizer
o nome da república ao fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o trem do tempo vindo;
não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento. 


torquato neto, os últimos dias de paupéria
imagem: francesca woodman

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Está na hora de explodir as outras torres gêmeas
Por Sebastião Nunes, publicado originariamente no site Cronópios 2/03/2009
         Tem gente que não me perdoa, mas continuo achando que a maior obra de arte do século 21 até agora – incluindo literatura, cinema, música, teatro e todo o resto – foi mesmo a explosão das torres gêmeas. Tudo perfeito. A hora escolhida, a beleza crua dos aviões detonando os edifícios, a transmissão em tempo real, a monumentalidade da realização... e até algumas vítimas inocentes (sic: ninguém é inocente, não é mesmo, João Paulo Sartre?) para temperar com sangue o grandioso espetáculo da manhã em chamas, que mergulhou em pânico e espanto os sentimentais, e encheu de sádico prazer os que não rezam pela cartilha do Tio Sam.
         Mas meu assunto não é este. Estou pensando mesmo é em livro e leitura, embalado pela crônica de Geraldo Maia, “Bienal do Livro: cadê a leitura?”, publicada aqui em 23/2/2009, e pelo post-resposta de Ney Ferraz Paiva, de 28/2/2009, “mercar, sim, mas assim não”.
         A resposta que eles procuram e não encontram, e eu também não encontrei, mas sei que tangenciaram, aponta pelo menos o problema maior: o livro transformado em mercadoria, e só mercadoria, foda-se o mundo e dane-se o leitor.
         A questão básica é a seguinte: por que, existindo tantos programas de compra de livro e de incentivo à leitura, tudo continua como dantes no quartel de Abrantes?
         A resposta, alegórica: porque os empata-fodas continuam empatando a foda. E os empata-fodas são os vendedores de livros fantasiados de produtores de livros ou, se preferem eufemismo, em editores, distribuidores e livreiros, argh!

         Perguntinha número 1: quais são, pela ordem, os três produtos mais vendidos nas tão badaladas bienais e feiras de livros?
         Resposta: estandes, comida e bebida. Em quarto lugar ficam os livros, mas só em quarto lugar, assim mesmo com 99% de best-sellers vagabundos, biografias e fofocas de e sobre gente famosa, e obras de auto-ajuda, que não ajudam ninguém, é claro, só ajudam a encher o bolso dos autores de tais babaquices e das grandes empresas que mamam no público que sucumbe aos cantos das sereias do mercado.

         Perguntinha número 2: por que as bienais de livro são tão badaladas, se em vez de servirem à cultura servem apenas a seus promotores e paus-mandados?
         Resposta sintética: porque a grande imprensa está cheia de autores editados na base da troca de favores e precisa desovar seus próprios produtos pseudoculturais, ou seja, incrementar o círculo vicioso da mútua badalação.

         Perguntinha número 3: quem são os “famosos autores” que ajudam a promover essas bienais de livros?
         Resposta cínica: exatamente os autores de best-sellers, quase todos encastelados na grande imprensa do mundo todo (que culturalmente também está globalizado), que a cada peido recebem um milhão de dólares, e a cada arroto, idem.

         Perguntinha número 4: por que, apesar de comprar e distribuir de graça tanto livro, o governo federal ainda não conseguiu, com seus milhares de “parceiros” da iniciativa privada, consolidar programas de leitura e escrita consistentes, seja a curto ou a médio prazo?
         Resposta dedo-duro e longa, relendo a crônica de Geraldo Maia:
Sim, 70% dos livros editados no país são comprados e distribuídos de graça pelo governo federal, que mantém há alguns anos o maior programa de compra de livros do mundo. Pequena mas importante parcela é constituída de livros literários de boa e ótima qualidade. Falo do PNBE, Programa Nacional Biblioteca da Escola, ligado ao FNDE, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, órgão do MEC. Os outros, a grande maioria, são didáticos, também indispensáveis nas escolas públicas.
Por outro lado, boa parte das entidades ligadas a livro e leitura, sejam elas editoras ou fundações, são pouco ou nada confiáveis.
Exemplo número 1: os governos da cidade  e do estado de São Paulo fizeram expressiva compra de livros literários em 2008, meio por baixo dos panos, com aval da CBL (Câmara Brasileira do Livro), que privilegiou editoras paulistas, lógico. O garoto-propaganda, com sempre, foi nosso sorridente Ziraldo, o que faz tudo por dinheiro e holofotes, mesmo estando velhote e rico. Não preciso citar Maurício de Souza, claro.
Exemplo número 2: A Fundação Biblioteca Nacional, ligada ao Ministério da Cultura, lançou edital para compra de cerca de 2.000 títulos pré-escolhidos não se sabe por quem, já que a divulgação só apareceu depois do edital pronto, isto é, dos livros já escolhidos, se não loteados entre as editoras mais espertas. O CEM, Clube de Editoras Mineiras (do qual faço parte como sócio da Dubolsinho, de literatura infanto-juvenil), entrou na justiça contra a licitação. Perdemos, porque atiramos contra o que vimos (a licitação) e não visamos quem ordenou a compra (a FBN). Parece que a tramoia melou parcialmente, pois deve ter chegado aos ouvidos do Juca Ferreira, que quase certamente não sabia do rolo. Bravo editor cearense (não estou autorizado a escrever seu nome) recusou participação na gandaia, declarando em carta-aberta que não venderia seus dois títulos escolhidos, por não concordar com os critérios sombrios e sem transparência da escolha. Por outro lado, mesmo sendo Minas um importante polo na produção nacional para jovens, numa briga feroz por qualidade contra quantidade, as editoras do estado não tiveram um único titulo incluído na lista.
Exemplo número 3: a FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), baseada no Rio de Janeiro, e que fica a dois ou três quarteirões da FBN, promove todo ano o julgamento da produção editorial para jovens, com ênfase na badalada distinção “Altamente Recomendáveis”. Dos 25 votantes, 11 moram no Rio.

Perguntinha número 5: e então, como ficam a leitura e a escrita nesse país?
Resposta final: é preciso separar o joio do trigo, com perdão pelo truísmo.
As mais badaladas instituições ligadas a livro e leitura não passam de entidades de fachada, criadas por grandes empresas para não pagaram impostos e se promoverem na mídia. Literatura não faz parte de seus interesses, a não ser como meio.
Por mais que os “intelectuais” torçam o nariz para o governo Lula (a maioria inclusive não se cansa de fazer piada com seu pretenso “analfabetismo”, sem perceber que é o primeiro presidente digno do título em 110 anos de república patrimonialista, seus programas educacionais são motivo de admiração (e de reprodução) em muitos países, tanto mais ricos quanto mais pobres que nós.
Literatura com L maiúsculo, ou seja, aquela magnífica escola de vida que fez a glória dos grandes autores de todo o mundo, é dinossauro soltando os últimos suspiros. Me refiro especialmente aos romances de alto nível. Sobrou a escória, os que não sabem escrever porque nunca leram nada. São esses que alimentam a cadeia do toma-lá-dá-cá, a nojenta cadeia “produtiva” de livros que assola o país e que infesta tanto as editoras quanto a grande imprensa, ou seja, a que se vende em tempo integral.
Voltando às feiras de livro, com as famosas bienais (Rio e São Paulo) à frente: seu objetivo, não faz mal repetir, é encher de grana o rabo dos grandes editores, das grandes distribuidoras, das montadoras de estandes e das entidades que as promovem, além dos periféricos vendedores de cachorro-quente e refri. Só. Apenas isso. Nada mais do que isso. Leitura e literatura não foram – e nunca serão – convidadas para a festa, por mais que as duas palavras sejam citadas e usadas todo o tempo, como uma espécie de “abre-te sésamo” para a mais deslavada picaretagem livresca.
Enfim, e depois de tanto malhar em ferro frio, será que ainda preciso revelar o nome das novas torres gêmeas, infinitamente mais perniciosas que as outras? Aquelas, coitadas, eram apenas edifícios arrogantes e cheios de empáfia, produtos da grosseira megalomania ianque. As nossas, ah, essas fazem um mal danado a este pobre Brasil, tão precisado de seriedade e tão entregue às baratas do mau-caratismo e do pseudo-intelectualismo da classe média.


Sebastunes Nião, também conhecido como Sabião Bestunes, Nastião Sebunes e diversos outros codinomes, é ex-poeta, cronista e ficcionista, autor de vários livros de prosa satírica, entre elesDecálogo da Classe Média e Somos Todos Assassinos, relançados em dezembro pela Editora Altana, de São Paulo. Sobre sua obra, poética ou não, a Editora UFMG lançou recentemente, organizado por Fabrício Marques, o livro Sebastião Nunes (o título é esse mesmo). Passou dos 70 anos, está quase caduco mas, ainda assim, continua metendo o bico na vida alheia, tanto de vivos quanto de mortos, principalmente de mortos-vivos. E-mail: dubolso@uai.com.br

terça-feira, 30 de novembro de 2010

cariri vertigo
a arte de se retirar (atirar-se, subir-descer, gingar, jogar) como uma das belas-artes

Para Carolina Maria de Jesus, Madame Satã e Cara de cavalo – pelas vertigens desenfreadas da rua & do morro.

Achava belo, a essa época, ouvir o poeta dizer que escrevia pela mesma razão por que uma árvore dá frutos. Só bem mais tarde viera a descobrir ser um embuste aquela afetação: que o homem, por força, distinguia-se das árvores, e tinha de saber as razões de seus frutos, cabendo-lhe escolher os que haveria de dar, além de investigar a quem se destinavam, nem sempre oferecendo-os maduros, e sim podres, e até envenenados.
Osman Lins: Guerra sem testemunhas

Alguns pequenos extras e outros tantos desenlaces:

Favela e sertão se conciliam. Favela é sertão a poucos passos do mar.
Favela não é contradição do sertão.
Favela não é continuidade do sertão.
Favela não é destino do sertão.
O que é favela? O que é sertão?                                      
Brasil profundo – Brasil pro fundo. Brasil-problema.
O sertanejo. O proletariado.
Samba. Candomblé.
Favela posta em conserva, sertão acondicionado in vitro – os dois possuem o grande e terrível dom de renascer.
O Dragão da Maldade Contra O Santo Guerreiro. O Câncer (dois filmes de Glauber Rocha, vocês lembram? duas portas entreabertas para o mesmo lugar à margem de tudo: dos influxos das zonas rurais do Nordeste às conjunções do imaginário urbano do Ser-Tudo e do Ser-Nada a um só tempo).
Mostra Opinião 65, no MAM do Rio de Janeiro, Hélio Oiticica apresenta pela primeira vez a instalação Tropicália, um jogo de experimentação dos espaços labirínticos (sertão-favela etc.) que ironiza e renova as imagens das zonas tropicais vistas tradicionalmente ora como paraíso perdido ora como região de transcendente tristeza. Tropicália enfatiza os trópicos para além das coordenadas “céu” e “inferno”. É o fragmento, o primitivo, o improviso que está sempre se fazendo.
Favela e Sertão se encontram aí, renascem, se misturam, coexistem e se estranham.

Fixemos estes pontos de partida para irmos encaminhando nossa abordagem e do fracasso presumível fazer dar um passo à frente. O ano é 1964 e o apocalipse não é amanhã, ainda que daqui a pouco se descerá a uma temporada no inferno, mas não se nomeará aqui os atos covardes e brutais que seguirão implacáveis por mais de duas décadas cometidos pelos distintos e perfumados militares e suas complexas redes de apoio – no avesso das armaduras o relógio continuará frágil como roseirais a mover a paisagem ante as aparições múltiplas da adversidade e do Grito, aquele que aturde e descongela corpos, almas e mentes – sacode-os, desperta-os, uma vez que a ferida (em reverência à morte) é invisível em seu início.

“Cada um vive como quiser”, “É proibido proibir”, “Abaixo a ditadura”, exclamava-se, insultava-se nas ruas anonimamente enquanto as incontáveis inscrições escorriam dos muros. Gritos sem dono como só um animal consegue ser. É pela voz que se começa a tornar-se animal. Muda-se a voz ao se entrar no coração dos caminhos (ou no espelho), girando agradável o corpo numa qualquer direção que não mais aquela: “já cortaste o cabelo?”, “arrumaste já a cama?”, “abotoaste a camisa?”. Sair da casa, sair-se do outro, retirar-se. “É para ir, vai”. Bancando o Rimbaud. Parte o menino que um dia foi tão nosso. Abre-se o buraco, a lacuna cada vez mais funda. Terá sido uma das tantas ficções a infância, esta a que nos pomos a recontar? Os pés fatigados de quem tentou tudo e fracassou. Nós que um dia fomos sem ter nem como um Kafka a escrever cartas, agora as recebemos – será a quem se escreve tais cartas – carta-crônica, carta-romance inconcluso, carta-poema nunca de amor? A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado, no solo mais extremo da distância, o que se cavou dentro de nós? Ao pai-discurso, ao pai-estado, ao pai-caminho. “Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais braços dados ou não... vem, vamos embora...”. Cantar-dançar-delirar a rua como o espaço privilegiado de tensões, intervenções, instabilidades. A rua que passa a ser teatro que libera ecos que irrigam/nutrem um olhar-outro, e um pouco de medo – de abismo – e ver aí a inscrição simbólica da liberdade. O GRITO a soar, a doer. “Parangolé, essa a palavra”. Palavra-senha que Oiticica terá que arrancar/despregar a um espaço de indiferença – a um mendigo que desconcerta o olhar voluntário do artista, este que quer encontrar no descoberto das ruas o indício do enunciado expressivo da imanência, que se esboça na sensação visual, tátil e rítmica do movimento improvisado de uma dança e já num átimo se perdeu. Há de se estar atento. Emaranhado a um empreendimento particularmente difícil a que se quer expandir. Uma esfregadela nos olhos é pôr tudo a perder. A incitada serpente vibrando, vibrando, vibrando os guizos. Oiticica num giro banal de ônibus pelo centro do Rio de Janeiro, não apenas vê passar a sua frente e sim tem a carne atingida em cheio por essa palavra-tempestade que dissipará de sua obra os elementos picturais de representação. Não mais um modernismo de convento em peleja contra o corpo, a se referir como uma lição de coisas a isto que pode – a isto que não pode no ambiente da cultura artística. As desgastadas regras acondicionadas como que numa moldura que deve proteger-assegurar-redobrar as forças dominantes do mercado consumidor pequeno-burguês da arte. Aí o lucro maior é, em verdade, reverência, respeito, prudência, submissão. O sistema de publicidade do modernismo acaba por auto-retratar seus monstros. Exceção e honra a uns poucos – a Oswald de Andrade que escapou com considerável positividade artística, um a um, aos fracassos e ao envelhecimento prematuro que se seguiu à Semana de 22. Desde o “Caderno de Poesia do Aluno Oswald de Andrade” que se pôs a operar, acionado apenas pelo motor da linguagem, a caligrafia irregular que anuncia o total desapego e o surpreendente divórcio com as musas decadentes. É com ele que se instalam os processos da diferença. Os cortes de relação. Os impasses. A deglutição antropofágica. E suas propostas artísticas progridem e prosperam no ambiente marcado pelo pensamento marxista e pelos anseios de liberdade da juventude dos anos 1960. Gritar para ouvir aí lemas e alertas, o procedimento menor e, no entanto o mais estrangeiro. É sempre melhor seguir Gritos, tambor, dança, dança, dança, dança! Ecos prescindem de explicação.

Se Sertão é a Carne de Corpos do Avesso a Secar ao Sol, Favela é a Utilidade Marginal da Caverna, da Toca, da Quebrada, do Beco sem saída de corpos desterrados. Labirintos revisitados a uma só vez por um Neo em “Matrix”. Por um K. em “O Castelo”. Mas seria apenas – e meramente – de uma Arquitetura a ser desbloqueda que faríamos ressoar aqui as linhas horizontais, ou pior, as linhas pendulares de uma não-arquitetura a que se quer deter, esvaziar para que não prolifere pela cidade? De que lugar esse homem coberto de pó e de silêncios? O lugarejo paralítico e perdido entre as duas Espadas do Evangelho, as moscas, os ossos, as pedras, os intestinos intumescidos das crianças cujos corpos se esvaziam pelo ânus? Onde tudo é seco, duro e oco e mesmo a Beleza tem o rosto enterrado, a cabeça achatada, as costas como que de uma carapaça? E será que aí ele se “ajeita”? terá ele “jeito” – a que incontáveis “jeitinhos” e a que combates protagonizará frente às leis e os modos paranóicos de como a cidade se administra e se reveste em sua cúpula de concreto das casas-edifícios? Ele que saiu de seu mundo em busca de emoções humanas, que o aproximam de escolhas sempre muito mais penosas. Que saberá das guerras entre homens e máquinas que aí se dão? E dos trajetos que percorrerá morro-acima-morro-abaixo, evidenciarão ainda mais a irracionalidade humana?  Por essas altas ideias navegará mal?  Ou será que aí ele se “ajeita”, se apruma, se arruma? Terá ele rumo? Será muito pobre coitado nesse seu quarto de despejo? Se já no Sertão as moradias eram anti-residências, será que na Favela, barracos, por dentro, podem vir a ser casas-ninhos?...

Hélio Oiticica pressupôs isso. Sonhou isso. Flutuou como gás entre paredes de plástico papelão e zinco atadas por cordas, arames, barbantes. Homens-aranhas subindo/descendo o morro, lançando e traçando seus frágeis caminhos.

Em plena explosão da Pop Art, Oiticica se reserva à surpresa dos saberes para além de uma arte como produto direto da sociedade de produção e consumo em massa – com esse comportamento ele se coloca de passos trocados, desequilibrados, em tropeços com o resto do ambiente culto da arte-instituição. Oiticica desencaminhou-se para o lado íngreme do grande terreno da arte, e tornou-se, mesmo sem o pretender (ele aspirava ao grande labirinto), a expressão do contemporâneo de uma atualidade sem precedentes, máquina desejante na direção da arte e do pensamento, que se põe a funcionar pelo festivo, artesanal, interativo, carnavalesco, corporal, engendrando questões que envolvem muitos deslocamentos, toda uma geografia, dobras e redobras cuja consequência implica em uma quebra no estabelecido, na direção de outra maneira de pensar a arte e se incorporar a ela – o CORPO, as articulações em CARNE VIVA.

Eu tinha a ideia de me apropriar de lugares que eu amava, de lugares reais, onde eu me sentia vivo. Na realidade, o penetrável Tropicália, na sua multiplicidade de ideias tropicais, era um tipo de condensação de lugares reais. Tropicália é um tipo de mapa. Um mapa do Rio e um mapa da minha imaginação. É um mapa dentro do qual se pode entrar. (H.O.)

Sem ir ao Nordeste, Oiticica subiu ao Sertão no morro da Mangueira e ali teve o Sertão que desconhecia. Caiu de vez na Alternativa, entregou-se à Experiência do Pensamento Selvagem, Nômade, Primitivo do Improviso, do Salto, da Ginga, da Malandragem. Integrou-se (e entregou-se) ao Bando da Mangueira, à comunidade de criadores e parceiros, num encontro de consequências e reverberações. Antes, a morte do pai o libertara. Nada melhor do que a morte do pai para indicar o quanto se pagou da dívida que, por vezes, nos coloca na razoável categoria de sobreviventes. Sobretudo porque a arte não é um desses negócios especiais de família. E aí, nos atos de criação, a dor abre lugar também para se experimentar sensações além da perda. Na Mangueira Oiticica não estava interessado em minimizar perdas, fazer catarse ou submeter-se à terapias. Órfão e desnorteado, seu coração circulava pelas nuvens de um céu de intensidades e singularidades, arrastando a arte para além dos suportes, mas numa jornada que passava decisivamente pelo fazer artístico... Lygia Pape se referindo a esses fatos que os anos não cauterizam a beleza, conta sobre as mudanças operadas na vida de Oiticica: “Hélio virou uma outra pessoa... (‘Eu não sabia/que virar do avesso/era uma experiência mortal’, acrescento providencialmente os versos de Ana Cristina Cesar). Isso começa a interferir na obra dele, em 1964. A morte do pai coincidiu com o fim do movimento neoconcreto, já não havia aqueles compromissos mais ortodoxos. Aí Ele começou a incorporar essa experiência do morro... Essas barreiras da cultura burguesa se rompem lá, é como se ele vestisse um outro Hélio, um Hélio do ‘morro’, que passou a invadir tudo: sua casa, sua vida e sua obra”. Mas Oiticica não se livrou automaticamente de suas fantasias escapistas apenas por expressar outras agora mais prontamente disponíveis. Penso que Oiticica, de uma forma ou de outra, sentiu isso, teve que se encarar, despir-se, retirar-se e encenar mais uma vez o ritual, corporificar a mudança de forma extraordinariamente vívida e criativa. Seguindo um processo comum da cultura popular, sobretudo do romanceiro do Nordeste, Oiticica toma uma história que não é sua e versa-a (VESTE-A), reescreve-a, conta-a a seu próprio modo. Recoleção de opostos.
Há uma fotografia de uma noite em que ele samba ao lado de uma passista negra. Ela usa um vestido discreto, fechado, que desce até os joelhos sem marcar o corpo, mas que deixa os braços à mostra, caídos, suficientemente livres. O rosto dela é altivo, o olhar hierático, misterioso, assemelha-se a um ídolo pagão, e como tal não olha Oiticica. Ele está a seu lado, usa um austero traje escuro, mas ela não o vê, estão juntos, ao centro, mas apartados, deslocados pelo olhar. No ardor indeciso dos quadris, ele tem o corpo inclinado à frente, a cabeça e os olhos voltados para o chão. Os braços e os pés seguem o mesmo ritmo, se repetem quase que com exatidão. Mas são duas as danças ali – duas gingas, dois Dionisos. Se assim pode se dar/acontecer: que os pares se dispersem numa diferença de Vertigem do Corpo em movimentos e gingas, como que prestes a desaparecer abruptamente no território comum, aberto, delirante, baldio da favela. Por que não? Por que não?

Muito a propósito, no conto “Solar dos Príncipes”, Marcelino Freire fala de um grupo de negros do Morro do Pavão que param na frente de um prédio para fazer um filme. A primeira reação do porteiro é: ”Meu Deus!” A segunda: “O que vocês querem?” A terceira: “Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?” O grupo tenta dialogar: “A ideia é entrar num apartamento do prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador.” O porteiro: “Entrar num apartamento?” “Não.” “Tô fodido.” E segue o diálogo: Fazer o “condômino falar como é viver com carros na garagem, saldo, piscina, computador interligado. Dinheiro e sucesso.” E acaba que o porteiro não deixa ninguém entrar-subir-filmar coisa nenhuma e chama a polícia. O grupo retorquiu: “Esse porteiro nem parece preto, deixando a gente preso do lado de fora. O morro tá lá, aberto 24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto. Os malandrões entram, tocam no nosso passado. A gente se abre que nem passarinho manso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta, rebola...”. Subir o morro para fazer filme é consensual. Agora, descer o morro para filmar – sorria! você está sendo filmado –, é transgressão da norma, ameaça, caso de polícia! Esse espaço parece não estar destinado ao negro desde sempre, ao nordestino, sobretudo à mulher negra, nordestina. Ela nunca teve grande coisa para dizer. Daí o olhar altivo da parceira de Oiticica? Ela sentir-se no território que lhe é próprio, constante e inabalável, garantido e seguro, não só por tratar-se do morro, mas por estar na favela, seu teto e abrigo transcendental. Sabe-se que na origem favela era a casa dos antigos escravos. Que favela era o amontoado das gentes entregues à própria sorte (ou azar) em CANUDOS. E em meio a isso, a partir daqui, eu não sei mais se pergunto ou se afirmo. Se alguém além de mim viu isso – se você aí viu, se você aí disse ou se estamos com bocas e olhos costurados ou pior: se estamos fazendo caras e bocas, muxoxos, bocejos... Eu os desafio, desejo que vocês encontrem, em breve, em seu caminho um dos senhores donos de toda terra, leitura e suma doutoração, bem como dos corpos desejantes de saber, e que ele ao afrontá-los com a vigilância de cada palmo de seu improdutivo território, inclusive com a oligarquia de seu presunçoso conhecimento, tão inútil quanto as outras e não menos reativa, vocês encontrem um meio de atingi-lo em cheio: não obedeçam, não baixem a cabeça, não sofram uma vez mais as consequências da paciência...  – Terei visto? terei sonhado? alguém me terá contado? tudo é irreal?

Reconto, não desalembro. Oiticica não chegou a morar na Mangueira; por lá vagabundeava dias e noites como alguém que “seguia o samba”, e partia para amplas conquistas. Sambava bem. Era considerado o melhor passista branco da escola. Ia aos ensaios. Recebia a fantasia como todo passista. Não tinha essa de pagar para desfilar. Mas na fotografia o que vemos é um Oiticica numa dança arrancada a fórceps – mais SALTO do que GINGA, de um passista que se esforça mais do que os outros para se desenvolver. Encontrar a brecha. Se fazer entrar/sair/passar como quem salta do ônibus não para evadir-se, mas para subir a favela) – Dédalo a voar sem rede de proteção – para ter a sensação de estar pisando outra vez a terra.

Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para a experiência de tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade. (Mário Pedrosa)

No ambiente da contracultura aqui e alhures Elvis, Beatles, Stones saiam de dentro do rádio e faziam crer a todos que só o Rock existia. Foi no Morro que Oiticica percebeu que a dança é a dança que se dança e que o Rock também podia ser samba – e isso compreendia tudo mais: rodas de capoeira, competições de batuque, congadas, eleições de reis Congo e juízes de Angola, folguedo dos quilombos, maracatus, frevo, bumba-meu-boi, termos e ranchos, louvores a São Benedito. Mas que fique claro, Oiticica não estava interessado em exotismo ou folclore de espécie alguma, então desses que te sapecam uma etiqueta para a vida inteira (“construtivismo”, “concretismo”, “neoconcretismo”, “hippe”, “pop”, “não-objeto”, “tropicalismo”, “suprematismo”, “neoplasticismo” etc.), ele pulava fora do barco. Oiticica visava descondicionar os ritmos. Tudo para ele é ritmo, participAÇÃO. “A música é a maneira de você ver o mundo, de você abordá-lo.” E foi no espaço dionisíaco da Mangueira que ele ouviu-celebrou a música que o modificou irremediavelmente – e mais, descobre que o que faz é MÚSICA – “que MÚSICA não é ‘uma das artes’ mas a síntese da consequência da descoberta do corpo”. Na Mangueira Oiticica inventou ritmos que passou a Vestir. (Uma descrição apequenada dessa experiência de vestir os ritmos das capas-parangolés pode ser percebida na eletrizante aparição de Oiticica no “Programa Buzina do Chacrinha”, onde graças a contingência do apresentador de contar patranhas, Oiticica foi saudado como o “maior costureiro do Brasil”). Que são as etiquetas frente à beleza das aventuras?

Hoje, recuso-me a qualquer prejuízo de ordem condicionante: faço o que quero e minha tolerância vai a todos os limites, a não ser o da ameaça física direta: manter-se integral é difícil, ainda mais sendo-se marginal: hoje sou marginal ao marginal, não marginal aspirando à pequena burguesia ou ao conformismo, o que acontece com a maioria, mas marginal mesmo: à margem de tudo, o que me dá surpreendente liberdade de ação – e para isso preciso ser apenas eu mesmo segundo meu princípio de prazer: mesmo para ganhar a vida faço o que me agrada no momento. (H.O.)

Assim como subiu o morro, Oiticica fez o morro descer. Quase que uma façanha esportiva, uma vez que se dedicou cotidianamente a subir-descer para ver como o morro funcionava em sua cúpula de selvagerias. Não era mais o Hélio-língua-de-fora da fotografia com a passista anônima. Era agora o jogador habituado a correr os riscos totais de uma inteira perda de si. A força de sua arte devia-se em parte à maneira corajosa como teimava em seguir o fio de sua estética até a Toca do Minotauro. Cutucava a ordem estabelecida com a vara curta da desmesura dionisíaca. Por isso fico pensando, permitam-me essa divagação um tanto quanto passional: não combina nada aquele Hélio epicurista dobrado sobre a angústia, encontrado morto e diagnosticado como causa um acidente vascular cerebral. O cérebro mais vasto que o céu/o cérebro mais profundo que o mar/o cérebro estrutura mais complexa da terra. A morte quase de um epicurista que assumiu a culpa não bate com o artista provocativo, afirmativo, que resolvia todos os impasses criativos e as adversidades existenciais com AÇÃO – “in(corpo)ração”. E Hélio está longe de ser um caso isolado naqueles dias de pedradas criativas nas vitrines das estruturas de domínio e consumo cultural alienado. A morte do poeta e letrista Torquato Neto estabelece um paralelo com a mesma coragem psíquica, petulância, insubordinação, imprudência. Torquato Neto morreu convenientemente no auge criativo dos seus 28 anos. Ele e Hélio chegaram a se mandar em 1966, numa providencial viagem de navio para Nova York. A sorte talvez estivesse a favor. Mas que nada! os cálculos estavam errados, e eles perderam. Thor estava irritado: boom boom boom! Thor estava com raiva: “Nós nos importamos! Esses rapazes quebraram as vidraças, as normas, as regras, as caras! Nós nos importamos, sempre haveremos de nos importar: boom boom boom!”. O artista ou desce ou é lançado ao inferno. Mesmo um escritor como Jorge Luis Borges esteve atento à rua, a suas movimentações e errâncias. Ele desceu ao submundo de Palermo, foi amigo de Paredes, um bandido atirador de facas, a quem escreveu um tributo "Hombre de la Esquina Rosada". Boa parte de nossos artistas hoje são a contrafacção disso – querem os prêmios, a ribalta, o sucesso. A vanguarda tem o seu preço. O marginal não!
Oiticica desceu o morro rolando moças e moços negros-nordestinados da Mangueira portando bandeiras e estandartes, um verdadeiro rolo compressor abrindo alas que irão remontar, progressivamente, o sertão com refrões do samba dos canaviais do Nordeste e dos cafezais do Rio de Janeiro. Contra o martelo de Thor os ziriguiduns da África dos descendentes dos negros e mulatos que combateram pela independência da Bahia, 1822-23, especialmente os que formaram o “Batalhão dos Libertos”. Molhado dos limos primitivos da anarquia, Oiticica jamais foi cristão, pertencia à raça que cantava no suplício, molhado dos limos primitivos, e que bebeu do licor não selado, da fábrica de Satã, não incorreria no equívoco de convocar às ruas uma África que não fosse negra – como um Castro Alves suplicando a seu Deus por uma África de Igreja, de canto gregoriano, de Anjos juvenis em suas nuvenzinhas de ingenuidade, de Pirâmides do Egito. Que teria a ver tal apelo místico com os Navios Negreiros, com as Vozes de uma África Negra – que já não se é ou talvez nunca se quis que fosse... Artista da AÇÃO e do COMBATE, de uma atualidade sem precedentes, Oiticica desce com os passistas e ritmistas do bloco “Vê se entende” (alguém aí não entendeu?). São como uma turba de vândalos, juntos invadem o lugar, para bagunçar o coreto, armar o maior barraco, desafinar o coro dos contentes, como lindamente se referiu a isso Waly Salomão: “Hélio Oiticica, sôfrego e ágil, com sua legião de hunos. Ele estava programado mas não daquela forma bárbara que chegou, trazendo não apenas seus parangolés, mas conduzindo um cortejo que mais parecia uma congada feérica com suas tendas, estandartes e capas – Que falta de boas-maneiras! Os passistas da escola de Samba Mangueira, Mosquito (mascote do parangolé), Miro, Tineca, Rose, o pessoal da ala “Vê se Entende”, todos gozando para valer o apronto que promoviam, gente inesperada e sem convite, sem terno e sem gravata, sem lenço nem documentos, olhos esbugalhados e prazerosos, entrando pelo MAM adentro.” Levante efusivo, Odisséia sem erro, Migração, Cruzamento a um espaço enrijecido de uma cultura que não Joga, não Brinca, não Envolve, e que ainda assim se presume o ambiente dos esclarecidos. Museu-Mundo em conexões máximas, fora isso não serve para mais nada, senão para difundir maneirismos e fazer ainda mais bloqueios de toda má sorte. Morro-Museu contíguos, segmentares à Rua. Tudo que os caretas temiam. Espaços eminentemente abertos às Cenas do Desbunde. Foi assim com o Museu, Teatro, Cinema, Literatura, Música, Dança. A Estética da Polidez descombinada com as coordenadas da Moda, do Glamour, da Afetação sumária a que se foi desmanchando sem docilidades. Expulsos do MAM, a turba encena nos jardins do museu um baile que escapava às regras e tomava de assalto as engrenagens. Num dos maiores elogios que já se fez a um artista Ezra Pound, ao se referir a Henry James, considera que “os artistas são as antenas da raça”. Palavras que alcançam e envolvem com exatidão, num prolongamento das Ações Criativas dos Artistas em que tempo e lugar, não apenas a figura emblemática de Hélio Oiticica, bem como seu Projeto de Arte Ambiental e Coletiva. Oiticica é um artista Vidente. Ele prevê que há grandes fendas no Muro do Castelo. O artista é um agente de destruição e não apenas de mediação e (pior dos males) de diversão das massas. Oiticica enfrenta acontecimentos históricos especificamente relacionados a uma história contemporânea da cidade e dos grupos que tentam se firmar, mandar, controlar aí – a isso os dardos precisos arremeçados a favor de um conceito de autogoverno de igualdade no morro, onde fique garantido o acesso a todos sem distinção de cor, e onde se incentiva a capacidade de Ação Atração Invenção Criação Desnudamento. Sair-Subir-Gingar-Jogar-Dançar como uma das belas artes.
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Conferência apresentada no II Seminário Arte e Pensamento A Reinvenção do Nordeste, realização SESC-CE, em Juazeiro do Norte

Bibliografia

Basualdo, Carlos, Tropicália uma revolução na cultura brasileira, São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
Freire, Marcelino, Contos Negreiros, Rio de Janeiro: Record, 2005.
Jacques, Paola Berenstein, Estética da Ginga, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
Salomão, Waly, Hélio Oiticica, qual é o Parangolé?, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

Ney Ferraz Paiva
Salgueiro-PE novembro 2010