o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Para que serve um prêmio literário?
  Para o Ney Ferraz Paiva

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Desperto com a notícia desde os jornais. Era a divulgação dos resultados de dois prêmios literários: portugal telecom e jabuti – versão 2010. Os finalistas - o que se esteve a divulgar. Dentro de dois meses, os vencedores. Mas de algum modo, são eles os vencedores, os finalistas. Estão lá e estar lá é estar à Casa Grande, à confraria dos eleitos. Até aí tudo bem. Até aí tudo bem. Mas será? Por que será inquietam-me algumas coisas, algumas questões? Estou a ver. E desde a inquietude na que se me vêm estas palavras incertas, busco um modo a ela – à inquietude, busco um arranjo às palavras. Tentarei um rumo. Parece que não devem ficar retidas ao canto da boca as palavras – na certa que pululam desde ali, na certa que provocam gases em tão logo o tempo, for o caso o contê-las. Qual então o caminho/ o percurso? Parece-me que devem ser lançadas ao espaço público as palavras – lugar onde, outrora, seria a grande política o que lá se ensejava. Outrora. Por ora – vá se saber o tempo em que esta hora parece vingar?! – ali é o desmonte. E sequer que há o ‘ali’. E sequer que haja o espectro de ter havido o outrora. Restringiram-se os seus modos. Constrangeu-se aos seus convivas. Convidou-se a que se retirassem até o lar/até a casa/até o privado/até os limites de suas especialidades (os seus mundinhos mínimos inofensivos)/até o corpo somático/até a gula voraz na que habita a palavra à boca/até o chiste sob a tutela do ‘psicológico’ e neste, e uma vez este o que se fez foi convidar (convocar) a que se permaneça ‘lá onde’ a fala é sempre ela o regurgito da pessoa (ou os seus derivados) – e tão somente isto, a ‘pessoinha/peçonha’ na que parece é sempre que se está sob as alíneas do sintoma, sempre que se está (que se estaria) sob os rumores do fantasma redivivo a voltear, a voltear, a retornar a retornar o recalque (laço e elo, lanço e jugo), a estabelecer com ele elos frondosos, vãos insuspeitos, campinas desérticas, e um mar de negócios. Na contrafeita disto, faça-se então o trato – façamo-lo: ‘Apaguemos a pessoa por detrás da palavra – for o caso o literário’. Situa-se tudo e tudo ao tanto do que é dito, e aos modos mesmos do que se diz. Sempre o impessoal ali. ‘Sempre’ porque ‘o sempre’ seria o tempo de um seu apagamento – direito à morte do escritor. Estamos a pensar no que Blanchot buscou indicar – a força do literário ali, o seu espaço ali. Estamos a pensar desde a forma traçada em grita, em acusação contínua por um Foucault nos seus diagnósticos. Estivera ele a pensar no que seria ‘um autor’ – ali uma função, ali a indicação de que o que se fazia era o escrutínio – o revirar de arquivos, a notação contumaz do que lhes fosse suspeito. Um indicador uma pista um registro a arrefecer a potência do discurso, e sua condição anônima. Uma sinalização um farol aos escribas a que eles tecessem a sua rede, a sua malha copiosa, a sua folha corrida em acusação e então ali um autor, ali o autor. Foucault a denunciar isto. O autor como uma forma retesada na que se está em definitivo firmado sob o esteio deflagrado da assinatura. O autor como forma, função de um seu registro contínuo. Estamos a pensar em Beckett a indicar que pouco é que importava ‘o quem’ fala, ‘o quem’ da fala – Beckett a descosturar esta teia, a traçar suas linhas desde o sulco, a ruga, a fenda, o interstício, e esteve Beckett a fazer de forma contínua este apagamento. Pensamos em sua trilogia. Pensamos em um seu Companhia, pensamos em um de seus últimos escritos, Pioravante marche. Escritura do que não se nomeia. Escritura que parece sugerir que se há o movimento é para longe/ sempre para longe, e que se há o movimento é desde os longes onde lobos são todos aqueles que não deixam marcas por onde passam. Houvesse ali uma letra e talvez que fosse um Kafka quem lá a teria depositado – a letra em lugar do nome próprio. Os jeitos, os modos, a pessoalidade sob a contenção de uma letra. Outra vez aqui o desmonte do registro no que funda e se promove a oficialidade dos jogos desde o Estado (Estado que é forma e investidura - ecos desde o poder). Evitar (evitou-se) falar desde um aquele. Kafka esteve a evitar a impostura do ‘aquele’. Evitar evitou-se isto. Evitar que se registre o ‘aquele’ da fala, evitar que a fala se registre e se faça resignada a um ‘aquele’ que fala, e que se vá até este ‘aquele’ quem sabe se numa conspiração a ver se se faz sitiado ali nele todo o possível que o desmantela. E desde sempre isto – o desmantelar, o desmantelado.  Esta a virulência da contrafação de um Kafka, um Beckett – inserir ‘o falso’ quando for o caso/sempre que for o caso a tirania do ‘verdadeiro’. O ‘verdadeiro’, os ‘efeitos de verdade’, o seu ‘campo’, os seus ‘signos sinais’ o que são senão os poderes do Estado (um Estado, sempre um Estado) - e dizer o Estado é já dizer dos poderes, e dizer um Estado é já dizer da violência e de seu monopólio, e dizer deste modo/esta fórmula ‘os poderes do Estado’ é dizer um pleonasmo o que buscamos apontar, e são os poderes e o Estado o que esteve ali a tecer os remendos ao desmantelado, o impor-lhe um dique, uma represa. Como se o estivesse a recolocar tudo num ‘seu lugar’. Recolocar. Reposicionar. Remendar o inominável sob os modos e a afetação de um nome, uma insígnia. Nele situar a legião que seria desde sempre o seu apagamento. Nele situar a legião. Convocar a todos ‘os aqueles’, os decaídos, a que se ajeitem ao tanto da Luz – ‘luz’ que é princípio de todo saber, ‘luz’ que é condição a que se saiba, ‘luz’ que é ela mesma o saber todo saber, instância de corte, instância de registro, regime de funcionamento, sistema de contenção. Não seria isto o que um Foucault sugere ao dizer que todo saber se presta ao corte?! Não seria isto o que um Foucault estaria a sugerir – que o saber se serve a algo este algo seria o corte?! Saber, cortar. Cortar desde o inominado um nome que se lhe acerque – uma área em demarcação uma cerca ali (e já e já todo o sistema de vigilância, o arame com farpas, os grileiros a fazer valer que não se o atravesse), um princípio de legibilidade, a propriedade privada uma vez que tão logo será a patente o que se lhe afixa. Faz-se a cerca – dá-se nome aos bois, impõem-se lhes as iniciais – que é já ‘onde’ começa um seu abate. Deposita-se aos seus interiores o que era vário e indistinto. Ofertam-se lhes a boa nova da significação. Como se o que se estivesse a conceder fosse uma terra, um lugar, a ‘casa própria’ desde a qual, para a qual, em nome da qual tudo será o que se fará. E então, o júbilo uma vez a conquista. Conquista-se o nome. Enquista-se uma vez o nome – ali a circunscrição, ali o raio de ação no que perpassa a varredura dos que perscrutam - vigiar, dispor. Faz-se acenar com a posteridade toda esta agarrada/amparada aos limites do nome (forma curiosa a de fazer não ver a finitude, a condição trágica da vida - a de apagá-la, a de fazer que se a apaga, forma curiosa a dizer que continua o que não continua). É-se já o autor. Está-se ali um autor. Assina-se a obra, nela se estará encerrado, e será a pompa, os louros, as batatas, a glória, a baía, um homem ali (um homem feliz, um bobo a quem se oferece um bolo de noiva, e coisas do gênero, um prêmio literário, um saldo na bolsa de investimentos) – mas que dizer de tudo? - já o disse um Bandeira da baía, da glória o tão pouco que isto importa - se o que se vê, se o que se enxerga, se o que se experimenta ‘no ali’ é o beco, um beco! E todo beco sempre (ele) se presta a ser o das lamentações. E dizer ‘beco’ será dizer o muro. Será se o atravessa? Será se o lança abaixo?
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Como será se apaga um nome? Como será se o subverte? Como será se o esquece? Como será se faz valer o esquecimento desde aí – voltar até onde nada é o que se (nos) retorna, voltar até que a desprega (nos) seja toda hora, todo tempo. Voltar até que o anonimato se (nos) faça a casa dos que não têm. E nada que aí se estivesse a experimentar uma perda, o infortúnio. Nada que se estivesse a perder. E nada que se estivesse a lamentar a ‘menos-valia’ que já seria o desmonte do que se acumulara. Nada que fosse desde aí o náufrago/o revolto a buscar (agônico) o tocar dos cabelos do mar à caça de uma salvaguarda a si. Nada que isto. Agora aqui não mais isto, esta lamúria, esta ladainha. Está-se a pensar que a condição de náufrago é a condição primeira, ela mesma a assunção (a afirmação) do trágico a existência ali, e dizer o porto seria dizer a negação de tudo, e dizer ‘o bote-salva-vidas’ seria dizer da miração como o de que se padece, e dizer ‘da agonia o sufoco o grito por socorro’ seria dizer que tão logo é que se estaria a inventar um deus aos fracos, um deus-ficção-aprumada-uma-casa-a-farmacopéia-aos-obstruídos quando à tentação, um remédio-uma-óstia-uma-prescrição ao ‘quê fazer’, e ao ‘como do fazer’ - porém o que se nos vêm é a voz de outro o poeta a dizer que a óstia toda óstia é apenas (e sobretudo) o que atua ‘quando o desejo morre de preguiça’. Está-se a ver que o desejo prescindiria da pessoa-que-deseja, não se está? Está-se a ver que os modos à pessoa bem pode ser o que acabe por represar a este desejo que é torrencial, desejo que seria o próprio mover da vida, e a inscrição de um seu passamento. Está-se a ver que o desejo seria a condição uma condição à imanência (desejo-mundo-fluxo-germinal), e que nela, desde ela nada é que se dá a ver sob a tutela de um nome, todo nome, ali uma igreja, ali o Estado - sempre ele a operar os seus milagres aos lázaros rotos – asseá-los, conjurá-los, interná-los, ou num termo apenas, um eufemismo: otratá-los’. Está-se a ver que a resistência é à imanência – porque o que se ‘desopera’ sempre e sempre não seria já a ficção de que (nos) haja um ‘para acima’, ‘um para além’ (um transcendente) que não aquele ‘lá’, que não aquele ‘estar todo lá’ – e o ‘lá’ em sendo uma região inóspita, toda a região este ‘lá’, região na que a condição fluidífica é(-nos) também a condição afirmada de que nos seja o que for, de que nos seja o que já (nos) é. Lembrança de um lance de dados. Lembrança de um Nietzsche a afirmar que o lance é um apenas. E que não se trata de depositar a ênfase no ‘aquele’ que estaria a lançar os dados – como se fora uma ‘pessoa’ ali a escolher. Lembrança de um Nietzsche que ao dizer que a ênfase em definitivo em não estando ali – nesta ‘envergadura intencionada, a pessoa’, ele mesmo, este Nietzsche, ele não estaria a dizer que seria de se tecer louros às mãos invisíveis de um mercado (de trocas, de tomas-lá-e-dás-aqui), não seria de se lhe render graças – nunca que isto! - Nietzsche estaria a dizer do trágico a condição na que o dado está já a ser lançado, e que se for de ser esta a combinação não será de outro modo (ainda) um tempo outro na que quem sabe se lance outro dado (e outro e outro), na que quem sabe se lance uma outra vez (e outra e outra a vez) o mesmo dado até que então quem sabe se acerte a uma combinação, até que então quem sabe se esteja a acertar senhas que escancarem portas. Não há o que acertar. Não há o estar ao certo. Não há este lugar para onde se vai em conformidade ao que se queria. Quem seria ‘este que quer’? Apenas que isto - o dado, o lanço. Aí é que se está. Não há saída. E o ‘não haver saídas’ é já a condição do liberto. Liberto da ficção, liberto das falsas promessas de que um dia o dia nos será de um azul metafísico, liberto das falsas certezas de quando um sermão desde a montanha (a ênfase numa posse/escritura do que nos seria desde sempre – uma vez que se estando inscrito à filiação – deus deus - tudo já nos seria nosso – esquema de herança do privado uma transferência de recursos e propriedades, um cristo que é filho de ninguém menos do que ‘o dono do mundo’, ele a dizer: ‘como podes me dar o que já é meu?!”), liberto dos modos diversos no que (nos) se inscreve a culpa uma vez um fracasso a se nos pregar até a comoção, ela a culpa a irresgatável, ela a que faz vergar – os joelhos ao chão, ela a culpa (e seu maquinário) a nos sugerir uma (nossa) superação, tão logo, prostrados à adoração, à adulação de tão brancos os senhores. Lembrança de um Carlos Henrique Escobar a dizer que sempre se está sob o acaso pesado de uma inscrição singular - a cena suja na que se é toda hora todo sempre e isto de uma só vez. Nada que se erra, nada que se acerte. Apenas que está-se ali. Então, trata-se disto. E então, trata disto. Em tempo: não se deve ler ‘tratar’ como se  se estivesse a dizer ‘curar’ – ao menos aqui e agora. A não ser que o médico aqui seja aquele que tome a si a civilização. Sobrelevá-la? – qual nada isto! Buscar uma planura, um lugarzinho ao sol for o caso os pulmões resfriados? Nada que isto. O médico aqui traz consigo a sabedoria de Sileno. Outro modo o dizer disto – ‘Vais ter com homens? Levar consigo os chicotes”.
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Um prêmio literário. Sobre o que será versa um prêmio literário? Está-se aqui a perguntar quase afônico. Parece que o caminho a que se dá aquele percurso às palavras que desde a boca se lançam ao mundo é percurso estranho, espinhoso, pedregoso, formado por rochas de há muito sedimentadas. Há que se usar de britas. Há de se fazer das palavras substância corrosiva que quem sabe elas penetrem o muro das significações dominantes. Que quem sabe elas as palavras se façam explosivas e seja de um desmonte o operar delas até que os homens – está-se com as palavras, mas palavras aqui são esporas. Um prêmio literário o que seria? Resposta rápida rapidinha que se (nos) chega é resposta rasa, situada (sitiada, sitiante) ao tanto do comum que se firma (tão logo) desde o que parece brilhar (aceso) a campainha de todas as respostas, uma eureka! Fiat lux! E no calor da resposta de pronto a resposta pronta a que se faz valer é aquela que diz que o que ali se faz (quando de um prêmio literário) é premiar o que seria o melhor dentre os textos, o melhor dentre os melhores, ou os melhores dentre os outros que não. E então, e então, e então. As palavras fáceis elas descem por corredeiras. São palavras tagarelas elas mesmas. São palavras em equilíbrio aos lugares. São palavras-clichês. São palavras que nunca é que solapam. São palavras que dão o sítio. São palavras que esclarecem.  São palavras que como pregos, estacas, arames promovem uma cerca. Palavras do saber, desde o saber, para o saber – palavras sábias. Palavras que amealham a si alguma prata. Palavras que se lançam à direção dos editais e os seus formulários. São palavras que preenchem cada item. Palavras que a tudo respondem. São palavras-respostas. Palavras de plantão.  Palavras de orelhas em pé. E como que numa giratória contínua as orelhas das palavras. Palavras radares. Palavras como sirenas. Palavras de emergência, dos que emergem, dos emergentes. Palavras de novos ricos. Palavras que fazem caber em si tudo como se elas lhes servissem de luva. Estamos à contramão disto. Necessário diminuir o tempo. Necessário desacelerar os motores. Está-se em terreno sólido, pedregoso. Está-se dentro dos saberes que já e há tanto andaram a operar os seus cortes, as suas incisões à carne do mundo. O que será se deixou de fora uma vez o corte? Não será a noite dos incontinentes, e nela estes, os tais incontinentes? Não seria aquilo mesmo que se lhe escapuliu uma vez a precisão da lâmina, uma vez a pontualidade das arestas de então, uma vez as alíneas do contrato que passou a registrar o legítimo? Está-se a sugerir o passo lento, o cágado em lugar ao lépido, o devagar uma vez os instantâneos. Está-se a sugerir que desmontemos a casa, e que desmontando a casa se comece por desmontar o quarto dos horrores no que uma casa (por vezes, tantas às vezes) ali se funda. Está-se a sugerir que retomemos ao inóspito de antes – aquela região curiosa na que as coisas não pareciam tender a um centro. Espécie de insaber que é antes o tom da contenda do que o do contrato. Claro está que a contenda aqui não é a guerra que desde o Estado se opera na direção de seu palácio – contenção das bordas, contenção da periferia, contenção dos perigosos, contenção dos inumanos, os monstros, contenção das bacantes desde o exército a cavalaria de que nos conta um Eurípedes. A contenda da que falamos é já a maquinaria de guerra de que sugere um Deleuze – Aquiles contra Heitor, e Aquiles luta porque a luta é de sua natureza barbárica. Não quer ele o regozijo do Estado (que é coextensivo à manutenção das classes, e de seu regime de favorecimento às elites que lhe operam).  Não quer Aquiles as plumas e paetês um seu afago – a remissão contínua a um sistema de premiação, não quer ele o acordo ao oficialato – sua ira de ferro, seu humor de úlcera, sua hierarquia assinalada nos distintivos o galardão as estrelas ao ombro. Não quer ele os jogos desde o qual o poder se faz inscrito - um saber ali, cortar e cortar. Aquiles está para lá do corte – ele mesmo o insurrecto, o incontinente. Mas voltemos. Recuemos até o prêmio. O que será se premia? Por que será se premia? Será há a possibilidade de um prêmio se não houver o primado do saber, o do cortado, o das instâncias do demarcado? Será há a possibilidade de um prêmio uma vez que não se saiba o primado da regra, e esta como que a situar o texto desde a regra mesma, o seu fabulário, um seu regulamento? O que será se premia? Não será o que desde a regra, na direção da regra se sitia, se faz sitiado um texto, todo texto ali? Não será que em se sabendo as regras se se faça um tanto mais razoável a premiação? Não será um prêmio a extensão dos domínios de posse dos seus juízes e jurados? Não será está neles representado a ‘razão’ e as ‘razões’ de um prêmio? Como se ao se premiar a um algo o algo primeiro que se está premiando fosse ‘os aqueles’ que bem julgaram – a sua certeza a sua descoberta, o seu ver ao certo, o seu enxergar perfeito, a sua detecção do que’ jamais seria’ não fossem eles os desbravadores, do que ‘jamais que viria à Luz’ não fossem aqueles olhos os de um bandeirante, aquela lupa, aquela benfeitoria o que ilumina e o que dispõe - e tudo isto desde os juízes e os jurados eles mesmos o que se fazem ver no que vêem, eles mesmos os que se distinguem no tanto que distinguem a outros, e tudo somado, noves fora zero, a imagem e semelhança o que estaria a primar?! Está-se então de todo ao saber. Saber, cortar. Mas quem é este que sabe? Qual será o estatuto do ‘quem’? Estamos ao tanto do literário, estamos a nos perguntar pelo seu espaço, e os seus modos ao texto – saber, cortar. Estamos nesta embocadura – espécie de encruzilhada dos caminhos que desde a Roma é para lá que convergem (espécie ‘impercebida’ de hegemonia do sistema viário – tudo em sendo o que acabasse por voltar ao mesmo ponto, e desde o mesmo ponto operar a sua engenharia de tráfego...), e eis que retorna a pergunta, uma vez o universo de um prêmio, e os seus subtextos, e os seus pressupostos, e eis que retorna a pergunta: o que será se premia? O que será um prêmio literário? Parece que há um texto ao prêmio. Parece que dizer ‘o texto’ é evocar também, e sobretudo, o texto que há na fala silenciosa de quem está a julgar, e no seu ato mesmo do conceder um prêmio a um texto que esteve lá de sob os seus olhos de formulação, a tábua dos indícios, uns tais mandamentos. Talvez que haja os indícios, e que os indícios sejam o que se vai passando de mão à mão: da mão de um que escreve, à mão de um texto escrito, e à mão dos que indicarão aos vencedores as batatas. Toda uma rede insidiosa de comunicação. E toda uma rede silenciosa de contenção. E todo o silêncio em rede do que se há de conjurar. Todo modo, será isto: uma sineta na calada da noite dos acordos já dispostos! Alguém ganha um prêmio. Mas quem será o ganha? E o que será ele ganha uma vez que ganha um prêmio? E retorna outra pergunta a esta embocadura da que não saímos: Qual o estatuto do ‘quem’, do ‘alguém’ – este ‘aquele’, ‘os que ganham’? Será este ‘alguém’ um alguém que ao estar fora do texto dispõe do texto como quem dispõe de um roteiro do ‘como fazer’ e do ‘quanto fazer’ e ‘do que não se deve ao fazer’ e ‘do que não se inscreve uma vez o fazer que se faz’? Tanto o saber, tanto saber – parece que sempre é que se está dentro dele, nele, a partir dele, em meio a ele, sob ele. Será não se sufoca aí? Será o caso acessar os brônquios – aparelhá-los ao conforme? Será possível o esquecimento das regras e então como que num acaso, o prêmio? Mas não será este ‘o aquele que esquece as regras’ um desregrado? E será que a um desregrado há de haver um prêmio? E será que uma vez havendo um prêmio ao desregrado este prêmio não lhe funcione como um regulamento a posteriori – uma inscrição outra vez ali ele a ser colocado para dentro, e então é que se estaria a ver se se o conserta, a ver se se o coopta! Um prêmio a este não lhe seria já um infortúnio, uma voz de prisão – um prêmio não lhe seria um forcado, um ‘a fórceps’ a enregelá-lo lá onde nele o que há é a ausência de toda luz que iluminasse – luz que espreitasse, que ‘refundasse’ o junto desde o cindido, luz que vasculhasse, que aprisionasse, e que inaugurasse deste modo o sistema mesmo de todo corte que é o saber? Mas será haverá este conluio entre o desregrado e as regras de seu corte, ou noutros termos, um prêmio e um júbilo como numa dança de roda, ou num pas de deux? Ou será que um prêmio é o que se destina aos eleitos que bem entenderam, e bem decoraram, e bem repetiram, e bem se sitiaram, e bem e bem e bem. Um prêmio não será uma artimanha ao bem – desde o bem a artimanha o artefato o regimento a tropa de elite, e tudo em sendo este caminho, este percurso, esta ‘rituália’ até que o bem, em direção a este? Um prêmio será um bem - uma propriedade, um ativo fortíssimo e operante no sistema de trocas? Um prêmio não será uma heráldica, um brasão, um distintivo – um sistema que se inaugura à filiação, uma casa grande na operação de seus milagres de inclusão social? Um prêmio não será uma distribuição de recursos aos que já os têm – uma vez que não se estaria lá sem ter os recursos que desde os bens ali eles tilintassem na direção disto que é já o que o distingue àquele que o aquinhoa? Um prêmio não seria uma tautologia – a repetição contínua da fórmula que desde a fórmula se fizesse reafirmada, e repete-se e repete-se o repetir de sempre?! Forma de levar ao longe e de modo constante uma regra, e seus operadores. Um prêmio não seria então uma ocupação de espaço? Um prêmio não seria uma empreitada – contrata-se gente na direção e na intenção de que se ‘acerquem’ (pôr uma cerca) os terrenos, e começa-se (começaria-se) pelos arames enfarpados (outra vez aqui esta imagem), e pelos sistemas de vigilância a ver se não entram por ali os detratores com pedras aos bolsos numa intifada, a ver se se restringe ao máximo os ‘aqueles’ que possam sacudir a muralha, os ‘aqueles’ que possam vir a exigir a desfeita/a desforra/o escárnio público a tudo o que for este conluio e então o muro a muralha a fortaleza o forte apache na contenção dos que estão a ver se se desfaz o feito que é desde o feitor o que se promove, a ver que se ‘desopere’ o que obnubila, a ver que se destrave a trava que se pôs em meio aos olhos a viciar a visão com os mesmos fantasmas, as mesmas regras, os mesmos acordos de gabinete - o recalque ali, uma interpretação ali, a significação dominante ali, o saber ali, o Estado sempre o Estado e ali nele os seus soberanos, a sua comitiva, a sua junta, a comissão científica. Um prêmio não seria o que se oferta sempre que o que se esteja a fazer seja a promoção de uma impostura, e também ela mesma a promoção esta impostura?
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Aqui e agora são palavras de um Sartre. E lembremos um algo: Sartre que recusara um prêmio. O Nobel de literatura. Imensa, longuíssima a conversa entre ele e sua Simone. Está-se entre os anexos de A Cerimônia do adeus. São palavras de um Sartre, ouçamo-lo: ‘O Prêmio Nobel consiste em conferir um prêmio a cada ano. A que corresponde este prêmio? Que significa que um escritor que recebeu o prêmio em 1974 - o que quer dizer isso em relação aos homens que o receberam antes ou em relação àqueles que não o receberam - mas que escrevem como ele, e que talvez sejam melhores? Que significa este prêmio? Pode-se dizer, realmente, que no ano em que mo concederam eu era superior aos meus colegas, os outros escritores, e que no ano seguinte um outro o era? É assim que se deve considerar verdadeiramente a literatura? Como pessoas que são superiores um ano, ou então que o são de há muito tempo, mas que serão reconhecidos nesse determinado ano como superiores? É absurdo. É evidente que um escritor não é alguém que num momento dado é superior aos outros. No mínimo, é igual aos melhores. Os ‘melhores’: isso ainda é uma fórmula. Ele é igual àqueles que fizeram livros realmente bons, e, além disso, é assim para sempre. Ele fez esta obra, talvez cinco anos antes, talvez dez anos antes. É preciso que haja uma certa renovação para que nos concedam o Prêmio Nobel. Eu tinha publicado ‘Les mots’; consideraram-no válido e me concederam o prêmio um ano depois. Para eles, isso acrescentava um valor a minha obra. Mas deve-se concluir que, no ano anterior, quando não tinha publicado essa obra, eu valia muito menos? É uma noção absurda; essa ideia de colocar a literatura em hierarquia é uma ideia completamente contrária à ideia literária, e, ao contrário, perfeitamente conveniente para uma sociedade burguesa que deseja integrar tudo. Se os escritores são integrados por uma sociedade burguesa, sê-lo-ão por uma hierarquia, porque é efetivamente assim que se apresentam todas as formas sociais. (...) Estou em total contradição com o Prêmio Nobel porque ele consiste em classificar os escritores. Se tivesse existido no século XVI, no século XV, saberíamos que Clément Marot recebeu o Prêmio Nobel, que Kant não o conseguiu - que deveria tê-lo recebido, mas que não lhe concederam porque houve uma confusão, ou uma atuação de determinados membros do júri; que Victor Hugo evidentemente o recebeu, etc. Assim, a literatura seria, então, completamente hierarquizada; haveria  os membros do Collège de France, e outros que teriam o Prêmio Goncourt, e depois outros que teriam recebido outras honrarias” (p.336-337).
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Na contramão disto, a contrapelo, dispara a voz da canalha (espécie de gralha loquaz)  na sua acusação contínua, habitual. São vozes rápidas no uso e abuso das palavras-fáceis a que mencionamos há pouco. Partem sempre e sempre da certeza irremovível de que o seu mundinho é a totalidade do mundo, e de que todos os que lhe acusam o fazer de seus joguetes ao feudo em proteção é por querer ocupar aquele seu casulo desde o qual lançam a toda hélade as suas verdades, e os seus formulários de conduta – romanos a tomar de assalto o que for o múltiplo – toda e qualquer voz em dissonância, e a inserir o que lhes for diverso na quadratura única de leitura de que parecem querer, poder. Juízes sempre jurados o grande julgador. Estão à condenação, à perscruta de novos réus, ou àquela premiação aos eleitos – duas facetas na retroalimentação da imensa vontade do ‘mesmo’: fazer que se continue tal como se está, fazer com que se continue a operação das benesses e de seu sistema de crença/de troca. Claro está há o cinismo e os cínicos. Mas façamos que não lhes emprestamos os ouvidos. Cínicos reiteram a peleja. Cínicos corroboram com o teatro de marionetes. Todo modo, aqui, as palavras clichês se farão presente – são os juízes que é em boa parte toda a gente um senso ao comum.  Ouçamos as suas palavras, nada doces, voltadas em composição uníssona ao que desde aqui ensejamos: - “Por que será lá vens tu a acusar tudo? Será tu pensas que alguém aqui é tolo? Será tu pensas que enganas a alguém. Estás a bradar com raivas, e cheio de ressentimento. Na certa que nunca é que conseguiste um prêmio. Na certa é que o que bem gostarias é de estar desfrutando das benesses que vêm desde os prêmios, e uma vez os prêmios. Apenas existem dois lugares: os que estão dentro da porta, e os que estão do lado de fora da mesma a querer um seu ingresso. Na certa que estás do lado de fora, e não consegues os méritos ao dentro. E mais a mais, outra vez é que retornas com este corpo de indicações em letra morta. Um Sartre ainda um Sartre? Não vês que isto há muito que foi superado. Não vês que os livros dele já não vendem? Que sequer que há fôlego a uma tese de investigação do seria um Sartre. Ele o ultrapassado. Não percebes os termos que ele usa – ainda ele a reclamar desde os chavões da velha esquerda, ele a dizer ‘sociedade burguesa’, ‘hierarquias’, ‘cooptação’, ele a supor desde si a si que seria ele mesmo o padrão de valores a ser seguido, que seria ele o íntegro e não todos que não ele, e também lá vem outra vez esta tua mania de indicar uns outros nomes de pouca monta, um Blanchot, um Foucault, um Deleuze, um Nietzsche, um Beckett, esta mania de alta literatura, esta fórmula eurocêntrica, este espelho de vaidades na que tu és ‘o aquele’ que brilha, esta erudição desde os cadernos, este tempo das letras mortas que não mais, como se fora tudo isto espécie de latim que já é ninguém quem o domina. Por que será não te renovas? Por que será não te dás a literatura dos folhetins? Aos novos de agora agorinha mesmo os bloggeiros – por que não a eles o teu credo? Por que será tu não freqüentas as festas? Por que não vais lá a aprender o se portar, e de forma desarmada esta aprendizagem?! Por que será não contratas um agente literário? Por que será não te fazes mais tranqüilo, mais cordato, por que será não aceitas as regras do jogo, por que será não entendes os refluxos de uma esquerda, por que será não compreendes que a história é morta, e que já não é o tempo das posições firmes, e dos radicalismos fadados ao fracasso? Por que será não tentas uma bolsa – tu não percebes que se está a promover a literatura uma vez as bolsas de fomento? E blá blá blá blá blá blá. Façamos minuto de silêncio ao morto – estivemos a gorar com isto. Porém desde as cinzas o renovado - aí estamos. Retomemos o fôlego desde a faca.
6
Tanta a acusação – e o quanto será que vingam estes argumentos? Há aí algum argumento? Houvesse argumento - o que será o vingar dos mesmos? Será o grau de um seu convencimento e isto expresso no tanto de seu raio de ação, no seu número de adeptos? Talvez que seja isto. Ainda assim, há que se desconfiar destes critérios. Está-se sob a máquina de fabulação da imprensa de massa, está-se sob reincidente golpe de estado mediático. É já uma observação face às maiorias silenciosas. Não será que o que se busca é justo uma sua aderência não-crítica ao que se lha deposita? Como se se estivesse a exigir o silêncio, a suspensão de toda forma à crítica. Partimos desta posição. Mas pensemos o que advém desde àquela saraivada de acusações. Talvez que já se arme o cadafalso que é a casa aos proscritos. Está-se à praça pública na que vingam os jogos de execução. Não mais isto. Aqui e agora, o lugar às coisas é sempre mais ao fundo – arrancado dali, seqüestrado o ‘ali’ ao público, resgatado até à zona cinza e mórbida dos interiores - o privado, o privativo, o pessoal. Daí que a acusação toda ela se volta à suposta pessoa que está a criticar o estado de coisas. Nunca que à crítica mesma (a que se teceu) é que se voltariam estes argumentos em defesa deste mesmo estado de coisas. Não há a discórdia, não pode haver a discórdia. Também isto a fazer parte do cenário típico a este estado de coisas. Não há a guerra entre as partes contenciosas, não pode haver o guerrear. Apenas o que há é a arenga, e uma arenga é sempre o fastio. Faz demorar o que deve ser rápido rapidinho – os jogos, os acertos, as diretivas, os regulamentos, os formulários a que se preencham nele as adesões. For o caso opera-se a estas por meio de telemarketing. Está-se sob o princípio de que se está a crescer, e o mito ao crescimento um seu conclamo é sempre o que torna produtiva a safra, e então é dos estoques o de que se trata, um seu acúmulo (nunca a sua queima – como numa queima de excessos). Apenas isto o de que se trata. Estoque, escroques. O mercado é o horizonte todo horizonte possível, e necessário é o saber se portar quando ao mercado. Nada de teorias gastas. A prática é sempre outra, e os sábios devem ser práticos, e objetivos. Afinal está-se a operar ‘o milagre da inclusão’ – e se for o caso o te inquietares, vê se percebes que é em ti, e desde ti que a inquietação se faz, um teu sintoma aí – outro modo de dizer que se há um problema ele é todo teu. E será, vez mais, a suspensão à grande política uma vez que é ‘a pessoa/peçonha’ o lugar a zona de um (seu) mal estar, e tudo somado, ali o seu caso clínico. Quem será nunca ouviu um algo assim? Quem será não percebeu os efeitos perversos que operam à suspensão da crítica e da política? Uma clínica onde deveria haver a grande política/o embate/o pensamento que é embate - de que falamos ao princípio. Porque a praça pública não há de ser o espaço dos sujeitos enquanto indivíduos expandidos desde o umbigo. A praça pública deveria ser o lugar do ‘nós’, e o ‘nós’ em definitivo não seria o somatório de ‘euzinhos’ particulares – ‘euzinhos em crise’, ou ‘euzinhos jubilosos’, qualquer que seja isto. Mas será há esta esfera, a subsumida? Será não se lha apagou os regimes de outrora – como que a fazer valer a continuação do ‘mesmo’ (aquele mesmo, a mesmidade, o pensamento único), e o ‘mesmo’ em sendo o que quer a significação dominante e opressora – uma significação hegemônica, um pensamento único?! Onde a arena à discussão, e ao desmonte do instituído – ou vá se dizer que o presente é a totalidade do tempo? Que o presente é a subsunção dos possíveis, e dos mundos todos os outros nele o contido, a contenção – será não se está a promover isto? Será há um desmonte, será há o trabalhar do trabalho que se possa fazer numa outra a direção, ou estaríamos a contar a cantilena o estribilho no que se conforma o ‘aquele’ que a canta como que a repetir em alto e bom som que ‘o mundo é assim e quem quiser gostar do mundo que bem entenda que o mundo - ele é assim’?! Forma estranha esta a de vergar o que o poeta dissera numa outra feita. Mas também e aqui, nestes modos ao proceder, o que se está em promoção é o repetir de uma fórmula que tanto sucesso fez, outrora, em Pindorama: Amar, ou deixar o ‘aqui’ - amar o que se nos dá e ponto, ou então um pé às costas e às costas um pouco abaixo é o lugar ao chute. Alguém será se lembra disto? Talvez que não.  A memória, a memória – ainda se dirá que ela bem alimenta aos ressentidos. Talvez que sim, talvez que não. Todo modo uma certeza: vive-se um tempo muito pouco dado aos homens embraseados.
7
Está-se em Pindorama. Bom que se deixe claro este registro de espaço e tempo. Falamos ao início que o ano é o de 2010. Nele despertamos ao ler aquele anúncio aos jornais – os resultados aos prêmios literários. A partir daí o que nos foi era a inquietude. E então, este arranjo. Claro está que boa parte do que aqui se disse não se restringe aos espaços de Pindorama. Esteve-se e está-se a falar sobre prêmios à literatura – aqui, ou algures. São espaços/modos que se comunicam, que se intercambiam, e dizer da impostura é enredá-los ao diagnóstico que se lhes voltamos. Todos juntos, todos aí. Todo modo – claro está – existirão sempre as especificidades de cada lugar, de cada aldeia. Porém, insistimos numa certa equivalência dos hábitos. Ainda assim olhemos um pouco ao umbigo. Está-se em Pindorama. Aqui os nomes costumam se repetir como que num refrão uma ladainha um estribilho, um seu bate-e-volta, um seu ir-e-vir até que se o fixe os nomes, os mesmos nomes fixados à cabeça/ ao fabulário/ao mapa das referências, os mesmos nomes, e sempre os mesmos ainda que sejam uns outros os nomes, e tudo somado - é curioso que eles pouco digam respeito ao universo das letras. Certo que havíamos combinado: esquecer os nomes, voltar os olhos aos textos. Porém, eis uma regrinha em Pindorama: ‘Há de se chamar atenção aos nomes’.  Sobretudo a eles. E serão gentes da música, com forte nome ali. E serão as gentes hiperexpostas aos media, com forte nome ali. Mas que será um nome forte? De forma pouco detida diremos sem embaraço: um nome forte é uma grife, um anteparo ao anonimato, e mais e mais, justo o seu contrário, um nome forte é o que conjura as formas ao esquecimento, todo e qualquer. Um nome forte é um nome ao mercado das trocas, um nome que movimente a bolsa, os pregões. Arrancam-se nomes fortes aos media. Arrancam-se nomes fortes à indústria cultural. E se isto se dá é porque (diz-se) uma vez a exposição contínua do nome (e daquele que atende pelo nome) se terá a garantia certa de retorno do que lá se investiu. Evita-se que se perca algo – é que a maré anda baixa, e a crise é infinita. Lamentamos que tal crise não se achegue aos escopos do ontológico. São crises intestinais, os velhos calos ao estômago, úlcera aqui, gastrite sob controle ali – sintomas de mero contratempo. Sintomas dos que estão ao jogo e o jogo é compulsivo, compulsório, sôfrego, mas carregado em adrenalina. Precisa-se de investidores - há de se ter o tino aos negócios, e há de se convir que se evite, toda prova, os riscos certos ao infortúnio. Afinal de há muito se diz que pouco é que se lê em Pindorama. Então, uma estratégia: há de se chamar atenção à literatura desde os nomes fortes. E não há como se arranjar nomes fortes desde as letras se não há um aglomerado de público ao literário. Buscar-se-á então noutros lugares a estes fortes nomes – uma vez isto, enfurna-se os tais nomes ali na intenção generosa de preencher o que parecia esvaziado. Claro que lá habitam ‘uns outros’ que sequer que carregam consigo nomes. São escritores, os anônimos. Estão debruçados ao espaço literário – o que é forma de dizer que estão nele engolfados. Mas nada que isto lhes seja amargo. Apenas que é a condição de um estar ali. Os escritores estão ali. E o estar ali é o estar àquela forma. Todavia são infortúnios àqueles promotores de festas e de fanfarras. Precisam ser removidos de ali para que os nomes fortes possam ocupar o seu extenso território de domínio. O que há de se fazer senão evitar que estes outros, os escritores, eles venham à tona? O que há de se fazer para evitar que eles se coloquem (desde a cara) fora d’água - um náufrago, os escritores, eles ali a ensejar um bom par de palavras em xingamentos, será convém isto? Talvez que estraguem a festa, e o investimento que lá nela se depositara, e então. 
8
É ainda de Pindorama que falamos. Aqui, quase que na íntegra, reproduzimos a fala de dois editores – que são as gentes a lidar com os livros, e o literário. Talvez mais com os primeiros do que com o segundo. Todo modo, vejamos o que eles conseguem no seu dizer tão curioso. Um foi quem disse a pérola, a pista, os modos a um prêmio literário – ‘Necessário o se fazer famoso. É que apenas assim se estará a ponto de conquistar um prêmio. Porque deste modo se estará a prestigiar o prêmio’. O outro editor dizia dos modos à publicação no seu nicho editorial: ‘Se for um livro comercial, nós pagamos a edição. Se não for, solicitamos ao autor que ele compareça com algum dinheiro’. O primeiro dos editores trazia um sorriso ao rosto na hora de um enunciado como aquele. Sorriso de canto de boca. É que parecia contar um segredo – e por isto o sussurro. É que parecia indicar uma luz ao final do túnel – e por isto a indulgência. Como quem indica o ‘quê fazer’. Como quem distribui bons conselhos. E como se então, uma vez isto, ele estivesse por convidar à festa – uma vez a senha ao ingresso. O segundo dos editores trazia uma carranca fechada. O queixo avantajado. A barba eriçada. Como se tivesse falhado ao apará-la sempre apressado que está. Entre viagens ao exterior – o pouso e a heresia. Parecia dizer o que lhe era claro, límpido, translúcido. Como seria de um outro modo? Um livro comercial é lucro garantido. Já o outro livro – que seja por custo e risco de quem o escreveu, e então ele que o assuma. Duas formas de ler tal enunciado: uma delas, esta de há pouco, é a que sugere que ‘um aquele’ que se deu a experimentos não-comerciais deve arcar com a sua ousadia. Como se lhe dissesse: ‘Se queres experimentar, então’. Desdobramento de tal enunciado: ‘Evite reincidir’. Este um dos modos de ler o que disse o editor da carranca, o turista de ‘sempre o mesmo’. Outro modo, a leitura nas entrelinhas daquela fala: em Pindorama, não poucas às vezes, deve-se entender de alguém que se diz ‘um editor’ o eufemismo da função investidor, e falar em literatura é contar o espaço de um negócio. Um livro comercial movimenta um bom ativo. Certo que há de se entender um tal argumento – afinal não se está à chuva para se molhar, mas para que se possa vender um bom bocado de sombrinhas, o guarda-águas. Questão é: Não serão as premissas de ambos, os editores, mais do que equívocas, não serão elas premissas perversas?!
9
O ano é o de 2010. Nele acordamos com uma notícia que (parece) mencionava livros, escritores, prêmios. Pensou-se tão logo que se tratava da literatura e então todo o estardalhaço que pudemos. Ledo engano. Nada que isto. Nada. Estava-se a falar em negócios. E falar em negócios, se é falar em investidor, é também falar em seguro, em apólices, em fiadores. Será estávamos com travas às vistas e pensamos, incautos, que líamos o caderno de cultura do jornal em questão? Talvez que fossem as páginas de economia. Talvez. Ou quem sabe se estivesse de fato entre as linhas do caderno cultural. Talvez que sim. Creio que era isto. Mas já pouco importa. Algo se dá como que à semelhança – ou não será isto, mas qual? A cultura, os negócios, a economia. Certo, certo. Necessário não perder os humores. Apenas que buscamos como que num assalto nos flagrar àquele tempo do despertar, e então que já nos vêm àquelas vozes, as mesmas vozes, aqueles nomes, os mesmos nomes, os fortes nomes, um prêmio ali, os fiadores. Será desde onde que se me chegam àquelas vozes? Pouco que importa isto. Pouco ou nada. Sobretudo se se está, uma vez desperto, um tanto mais apto à leitura dos fatos. Parece que sim. Parece que estou aí. Ao menos agora. E como que num sopro esvaem-se os fantasmas de ainda há pouco E junto com eles, as vozes os nomes. Estavam silentes entretanto. Pareciam em conluio. E sem que fosse fato, elas se riam desavergonhadas.

André Queiroz

quarta-feira, 22 de setembro de 2010




CAINDO NAS MADRUGADAS

ouço jambos caindo nas madrugadas.
uma grande solidão encontra
algumas mulheres com livros nas mãos.
são senhoras que lêem rosa.
meninas que lêem nietzsche.
fêmeas que lêem dostoiévski.
como ser outra se jamais se sabe o que se é?
além da névoa e da noite, o que existe?
a um ciúme amendoado estamos presas.
o que faz de nós porcelana e estrume?
ímã e tarântula?
qual homem ainda amar? Aquele que é veludo e não
adaga?
algumas mulheres já nasceram grutas.
por isso escrevem, maternais e cúmplices.
nas tardes de carnaval.
o que uma mulher procura em outra, além da ternura?
antigos medos se enfileiram.
hálitos e árias se confundem.
a felicidade é um pássaro de asas curtas e desejos
molhados.
o que nos faz diabólicas
ísis, helenas, electras, medusas, medéias?
inocentada pela delicadeza uma fina chuva cai.
enumero coisas perdidas:
serpentinas, ciladas, armadilhas.
e a lágrima primeira.
quase esquecida.




MEU SEGREDO

Silêncio: ouço chegar o fogo.
Ofereço-lhe a minha casa e o meu zelo.
Lá fora o mundo chora
— essa dor é o meu segredo.
Namoro a flor que tocou o pássaro que tocou a noite que tocou o amor.


SETA


Atrás do amor, um tentáculo.
Um túmulo. Uma sede de flor e sol.
Retorno para a menina que grita:
— Horror! Horror! Horror!
Mostro-lhe a seta que me acertou.
Coloco seu rosto entre minhas mãos
— e lanço-me.


DIAS CLAROS E FRIOS


nos dias claros e frios mulheres recolhem lembranças.
barbatanas se erguem e são vistas com calma e desespero.
homens permanecem ocultos.
moças partem e não voltam mais.
quasares de dor flutuam.
o que será que existe quando nós não estamos aqui?
treva e vento. azul-claro. azul escuro. desejos de céu.
rastros de compaixão atravessam séculos.
viemos do caos e clamamos sutilezas.
deusas que estão em nós, levem-nos para a lua.
para o ceilão, qualquer lado do pacífico.
livre-nos dessa culpa de pedra que nos faz inacessíveis.
que venha a nós a suavidade do mundo
e que este mar nos mostre a sua outra face.
coisas poderosas se levantam
e nos levam ao país da ternura.
raios e trovões nos chamam.
silenciosa vertigem do nada



ASSOMBRO

Corais paralisam suas presas.
Observo neste aquário tubarões de terrível beleza.
Quem me lançou dardo, deitou-se comigo.
Quem me amordaçou, gozou em silêncio.
Tenho na bolsa um coração assombrado.
Mas tão inocente e jovem que dá medo.
E me sustenta.


SEM TÍTULO


Para beijar os seus lábios eu surgi do lodo
ele me deu água
enviou-me ao hospício
dentro de suas vestes encontrei segredos medievais.
árias, anjos, musas.
as flores do mal.
eu quase fui sua
falávamos em eternidade e as escamas da morte se aproximavam.
consultei o i ching.
e lá estava: forte viga amparada por paredes frágeis



SOLAR

Cadáveres despertam depois do amor.
Lágrimas choram e se estrangulam.
Não sou a mulher que você vê.
Não sei o que é o inverno
- nunca vi a neve.
O meu ofício é reinventar asas para o sol.



MARIZE CASTRO, poeta imensa, nascida em Natal, 1962.
Publicou: Esperado Ouro (2005), Poço Festim Mosaico (1996),
Rito (1993) e Marrons Crepons Marfins (1984).
imagens: simon lee/gordon ball

sábado, 21 de agosto de 2010

Os Conjurados, Jorge Luis Borges


César

Aqui, o que deixaram os punhais.
Aqui, essa pobre coisa, um homem morto
que se chamava César. Aberto;
nas crateras da carne, os metais.
Aqui o atroz, aqui a detida
máquina usada ontem para a glória,
para escrever e executar a história
e para o gozo pleno da vida.
Aqui também o outro, aquele prudente
imperador que declinou medalhas,
que comandou barcos e batalhas
e que regeu o oriente e o poente.
Aqui também o outro, o que virá
cuja grande sombra o mundo inteiro será.

Tríade

O alívio que terá sentido César na manhã de Farsalia, ao
pensar: hoje é a batalha!
O alívio que terá sentido Carlos Primeiro ao ver o amanhecer
no cristal e pensar: hoje é o dia do patíbulo, da coragem e do machado.
O alívio que tu e eu sentiremos no instante que precede a morte, quando a sorte
nos desate do triste costume de ser alguém e do peso do universo.

A trama

As migrações que o historiador, guiado pelas desafortunadas relíquias da cerâmica e do bronze, trata de fixar no mapa, e que não compreenderam os povos que as executaram.
As divindades do amanhecer que não deixaram nem um ídolo nem um símbolo.
O sulco do arado de Caim.
O sereno na grama do Paraíso.
Os hexagramas que um imperador descobriu na carcaça de uma das tartarugas sagradas.
As águas que não sabem que são o Ganges.
O peso de uma rosa em Persépolis.
O peso de uma rosa em Bengala.
Os rotos que se pôs uma máscara que guarda uma vitrine.
O nome da espada de Heengist.
O último sonho de Shakespeare.
A pena que traçou a curiosa linha: He met the Nightmare and her name he told.
O primeiro espelho, o primeiro hexâmetro.
As páginas que leu um homem cinzento e que lhe revelaram
que podia ser Don Quixote.
Um ocaso cujo escarlate perdura em um vaso de Creta.
Os brinquedos de um menino que se chamava Tibério Graco.
O anel de ouro de Polícrates que o Destino recusou.
Não há uma só dessas coisas perdidas que não projete agora uma extensa sombra, e que não determine o que fazes hoje ou o que farás amanhã.

Relíquias

O hemisfério austral. Sob sua álgebra
de estrelas ignoradas por Ulisses,
um homem busca e seguirá buscando
as relíquias daquela epifania
que lhe foi dada, há tantos anos,
do outro lado de uma numerada
porta de hotel, junto ao perpétuo Tamisa,
que flui como flui esse outro rio,
o tênue tempo Elemental. A carne
esquece seus pesares e seus êxtases.
O homem espera e sonha. Vagamente
resgata umas triviais circunstâncias.
Um nome de mulher, uma brancura,
um corpo já sem rosto, a penumbra
de uma tarde sem data, a garoa,
umas flores de cera sobre um mármore
e as paredes, cor rosa pálido.


 São os rios

Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.

A jovem noite

Já as lustrais águas da noite me absolvem
das muitas cores e das muitas formas.
Já no jardim as aves e os astros exaltam
o regresso esperado das antigas normas
do sonho e da sombra. Já a sombra selou
os espelhos que copiam a ficção das coisas.
Melhor disse Goethe: o próximo se afasta.
Essas quatro palavras cifram todo o crepúsculo.
No jardim as rosas deixam de ser as rosas
e querem ser a Rosa.

Elegia de um parque

Perdeu-se o labirinto. Perderam-se
todos os eucaliptos ordenados,
os toldos do verão e a vigília
do incessante espelho, repetindo
cada expressão de cada rosto humano,
cada fugacidade. O suspenso
relógio, a entretecida madresselva,
o arvoredo, as frívolas estátuas,
o outro lado da tarde, o trino,
o belvedere e o ócio da fonte
são coisas do passado. Do passado?
Se não houve um princípio nem haverá um término,
se nos aguarda uma infinita soma
de brancos dias e de negras noites,
já somos o passado que seremos.
Somos o tempo, o rio indivisível,
somos Uxmal, Catargo e a apagada
muralha do romano e o perdido
parque que comemoram estes versos.

A suma

Ante a cal de uma parede que nada
nos veda imaginar como infinita
um homem se sentou e premedita
traçar com rigorosa pincelada
na branca parede o mundo inteiro:
portas, balanças, tártaros, jacintos,
anjos, bibliotecas, labirintos,
âncoras, Uxmal, o infinito, o zero.
Povoa de formas a parede. A sorte,
que de curiosos dons não é avara,
lhe permite dar fim à sua porfia.
No preciso instante da morte
descobre que esta vasta algaravia
de linhas é a imagem de sua cara.


Nuvens (1)

Não haverá uma só coisa que não dê ideia
de uma nuvem. O são as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o templo renderá. O é a Odisséia,
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de teu rosto já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que está perdido.


Nuvens (2)

Pelo ar andam plácidas montanhas
ou da sombra de cordilheiras trágicas
que obscurecem o dia. São as mágicas
nuvens. As formas podem ser estranhas.
Shakespeare observou uma. Parecia
um dragão. Essa nuvem de uma tarde
em sua palavra resplandece e arde
e a seguimos vendo todavia.
Que são as nuvens? Uma arquitetura
do azar? Deus, talvez, as necessita
para a execução de Sua infinita
obra e são fios da trama obscura.
Talvez a nuvem seja não menos vã
do que o homem que a olha de manhã.


Tradução: Pepe Escobar

segunda-feira, 9 de agosto de 2010



A LITERATURA E A VIDA [1]
Gilles Deleuze
Tradução Peter Pál Pelbart 

Decerto que escrever não é impor uma forma (de expressão) a uma matéria, a do vivido. A literatura tem que ver, em contrapartida, com o informe, com o inacabado, como disse Gombrowicz e como o fez. Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-se, que extravasa toda a matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrevermos, devimos-mulher, devimos-animal ou vegetal, devimos-molécula até devir-imperceptível. Estes devires encadeiam-se uns com os outros segundo uma linha particular, como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, por intermédio de portas, entradas e zonas que compõem o universo inteiro, como na poderosa obra de Lovecraft. O devir não vai noutro sentido: não devimos Homem, mesmo que o homem se apresente como uma forma de expressão dominante que pretenda impor-se a toda a matéria; ao passo que mulher, animal ou molécula têm uma componente de fuga que se descarta à sua própria formalização. A vergonha de se ser um homem: haverá melhor razão de escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, ela tem de devir-mulher, e este devir nada tem que ver com um estado de qual poderia vir a reclamar-se. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais singularizados numa população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa, com a condição de que se criem os meios literários para isso, como com o áster, segundo André Dhôtel. Entre os sexos, os gêneros ou os reinos, qualquer coisa passa [2] . O devir é sempre “entre” ou “dentre”: mulher entre as mulheres, ou animal dentre outros animais. Mas o artigo indefinido não efetua a sua potência a não ser que o termo que ele faz devir seja, ele próprio, desapossado dos caracteres formais que fazem dizer o,a (“o animal que aqui está”). Quando Le Clézio devém-índio, é um índio inacabado esse, que não sabe “cultivar milho nem talhar uma piroga”: em vez de adquirir características formais, entra numa zona de vizinhança [3]. Do mesmo modo Kafka, o campeão de natação que não sabia nadar. Toda a escrita comporta um atletismo, mas não tem nada que ver com uma reconciliação da literatura com o desporto, ou com o fazer da escrita um jogo olímpico  este atletismo exerce-se na fuga e no eclipse orgânicos: um desportista na cama, dizia Michaux. Devimos tanto mais animal quanto o animal morre; e, contrariamente a um preconceito espiritualista, quem sabe morrer é o animal, é o animal que tem o sentido disso ou o pressentimento. A literatura começa com a morte do porco-espinho, segundo Lawrence, ou a morte da toupeira, segundo Kafka: “as nossas pobres pequenas patinhas vermelhas estendidas num gesto de terna piedade”. Escreve-se para os bezerros que morrem, dizia Moritz [4]. A língua deve atingir desvios femininos, animais, moleculares, e todo o desvio é um devir mortal. Não há linha recta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários, criados, de cada vez, para revelar a vida nas coisas.

Escrever não é narrar as recordações, as viagens, os amores e o luto, os sonhos e os fantasmas. É o mesmo pecar por excesso de realidade ou de imaginação: nos dois casos é o eterno papá-mamã, estrutura edipiana que projetamos no real ou que injetamos no imaginário. Trata-se de um pai que se vai buscar no fim da viagem, no seio de um sonho, numa concepção infantil da literatura. Escreve-se para o seu pai-mãe. Marthe Robert levou até ao fim esta infantilização, esta psicanalização da literatura, não deixando outra escolha ao escritor senão entre Bastardo ou Filho reencontrado [5]. Mesmo o devir-animal não está ao abrigo de uma redução edipiana, do gênero “o meu gato, o meu cão”. Como diz Lawrence, “se eu sou uma girafa e os ingleses vulgares que escrevem sobre mim são cães bem educados, aí está, os animais são diferentes, detestais instintivamente o animal que sou” [6]. Regra geral, os fantasmas não tratam o indefinido a não ser como máscara de um pronome pessoal ou de um possessivo: “uma criança apanhou” transforma-se depressa em “o meu pai me bateu”. Mas a literatura segue a via inversa, e só se levanta quando descobre sob as pessoas aparentes a potência de um impessoal que de modo nenhum é uma generalidade, mas uma singularidade ao mais alto nível: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma criança. Não são as duas primeiras pessoas que servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos retira o poder de dizer Eu (o “neutro” de Blanchot) [7]. Claro, as personagens literárias são perfeitamente individuadas, e não são nem vagas nem gerais; mas todos os seus traços individuais elevam-nas a uma visão que as transporta para um indefinido, como um devir demasiado poderoso para elas: Acab e a visão de Moby Dick. O Avarento não é um tipo, mas, pelo contrário, os seus traços individuais (amar uma rapariga etc.) fazem com que aceda a uma visão, ele vê o ouro, de tal maneira que se põe em fuga numa linha de feiticeira na qual adquire a potência do indefinido  um avarento… de ouro, cada vez mais ouro… Não há literatura sem fabulação, mas, como Bergson o soube ver, a fabulação, a função fabuladora, não consiste em imaginar nem em projectar um eu. Contrariamente a isso, ela atinge essas visões, eleva-se até esses devires ou potências.

Não se escreve com as neuroses. A neurose, a psicose, não são passagens de vida, mas estados nos quais se cai quando o processo se interrompe, quando está impedido, preenchido. A doença não é processo, mas paragem do processo, como no “caso Nietzsche”. E também o escritor como tal não é doente, mas médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura surge então como uma tarefa de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma grande saúde (haveria aqui a mesma ambiguidade que no atletismo), mas usufrui de uma irresistível pequena saúde que vem daquilo que viu e escutou, das coisas demasiado grandes para ele, demasiado fortes para ele, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, e que lhe dá, no entanto, devires que uma grande saúde dominante tornaria impossíveis [8]. Do que viu, do que escutou, o escritor regressa com os olhos vermelhos, os tímpanos furados. Qual a saúde que seria suficiente para libertar a vida em todo o lado onde ela está presa, pelo homem e no homem? É a pequena saúde de Espinosa, enquanto dura, sendo até ao fim testemunha de uma nova visão, que se abre à sua passagem.

A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Pertence à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as recordações, a menos que se faça delas a origem ou o destino colectivos de um povo a vir ainda emerso nas suas traições e abjurações. A literatura americana tem esse poder excepcional de produzir escritores que podem narrar as suas próprias recordações, mas como recordações de um povo universal composto pelos emigrantes de todos os países. Thomas Wolf “deita por escrito toda a América, na medida em que ela se pode encontrar na experiência de um só homem” [9]. Precisamente, não é um povo chamado a dominar o mundo. É um povo menor, eternamente menor, absorvido num devir-revolucionário. Talvez ele não exista senão nos átomos do escritor, povo bastardo, inferior, dominado, sempre em devir, sempre inacabado. Bastardo não designa já um estado familiar, mas o processo ou a deriva das raças. Eu sou uma besta, um negro de raça inferior para toda a eternidade. É o devir do escritor. Kafka para a Europa central, Melville para a América, apresentam a literatura como enunciação colectiva de um povo menor, ou de todos os povos menores, que, por intermédio do escritor e nele próprio, encontram a sua expressão [10]. Ainda que reenvie sempre para agentes singulares, a literatura é agenciamento colectivo de enunciação. A literatura é delírio, mas o delírio não é um assunto de pai-mãe: não há delírio que não passe pelos povos, pelas raças e as tribos, e que não habite a história universal. Todo o delírio é histórico- mundial, “deslocamento das raças e dos continentes”. A literatura é delírio, e nisto joga o seu destino entre os dois polos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência, quando erige uma raça que se pretende pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida, que não pára de se agitar sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona, e de se esboçar enquanto fundo na literatura como processo. Ainda aí, há um estado doentio que pode sempre interromper o processo ou o devir; e encontramos a mesma ambiguidade da saúde e do atletismo, o risco constante que um delírio de domínio se misture com o devir bastardo, e arraste a literatura para um fascismo larvar, a doença contra a qual ela luta, até que a diagnostique nela própria e lute contra ela própria. Fim último da literatura, distinguir no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, quer dizer, uma possibilidade de vida. Escrever para esse povo que falta (“para” significa menos “no lugar de” do que “na intenção de”).

O que a literatura faz na língua surge agora melhor: como diz Proust, aquela traça nesta uma espécie de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um patos reencontrado, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a transporta, uma linha de feiticeira que se escapa do sistema dominante. Kafka fazia dizer ao campeão de natação: eu falo a mesma língua que vós, e porém não percebo uma palavra daquilo que dizeis. Criação sintática, estilo, é este o devir da língua: não há criação de palavras, não há neologismos que tenham valor fora dos efeitos de sintaxe em que se desenvolvem. A literatura apresenta dois aspectos, na medida em que ela opera uma decomposição ou uma destruição da língua materna, mas também opera a invenção de uma nova língua na língua, por criação de sintaxe. “A única maneira de defender a língua é atacá-la. Cada escritor é obrigado a fazer a sua língua” [11]. Dir-se-ia que a língua está tomada por um delírio, que a faz precisamente sair dos seus próprios sulcos. Quanto ao terceiro aspecto, reside em que uma língua estrangeira não é sulcada na própria língua sem que toda a linguagem, por sua vez, oscile, sem que seja levada a um limite, a um lado de fora ou a um avesso consistindo em Visões e Audições que já não pertencem a nenhuma língua. Estas visões não são fantasmas, mas verdadeiras Ideias que o escritor vê e escuta nos interstícios da linguagem, nos hiatos de linguagem. Não são interrupções do processo, mas paragens que fazem parte dele, como uma eternidade que não pode ser revelada a não ser no devir, uma paisagem que não aparece a não ser no movimento. Não estão fora da linguagem, elas são o seu lado de fora. O escritor enquanto vidente e ouvinte, objectivo da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias.

São estes os três aspectos que em Artaud estão perpetuamente em movimento: a queda das letras na decomposição da linguagem maternal; a sua retomada numa nova sintaxe ou em novos nomes de alcance sintáctico, criadores de uma língua (“eTReTé” [12]); as palavras-sopro finalmente, limite assintáctico para onde tende toda a linguagem. E Céline, não podemos impedir-nos de o dizer, tão sumário o sentimos: a V agem ou a decomposição da língua maternal; Morte a Crédito e a nova sintaxe como uma língua na língua; Guignol's Band e as exclamações suspensas como limite da linguagem, visões e sonoridades explosivas. Para escrever, talvez seja necessário que a língua materna seja odiosa, mas de maneira tal que uma criação sintáctica trace aí uma espécie de língua estrangeira, e que a linguagem toda inteira revele o seu lado de fora, para além de toda a sintaxe. Acontece que se felicita um escritor, mas ele sabe que está longe de atingir o limite que se propôs e que não pára de se deslocar, que está muito longe de ter acabado o seu devir. Escrever é também devir outra coisa diferente de um escritor. Àqueles que lhe perguntam em que é que consiste a escrita, Virgínia Wolf responde: quem é que vos fala em escrever? O escritor não fala disso, está preocupado com outra coisa.

Considerando estes critérios, vemos que, de entre todos aqueles que fazem livros com intenção literária, mesmo entre os loucos, muito poucos podem dizer-se escritores.


Notas:

1. Deleuze, Gilles, “La Litérature et la Vie”, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.
2. Cf. André Dhôtel, Terres de mémoire, Ed. Universitaires (sobre um devir-áster em La Chronique fabuleuse, p.225).
3. Le Clézio,Haï, Flammarion, p.5. No seu primeiro romance, Le procès-verbal, Folio-Gallimard, Le Clézio apresentava de maneira quase exemplar um personagem tomado num devir-mulher, depois num devir-rato, depois num devir-imperceptível em que se apaga.
4. Cf. J.-C. Bailly, La légende dispersée, anthologie du romantisme allemand, 10-18, p.38.
5. Marthe Robert, Roman des origines et origines du roman, Grasset.
6. Lawrence, Lettres choisies, Plon, II, p.237.
7. Blanchot, La part du feu, Gallimard, p.29-30, e L'entretien infini, p.563-564:
“Qualquer coisa lhes acontece (aos personagens) donde não podem sair a não ser desapossando-se do seu poder de dizer Eu.” A literatura parece aqui desmentir a concepção linguística, que encontra a condição da enunciação nos “embrayeurs”, nomeadamente nas duas primeira pessoas.
8. Sobre a literatura enquanto assunto de saúde, mas para aqueles que não a têm ou que têm uma saúde frágil, cf. Michaux, posfácio a “Mes propriétés”, in La nuit remue, Gallimard. E Le Clézio, Haï, p.7: “Um dia, saberemos talvez que não havia
arte, mas apenas medicina.”
9. André Bay, prefácio a Thomas Wolfe, De la mort au matin, Stock.
10. Cf. as reflexões de Kafka sobre as literaturas ditas menores, Jou rn al, Livre de poche, p.179-182; e as de Melville sobre a literatura americana, D'où viens-tu, Hawthorne?, Gallimard, p.237-240.
11. Cf. André Dhôtel, Terres de mémoire, Ed. Universitaires (sobre um devir-áster, em La Chronique fabuleuse, p.225).
12. Como no original. [n.d.t.].

sábado, 7 de agosto de 2010

UM GUARDA-CHUVA NO CAOS: D. H. LAWRENCE




A poesia, dizem, é uma questão de palavras. E é verdade, tanto quanto a pintura é uma questão de tinta e o afresco, uma questão de água e ocra. Mas isso está tão longe de ser toda a verdade que soa um tanto simplista quando dito secamente.

A poesia é uma questão de palavras. A poesia consiste em combinar palavras para fazê-las ondular e vibrar e colorir. A poesia é um jogo de imagens. A poesia é a iridescente sugestão de um ideia. A poesia é todas essas coisas e, contudo, é algo mais. [...]

A qualidade essencial da poesia consiste em que ela exige um esforço renovado da atenção, e que “descobre” um mundo novo no interior do mundo conhecido. O homem, e os animais, e as flores, vivem todos dentro de um caos estranho e permanentemente revolto. Chamamos cosmo ao caos ao qual nos acostumamos. Chamamos consciência – e mente, e também civilização – ao indizível caos interior de que somos compostos. Mas trata-se, em última instância, do caos, iluminado por visões, ou não iluminado por visões. Exatamente como o arco-íris pode ou não iluminar a tempestade. E, tal como o arco-íris, a visão perece.

Mas o homem não pode viver no caos. Os animais podem. Para o animal tudo é caos, havendo apenas algumas poucas e recorrentes agitações e aparências em meio ao tumulto. E o animal fica feliz. Mas o homem não. O homem deve envolver-se em uma visão e construir uma casa que tenha uma forma evidente e que seja estável e fixa. No pavor que tem do caos, começa por levantar um guarda-chuva entre ele e o permanente redemoinho. Então, pinta o interior do guarda-chuva como um firmamento. Depois, anda à volta, vive, e morre sob seu guarda-chuva. Deixado em herança a seus descendentes, o guarda-chuva transforma-se em uma cúpula, uma abóbada, e os homens começam a sentir que algo está errado.

O homem ergue, entre ele e o selvagem caos, algum maravilhoso edifício de sua própria criação, e gradualmente torna-se pálido e rígido embaixo de seu pára-sol. Então ele se torna um poeta, um inimigo da convenção, e faz um furo no guarda-chuva; e oba!, o vislumbre do caos é uma visão, uma janela para o sol. Mas depois de um certo tempo, tendo se acostumado à visão, e não lhe agradando a genuína golfada de ar do caos, o homem do lugar-comum rascunha um simulacro da janela que se abre para o caos, e remenda o guarda-chuva com o remendo pintado do simulacro. Isto é, ele se acostumou à visão; ela faz parte da decoração de sua casa. De maneira que o guarda-chuva finalmente parece um amplo e brilhante firmamento, de vistas variadas. Mas, que pena!, é tudo simulacro, feito de inumeráveis remendos. Homero e Keats, cheios de anotações e acompanhados de um glossário.

Esta é a história da poesia em nosso tempo. Alguém vê Titãs no ar selvagem do caos, e o Titã torna-se uma parede entre as sucessivas gerações e o caos que elas deveriam ter herdado. O céu selvagem pôs-se em movimento e cantou. Até isso torna-se um grande guarda-chuva entre a humanidade e o céu de ar fresco; ele tornou-se, então, uma abóbada pintada, um afresco num teto abobadado, sob o qual os homens empalidecem e se tornam infelizes. Até que um outro poeta faça um buraco no amplo e tempestuoso caos.”


D.H. LAWRENCE – in Selected Critical Writings, p. 234.


Nota: Deleuze e Guattari em O que é Filosofia (Editora 34, ) retomam de modo brilhante este texto de D. H. Lawrence. Você verá também um estudo sobre o Apocalipse a partir de Lawrence em: Nietzshe e São Paulo, D. H. Lawrence e João de Patmos – in Gilles Deleuze, Crítica e Clínica. Tradução de Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

cultura-caos

não leio livros coleciono capas
descobri drummond não usou
mais que quatro cores na vida
whitman jamais assinou e sim
registrou foto às “folhas de relva”
lima barreto cortou orelhas
que machado escusou prefaciar
ana cristina mimeografou em londres
livros nos fundos de uma boate gay
não enrubesçam nem se revoltem
leio capas coleciono livros
o diafragma aberto de seu dorso



ney ferraz paiva
imagem: c. neill

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Orfeu Rebelde



Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do Tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.





Miguel Torga
imagem: Dante Ferraz



Desfecho



Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente,
Do teu vulto calado,
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando, alguém lhe perturba a solidão
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.





Miguel Torga, Câmara Ardente
imagem: ney ferraz paiva