o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009


a cisterna contém: a fonte transborda

de tudo retiro água

pra fazer funcionar o poema

mesmo da estátua enferrujada

de william blake dentro de um livro

se nada posso tocar na colheita

transgrido: roubo desfruto rapto

sem que nada aprenda & nada ensine

apenas espero veneno da água parada




anti-receita

rara é o palavro

raso o armadilho

rala é o pálpebro

roto o maravilho




curriculum mortis

fiz-me ao mar amargo da palavra

a morte é um cálice

cheio de silêncio

contamina o que antes fora água –

ferrugem rara sobre a relva

soletra-me seu nome

entre as pedras

o vento irado: espada afiada de dois gumes

ousa badalar os sinos que agonizam

tira dos gonzos a própria terra

consolador das crianças mortas

palavras afogadas no ódio





signé ana c.

toquei minha mão justo na mão de ana
portas nos separam ou nos mudam de lugar?
agora me pergunto se a presença do corpo é mesmo dispensável
não saber estilhaça meus sentidos
giro em torno do vazio feito um cão atrás da cauda
(quando criança costumava encher o rosto de creme
sempre foi de longe a mais vaidosa
musa transviva do amanhecer
depois namoro na praia & na montanha
a dor de pegar o avião & ir embora
a mãe amélia disfarçada em luiza
luz é símbolo da beleza absoluta)
vivo sem saber como vai ser o dia
uma escritora está sempre atrelada a seu personagem
ensaio palavras em francês pra ela ouvir
recados luminosos espalhados pelos quatro cantos do mundo

seleta do livro "não era suicídio sobre a relva"
ney ferraz paiva (2000)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O Ver-o-Peso não dorme tranquilo



Quando a claridade diz, eu sou a escuridão,
disse a verdade.
Heiner Müller

para Evandro Pinto, capitão de breve curso das noites & ruas de Belém

“Adolescendosolar” não é algum neologismo barato, menor, de que se vale um escritor estreante pra compensar sua insegurança ou mesmo sua falta de talento. É só um jeito de corpo que a escrita de Luizan Pinheiro dá pra passar entre, pra atravessar e seguir adiante suas tramas simples, quase sempre chocantes. E esse jeito de ir entre e não de se guiar sempre fascina. De não pedir licença, não se medusar com o outro, com o estabelecido. Luizan Pinheiro vai em frente e não faz rodeios. E não quero dizer com isso que “é direto”, mas que sabe que a maior parte das histórias que conta (tratam-se evidentemente de histórias), dos protagonistas, dos cenários, está à partida condenada ao esquecimento. Mas é isso mesmo. O conto não é algo como uma escrita de jornal? Ele não sobrevive ao próprio cotidiano que aborda, este é sempre maior. Sua estatística, escuridão, pesadelo? Luizan não tem doces ilusões. Sabe que o sonho dura apenas uma noite. Logo é o dia que devora. Logo é a vida e sua comédia desmaquiada: fome, solidão, gravidez, tiro, morte. Eventualmente um João Antônio Ferreira Filho (quem?!), dá o ar da graça. O João Antonio de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, livro que, ainda inédito, sobreviveu até mesmo a um incêndio na casa do escritor. Tirado do fogo e das cinzas. No Brasil o grande livro nos chega quase sempre por acaso ou por milagre. Não tem política de incentivo, nem lei que mude isso. Os burocratas do Ministério da Cultura não têm imaginação – eles apenas fantasiam números e organogramas. As zonas inexploradas, Acre, Roraima, Amapá, Amazonas etc., permanecem. Esse enredo é algo velho, mas real e cruel.

Luizan vai por essas distâncias com o pouco que tem às mãos, escreve, dá aulas, paga do próprio bolso a modesta edição do livro – sai, dá um pique, um ziguezague pela cidade: o urbano, o subterrâneo, o deserto escuro em 22 contos ou quadros, por vezes, quase reportagens, crônicas de uma Belém dos anos 1990 ou, quem sabe, de uma Berlim dos anos 1970. O tempo é pendular, já os acontecimentos, os fatos, concretos. Não que Luizan não tente a oposição quando os descreve, pra transformá-los ou traduzi-los em outra forma. Recorre à visualidade, à musicalidade. Esgarça e restringe o ritmo. Amesquinha a personagem. Escrita, grafite, música. A descrição torna-se intensa e vívida. A paisagem, sempre um lance entre o real e o virtual, é quase perceptível e os perigos parecem autênticos. De súbito, se pode revisitar as narrativas de “Crônica de um Amor Louco”, de Charles Bukowski ou de um Heiner Muller, de “História de Amor”. As vozes, as vozes proliferam. Em “Pega leve, minha mão”, um dos contos de Luizan, Marina bem poderia dar outro desfecho pro amor que “vai se gastar” do confundido João P., personagem de Müller. A “garota” que João P. conhece numa estação de Berlim, bem poderia ser Marina. Marina enquadrada nos olhos gulosos de João P. Marina andando de um lado para outro na plataforma. Marina ao lado da banca de jornais, olhando na direção de onde o trem deveria vir. Tem pernas bonitas, a Marina, pensa João P. Marina que permanece enquadrada na sacada pelos olhos gulosos de Patrick. Ele leva vantagem sobre João P. Mora no mesmo condomínio e estuda na mesma escola de Marina. O cabelo dela parece com o da professora de inglês. Patrick sabe. E curte Legião Urbana tanto quanto ela. “Quem me dera ao menos uma vez ter de volta todo ouro que entreguei a quem”... João P. que amava Marina que amava Patrick que amava... Parece por instantes que os três podem viajar dali. Belém-Berlim-Rio de Janeiro. Os acontecimentos, os fatos não parecem tão concretos assim. A escrita de Luizan nos leva a um set de filmagens. A leitura vira cinema que vira escrita e outra coisa que se quiser, tantas as dobras, os fluxos e ângulos. A mesma duplicidade de dia e noite duma novela de Camus. Sol e Lua. Um pouco de cada coisa que vive contamina outras paisagens. Variações e virações. Contextos em decomposição, cidades, gêneros literários. As tramas não são tão simples assim. Há vários e sinuosos patamares de tempo, espaço e personagens. Os meio poderiam ser mais sofisticados – os aplausos da crítica assim exigem. Luizan, num próximo livro, deve alterá-los, mas não apenas por isso. Ele está atento às ondas de mercado, mas também e principalmente às camadas sucessivas, aos movimentos de uma escrita que devora tudo por onde passa.

Luizan não quer diminuir distâncias, quer percorrê-las. Ele avança pelo deserto sem saber o que vai encontrar pelo caminho. Foge o quanto pode do explícito, mas também não busca salvação nas metáforas. Olha ao redor, em busca das dores e dos medos que por vezes fingimos não saber, mas que são inevitáveis. Nas histórias de “Adolescendosolar” (serão mesmo histórias?) Luizan não se coloca como se estivesse de posse de um terrível segredo. Nada que escreve o consome pelo que não pode confessar. Tudo sabemos de antemão. Está em nós, ao nosso lado. Na rua, na praça, na feira. Nalgum lugar. Uma escrita que se mistura aos sons entranhados em nós. Não é um écran mudo, mas um concerto das ruas e das pessoas. Ver-o-Peso. Estrada Nova. Jurunas. Pedreira. Guamá. Beco do relógio ou Gogó da onça. Chuva, pôr-do-sol, letreiros, paredes, pichação. Assim é a cidade em sua inevitabilidade, vulnerabilidade e medo. São estas as imagens, sem simulações e retoques. Com seus focos de violência ou mesmo tornadas por inteiro uma intensa periferia. Não habitamos mais, coabitamos, apequenados, a um só tempo claridade e escuridão. E que tipo de realidade é essa? Qual é o lugar da escrita em meio a isso? Quais as diferenças e semelhanças que se acentuam? Sem dar as respostas, ainda que sempre muito atento (não à mobília, às roupas, aos objetos, senão à vida) Luizan Pinheiro toca por todos nós a flauta de sua coluna vértebra.

Ney Ferraz Paiva
Palmas dezembro 2009

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009



Conheci o Chico Espinhara uma certa noite em Castanhal, cidade próxima a Belém, lá pelos idos & corroídos anos 1980. Líamos poesia já nem sei mais onde, num lançamento, nem sei mais de quem. Batemos papo, tomamos umas, todas. Ele me falava do Recife, cidade com que também tenho íntima relação. Os tempos eram insípidos para os poetas. E tudo passou. Pra minha surpresa, quando fui lançar “Nave do Nada” no Recife, em 2004, nos reencontramos noutro lançamento, o do poeta Erickson Luna, promovido pelo Movimento Escritores Independentes de Pernambuco, lá pras bandas de Afogados, conduzido até á por ninguém menos que Pedro Américo de Farias. Conversa-vai-conversa-vem terminamos por rememorar o encontro de tantos anos atrás. Escutei atento e comovido Espinhara falar de suas angústias, impaciências, inquietações com a literatura, sua produção, as novas edições que se fazia dos poetas marginais da cidade. Apresentou-me a vários desses poetas, seus amigos. Todos trabalhadores, sempre com um poema novo pronto pra recitar. Poesia demais, gente demais, suportamos demais. As consequências da paciência. Dei a ele um exemplar da “Nave”, ele me fez outra presença, e fomos embora mais uma vez pela noite. Perdidos numa sintonia estranha com a poesia e a vida. Os tempos seguem insípidos para os poetas. E tudo passou. Agora me surpreendo com a retrospectiva “notícia” da sua morte, ocorrida a 13 de fevereiro de 2007, em pleno carnaval.

Não vou a enterros.
Que o morto
Se guarde no que é seu.
Se incorro em erro,
Perdoem-me: irei ao meu.

Bom saber que seu “Sangue Ruim” saiu logo no ano seguinte (2005) e “Bacantes” em 2006. Um poeta múltiplo e indisfarçavelmente ativo em seu niilismo. E um Nordeste imenso onde tudo parece estar contra. E está.

FANTOCHES

Os fantoches da rua Sete
Seguem cegos na procissão.
A puta diurna da Palma
Traz uma venérea na alma
E uma cova diária na mão.

Da Ponte Velha a secular ferrugem
Reticente ao trajeto branco da nuvem
Come o estrado, o arco, o vergão.
Os poetas esquecidos no beco
Transam sangue a trago seco.

Dormem como trapos sobre o chão.
Recife, musa, maldição
Cadela suja, traiçoeira
Seta certeira
Encantada cidade do cão.

Cidade porvir, poeta de prefigurações. Um amálgama de noites sem fim.

Ney Ferraz Paiva

sábado, 19 de dezembro de 2009

Ó ASPÉRRIMO DEZEMBRO!

(duas ou três coisas que posso falar sobre a Bolsa Maximiano só espero que alguém tenha coragem de escutar)


Escrivaninha de Machado de Assis


Não pretendo cumprir com este texto um parecer, muito menos a função ou repressora ou tirana daquele que afirma que leu e não gostou. Porque li com interesse e atenção (eu me reservo à surpresa). Faço questão de deixar isso claro. E enquanto lia as obras a mim entregues para avaliação neste certame de 2009 da Bolsa de Publicações Dr. Maximiano da Mata Teixeira, categoria "Obras de Ficção", passava pela minha cabeça e pelos meus ouvidos Adília Lopes, assim: “Não gosto tanto/ de livros/ como Mallarmé/ parece que gostava/ eu não sou um livro/ e quando me dizem/ gosto muito dos seus livros/ gostava de poder dizer/ como o poeta Cesariny/ olha/ eu gostava/ é que tu gostasses de mim...” ou: “Um desgosto de amor/ atirou-me para um/ curso de dactilografia/ consolo-me/ a escrever automaticamente/ o pior são os tempos livres” e ainda: “A vida/ é livro/ e o livro/ não é livre/ Choro/ chove/ mas isto é Verlaine/ Ou:/ um dia/ tão bonito/ e eu/ não fornico”. Eram essas guinadas que eu esperava encontrar, ler, ouvir em alguma página: a liberdade de criar o que se quer, um livro a seu jeito, quase outra coisa, esquisito, misturado ao disfarce da própria coisa que se inventa indiferente a quem cria, ao lugar, ao tempo – sua esquivança e deriva. Um livro que não tivesse a tarefa de dizer as coisas. Defender uma verdade. Comprar-vender. Um livro que desaparecesse nas suas fendas, nos trajetos tortuosos da imaginação. Ir à praia, ir à marte, não ir, rir disso tudo. Que escrever, é bom que se diga, não é o mesmo que ter pronta uma escrita. Ainda que todos almejem ser escritor. Ainda que haja quem escreva para vencer um certame e se acredite apesar de tudo em vitórias literárias. Ainda que se publique aos montes por aí o menor, o ruim, o impublicável. Mas não é disso que se trata quando se trata de escrever. Aí nem o limite da escrita pode delimitar o que se tem a fazer. Passa-se para o outro lado, o aberto. Para “fazer ouvir a linguagem”, como diria Michel Foucault. Mas preciso dizer que quase nada desse esgarçamento, da distensão das vozes poéticas e narrativas reverberaram nos textos que me chegaram às mãos – antes o estético se me escapou. Claro, houve o fazer da forma, da rima, de uma habilidade ou outra. Por vezes o personagem era tão sedentário que a narração mais que paralisada dava-se paralítica. Máquinas de escrever e ouvir a escrita que se emperram. E eu me voltava a meus autores em fúria, de tanto que os quero ler pelas noites e dias, sempre. A voz nômade de Vergílio Ferreira. “Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordado-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olha para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o rectângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome.” A essa voz que se propaga na estepe e no deserto dei ouvidos aos tons estáveis, idênticos e constantes, sem surpresa e espanto da fala que menos que documenta desloca o leitor de uma mesma direção, do ambiente fechado na mediocridade dos dias que correm. E do raro e difícil ofício que é a escrita sei, penso que sei, quero acreditar que seja possível que eu saiba, por insistir, perseverar, obstinar-me em ser leitor e em escrever, que a questão primeira da escrita não é nem será o publicar, o arquivar, o tornar memória, mas o ir inventando com a escrita um território, abrir em seus nervos uma marca. E a esse lugar não se pode premiar antes que ele exista, nem eu, nem o Estado, nem os amigos, nem a família, nem o jornal, nem a academia. Ter na escrita o seu lugar, que ele exista e que por ele se transite, se jogue e se aventure. Palavra por palavra, os lugares a mim apresentados neste certame ficaram inconclusos, incertos, indefinidos. No sentido de que infelizmente não foram inventados. Lugar da beleza ou lugar bárbaro, transitável ou de difícil acesso. Tecido em grosso tear. Continuaremos a procurá-lo. Todos. Eu. Vocês, outros. Sabemos: alguém está a escrevê-lo, a inventá-lo. Onde? Quando? Refazem-se os mapas da arte com energia, mas em silêncio.


Ney Ferraz Paiva

sábado, 12 de dezembro de 2009



imagens pesam mais do que o mar
1.
ela não ri
move-se rapidamente esquiva
de um lado a outro como se fizesse fotos
anda a casa pés trocados olhar confuso
faz uma foto dele (pra o deter de quem?)
fisicamente opostos um ao outro
o mundo vira de ponta-cabeça
a noite cai silenciosa sobre eles


2.
ele a olha com uma expressão vazia
voz baixa falando devagar
diz que tem um problema enorme
que precisa urgentemente viajar
(o mar, o fogo, a raposa...)
“ou quem sabe de um bom xampu anticaspa”
ele sempre diz isso pra fazer as pessoas rirem
ela não ri


3.
ele pergunta “por que você não sorri?”
desde pequena não sabe rir dos pequenos dramas
não sabe rir se alguém está sofrendo
perto dela – por causa dela
pra ela o inferno é isso
ele pouco sabe a respeito
nunca prestou muita atenção
ela faz mais uma foto dele
espera detê-lo a seu próprio enigma


ney ferraz paiva juazeiro 19.11.2009
imagem circlegal
O poeta Lew Welch deixou um bilhete suicida


Em uma referência a Bartleby, o famoso escrivão do conto de Herman Melville (aquele que nega os trabalhos devidos, respondendo sempre com: “Prefiro não fazer”), Jack Kerouac dizia que a beat generation era mais um conjunto de bartlebies solitários olhando para a civilização que simplesmente um bando de nômades, boêmios e hedonistas outsiders aspirantes a artistas vivendo de bar em bar.
Da geração que ficou famosa pelos livros de Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, Lawrence Ferllinghetti e Neal Cassady, Lew Welch foi o menos notável. Um poeta desconhecido que teve uma promissora carreira literária interrompida por uma baixa autoestima.
Nascido no dia 16 de agosto de 1926, em Phoenix, Arizona, Welch se encontrou com Gary Snyder e Phillip Whalen no Reed College, em Oregon, onde, segundo Aram Saroyan, no livro Genesis angels: the saga of Lew Welch and the beat generation, resolveu tornar-se escritor após ler a novela “Melanctha”, a mais longa das três histórias de Três vidas, de Gertrude Stein. Ainda no Reed College, o poeta William Carlos Williams teria lido seus poemas e o incentivado a publicar uma tese sobre Stein.
Depois do Reed College, Welch se mudou para Nova York, onde trabalhou com publicidade. Com a aparição de seus problemas emocionais, resolveu se mudar para a Flórida, onde começou uma terapia. Pouco tempo depois, ingressaria na Universidade de Chicago, para estudar filosofia, voltando a trabalhar com publicidade. Foi nesse período que aconteceu, em outubro de 1955, a lendária leitura de poesia na Six Gallery, na Fillmore Street, em São Francisco, marco do movimento beat.
Em uma tentativa de voltar à cena, Welch retornou para a Califórnia, passando a viver com Snyder e Lawrence Ferlinghetti. Dizem que Kerouac – que fazia referência aos amigos em seus livros retratando-os em personagens (William Burroughs é, por exemplo, o Old Bull Lee de On the road e o Frank Carmody de Os subterrâneos; Lawrence Ferlinghetti aparece como Lorenzo Monsanto em Big Sur; Allen Ginsberg é Irwin Garden, no mesmo livro, Carlo Marx em On the road, e Adam Moorad, em Os subterrâneos) – se inspirou em Welch para elaborar o personagem Dave Wain, de Big Sur.
Em maio de 1971, Welch cometeu suicídio durante uma estada na casa de Gary Snyder, em Nevada, Califórnia. Seu corpo nunca foi encontrado. Apenas um bilhete, descoberto por Snyder: “Não fiz nada direito e agora traio amigos. Não posso fazer nada – nunca pude. Tive grandes visões, mas nunca consegui transformá-las em algo digno. Don Allen deve ser meu executor literário. Tenho dois mil dólares em um banco em Nevada – que deverão ser usados para pagar minhas dívidas. Não devo nada a Allen G. ou para minha mãe. Vou para o sudoeste. Adeus. Lew Welch”.


Fonte: Jornal do Brasil, 12/10/2009

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A DISCRIMINAÇÃO COMO UMA DAS BELAS-ARTES (porque Lúcia Rocha não é hoje Presidente do Conselho Estadual de Cultura)

"Senhor piedade pra essa gente careta e covarde" (Cazuza)

Vamos ao ponto: de tudo que vi e ouvi (uma vez que sou suplente e no Conselho Estadual de Cultura só falam os titulares) só pude compreender que houve discriminação contra o fato da Vice-Presidente Lúcia Rocha não poder assumir a Presidência do Conselho. Discriminação contra a mulher, a negra, a artista. Sobretudo por tratar-se de uma pessoa atuante, preparada e que não se omite na hora de cobrar, protestar e trabalhar a favor dos artistas e do interesse público, uma vez que deve ser essa a regra (se tiver que ter uma) de atuação de todo artista. Sabe-se lá o que é isso num contexto em que tudo o que os atuais gestores (!?) querem é tampar o sol com a peneira? É uma babaquice incontornável que se perca, digo, que se deixe desvanecer o momento de se reverter os desmandos (leia-se: roubos e crimes) praticados contra a cultura e a sociedade pelo Senhor Júlio Cesar Machado e seus asseclas – o tal Júlio das Machadadas contra a cultura do Tocantins, encastelado na Torre sobre a qual ainda pairam antigas nuvens negras. Ser artista hoje no Tocantins é ser um verdadeiro otário. O cara, engomadinho, colarinho branco (sacam, né?), pretensioso, põe a mão, ou melhor, mete a mão nos suados recursos (leia-se: dinheiro, mufunfa, grana), frauda e mente. Ou parodiando os fuzileiros navais de volta do Vietnam: “Enche a pança e enraba a cultura”! E tudo bem. E ainda demite a funcionária que o denunciou à justiça (até hoje não readmitida). Mas que justiça? Se por uma outra faceta dessa mesma história vem outro e te pretere porque não vai com a tua cara ou por causa da tua cor de pele ou pelo teu sexo. O que será que esses Senhores tanto temem? Uma mulher? Não deve ser, não deve ser. Por certo esses Senhores nem mesmo são racistas. Não devem ser, não devem ser. Estes Senhores apenas pensam que o Conselho de Cultura é uma adjacência de seus cargos, dos seus propósitos ou um anexo da Fundação Cultural. Ou seja, um mero e inocente erro de perspectiva. Não sabem estes Senhores tratar-se o Conselho de um colegiado de ideias e pensamento. De debates. Será isso que temem? Onde está escrito (e por que razão estaria?) que representante da sociedade civil não pode atuar como presidente do Conselho? Que tem que ser servidor público. Tais medidas, entendimentos e práticas obliteram o desenvolvimento humano e cultural do Estado. Apartam-nos das ressonâncias sempre benéficas e produtivas que a liberdade e a independência significam para o pensamento não pensado, para o novo e o diverso que toda sociedade civilizada espera dos seus artistas. Por que aqui não pode ser assim? Somos capazes de celebrar e nos identificar com o fato de um negro assumir a presidência de um país onde ele é absoluta minoria e, numa escala menor, mas como parte das mesmas causas e efeitos, não temos sensibilidade para ver força, potência quando o mesmo pode se dar bem junto a nós. Pior para todos, mas nem tanto para nós, artistas, que fazemos o que nos é dado fazer de um jeito ou de outro, mesmo sem fundo de cultura, lei de incentivo, getons, cachês, ou seja, fazemos contra tudo e contra todos o que fica e permanece. Pior para o Estado censor. Para os oportunistas. Os carreiristas. Os míopes por vocação. Os que nem vocação tem e aí se aferram por um pagamento particular, servil. Os que não sabem discernir entre o certo e o errado, desde que "certo" esteja para eles e para os seus. É disso que se trata? Então um outro refrão poderá ser entoado em meio ao caos dos desmandos, conchavos, manobras, ao vale tudo do poder e sua lógica excludente: “Cultura ruim – sociedade pior”. Aproveitem! Aproveitem! O tempo dos pequis passa...

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

wittgenstein: um perfil


Eu disse a ele [Ludwig Wittgenstein]… que imaginá-lo como professor de escola primária, com sua mente treinada para a filosofia, era para mim como imaginar uma pessoa usando um instrumento de precisão para abrir uma cratera. Ao que Ludwig respondeu com uma comparação que me fez calar: “E você me faz pensar numa pessoa que olha através de uma janela fechada e não consegue explicar para si mesma os estranhos movimentos de um transeunte. Não sabe a tempestade que está caindo lá fora e nem que essa pessoa está tendo de fazer um enorme esforço para manter-se de pé”.
Foi então que entendi o seu estado de espírito.

Hermine Wittgenstein

sábado, 31 de outubro de 2009

a poesia de ana cristina cesar se encontra sempre no meio, entre as coisas boas que se faz na literatura pelo brasil – é um rizoma. fez da escrita mais do que a escrita, e aí se difere substancialmente do grupo de poetas da chamada “geração mimeógrafo” em que despontou, quase todos escrevendo para se tornar escritor. ana só conseguiu tornar sua a poesia, cheia de brevidade e intensa amplidão.

Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979), Luvas de pelica (1980), ao contrário do que os títulos possam sugerir, nada tinham de história privada; a poesia aí se lançava, desapegava-se das coisas feitas, repressivas, disciplinares – misturava-se à diferença.

por tudo isso, não se trata mais de colocar a notoriedade de ana na balança. 26 anos depois de sua morte, ela segue múltipla, no silêncio e na invisibilidade, na perpendicularidade, nas transformações possíveis, nas vigílias que prosseguem os que prosseguem, atentos passageiros da noite.

signé ana c.

toquei minha mão justo na mão de ana
portas nos separam ou nos mudam de lugar?
agora me pergunto se a presença do corpo é mesmo indispensável
não saber estilhaça meus sentidos
giro em torno do vazio feito um cão atrás da cauda
(quando criança costumava encher o rosto de creme
sempre foi de longe a mais vaidosa
musa transviva do amanhecer
depois namoros na praia & na montanha
a dor de pegar o avião & ir embora
a mãe amélia disfarçada em luiza
luz é símbolo da beleza absoluta)
vivo sem saber como vai ser o dia
uma escritora está sempre atrelada a seu personagem
ensaio palavras em francês pra ela ouvir
recados luminosos espalhados pelos quatro cantos do mundo

ney ferraz paiva, não era suicídio sobre a relva
fundação de cultura cidade do recife, 2000

terça-feira, 27 de outubro de 2009



ney ferraz paiva





tu me devolves um rosto


o túnel cego de um espelho


teu afogado corpo – grande peixe


maquiado pelas águas


secreta floração de areia e pedra


meu luto te levanta


como uma árvore um monte


o arco de beleza rejuvenesce


minha face – murada pela morte
 

juliete oliveira

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

EU SEMPRE FUI LOUISE BOURGEOIS



Antony fica na estrada entre Paris e Orly. Quando De Gaulle era presidente, foi construída uma enorme rodovia entre elas. Sempre houve acres de morangos nesses campos, acres de alface crespa para Les Halles. De repente se transformou numa região de tráfego intenso. A terra ficou caríssima, então o rio ficou aterrado e recoberto pela estrada.



Passei quinze anos sem ver a casa onde moramos. Quando voltei, com meus filhos, procuramos o rio, mas tinha desaparecido. Restou a lavanderia pública. E os choupos plantados por meu pai continuavam ali como testemunhas.


...


Minha relação com a guerra aparece no trabalho por meio da utilização de preto, o preto da guerra, que era o preto do luto. Para Franz Kline, com quem eu discutia e trabalhava, era a cor do final dos anos 40 e início dos 50. Ele não se interessava pela guerra, mas pelo preto. O que a guerra representou para mim foi que subitamente – e isso é documentado por dezenas de desenhos – vi tudo preto, caixões pretos, pernas pretas, pessoas pretas. Era o luto profundo pela guerra. Simplesmente isso.


...


Duchamp, Ozenfant , já nos conhecíamos, mas nos reencontramos quando fomos investigados por McCarthy em 1951. Tivemos destinos diversos. Duchamp tinha amigos poderosos e conseguiu se safar. Ozenfant era uma pessoa muito retraída, original e independente. Quando era atacado, revidava como uma criança. Por isso foi expulso do país a pontapés. Mas eu me defendi. Fui interrogada diversas vezes depois que me inscrevi para obter a cidadania. Minha defesa foi que não tive ligação com o que os homens com quem me envolvi faziam politicamente, nem conhecimento disso. E, felizmente, nessa época as mulheres tinham adquirido independência nesse sentido: eu não era considerada meramente a esposa ou a amiga de alguém. Eu era Louise Bourgeois. Eu sempre fui.



Louise Bourgeois, Destruição do pai Reconstrução do pai, Cosac Naify, 2000, Tradução Álvaro Machado e Luiz Roberto Mendes Gonçalves