o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

A PALAVRA, OCUPAÇÃO DE RIVAIS [2]




Era ele que morava no andar de baixo na Fitzroy Road e pode ter sido a última pessoa a vê-la com vida; conta ele que na véspera de seu suicídio Sylvia Plath apareceu em sua porta e pediu-lhe alguns selos emprestados. No texto de Alvarez, Thomas é a chave da teoria segundo a qual Sylvia Plath não pretendia morrer, mas de retornar de sua morte pelo gás da mesma forma como despertara de sua morte por soníferos. Segundo Alvarez, ela contava com “o pintor idoso que morava no andar de baixo” (ele tinha 55 anos) para salvá-la. Uma nova babá havia combinado chegar em casa às nove e, se tudo tivesse corrido de acordo com os planos, Thomas a teria ouvido tocar a campainha; ela teria descoberto o corpo ainda quente de Sylvia Plath e “não há dúvida de que ela teria sido salva”. Mas Thomas não escutou a campainha – um pouco de gás escapou para o seu apartamento e o deixou meio tonto – e quando a moça voltou com ajuda, depois de uma espera interminável numa cabine telefônica, já era tarde demais. (Em Amarga fama, a idéia de que Sylvia Plath teria sido salva se a moça – que, conforme pesquisas posteriores revelaram, era uma acompanhante para ela própria, enviada por seu médico, o dr. John Horder – tivesse entrado na casa às nove é questionada. Escreve Anne Stevenson: “O dr. Horden é da opinião de que, mesmo que tivesse sido resgatada enquanto seu corpo ainda estava vivo, é provável que seu cérebro sofresse danos irreversíveis”.)
O próprio Thomas jamais confirmou nem contestou a versão de Alvarez; mudou-se de Londres e nunca mais disse nada, nem nada se ouviu falar dele, até 1986, quando reemergiu na lenda de Sylvia Plath. Uma carta de Elizabeth Sigmund publicada no Observer, reclamando da caracterização de Sylvia Plath numa de suas matérias, captou seu olho aprovador e o estimulou a escrever para ela por intermédio do jornal. Elizabeth passou Thomas, então com 79 anos, para Clarissa Roche, que o convenceu a registrar suas memórias por escrito. A pedido dela, ele produziu um manuscrito datilografado de 27 páginas – em 1989, mandou tirar fotocópias e encaderná-lo com uma tiragem de 200 exemplares – narrando os dois meses de suas relações com Sylvia Plath no número 23 da Fitzroy Road e contando tudo que viu e ouviu na casa nos meses que se seguiram a sua morte. O texto, intitulado “Sylvia Plath: last encounters” (“Sylvia Plath: últimos encontros”), é um documento notável. Como o livro de memórias de Dido Merwin, transmite um auto-retrato imediato e claro, e, a exemplo de Dido, Thomas evoca sem nenhum afeto a memória de Sylvia Plath. À diferença de Dido, porém, Thomas não deprecia Sylvia Plath a fim de resgatar Hughes: fala mal dele também. Na verdade, nenhum dos dois lhe interessa muito, e ele deixa claro que só se interessa por si mesmo. O próprio fato de ter conhecido Sylvia Plath foi apenas mais uma das manifestações do azar que o perseguiu ao longo de toda a vida. “Depois que minha mulher me deixou, em setembro de 1962, procurei desesperadamente algum lugar onde meus filhos Giles e Joshua pudessem morar comigo”, escreve Thomas na primeira página de “Últimos enconstros”. Um dia, no final de outubro ou no começo de novembro – pouco antes de Sylvia Plath escrever sua acarta entusiasmada à mãe sobre o apartamento que encontrara na Fitzroy Road –, Thomas viu o mesmo apartamento e ficou igualmente apaixonado. O problema era o valor do aluguel: não sabia ao certo se conseguiria ganhar dinheiro necessário para pagar o adiantamento de três meses e pediu ao funcionário da imobiliária que reservasse o apartamento para ele durante o fim de semana, o que lhe foi prometido. No entanto, quando ligou na segunda-feira para dizer que tinha uma solução, o apartamento já havia sido alugado. O funcionário “contou que um jovem casal com dois filhos pequenos, o sr. e a sr. Hughes, tinham visto o apartamento no domingo e, achando que a necessidade deles era maior do que a minha, ele lhes entregou o apartamento de dois andares e reservou o apartamento do térreo para mim”. E continua Thomas:
“Fiquei muito aborrecido, porque o apartamento térreo era pequeno demais. Também tinha certeza de ter sido enganado de alguma forma. Embora estivessem separados, Ted Hughes se prestara a ir com ela ao escritório da imobiliária, que dificilmente aceitaria alugar o apartamento a uma mulher sozinha com dois filhos. Anos mais tarde, fiquei sabendo que a sra. Hughes pagara um ano de aluguel adiantado, assinando um contrato de cinco anos. Não admira que os funcionários achassem que a sua necessidade era maior do que a minha.”
Embora o apartamento térreo não lhe conviesse, Thomas o alugou. “Pelo menos era alguma coisa”, resmunga ele. Tirei meus pertences do guarda-móveis e atulhei tudo no apartamento (...). E vi que precisava construir beliches para os meninos.” A razão para essa concessão aparentemente incompreensível – ele sem dúvida poderia ter procurado um apartamento maior em outro lugar – era a placa azul de cerâmica com o nome de Yeats. Em sua juventude em Liverpool, Thomas produzira uma montagem de uma peça de Yeats, At the Hawk’s Well, em que trabalhara como diretor, ator e figurinista. Thomas acreditava no sobrenatural e sentia que “precisava” morar na casa da Fitzroy Road que fora de Yetas. Mas nem por isso sentia-se obrigado a ser prestativo, ou mesmo especialmente delicado, com a jovem que se mudara para o andar de cima, e enumera em seu texto, com uma espécie de satisfação, as várias ocasiões em que pôde ser imprestável ou indelicado com ela. Quando Sylvia Plath, no dia de sua mudança, trancou-se por acidente, junto com os filhos, do lado de fora do apartamento e pediu a ajuda de Thomas, “tive de frustrar suas esperanças de encontrar uma cópia da chave, pois só tinha as chaves de meu próprio apartamento. A última coisa que eu desejava era me envolver com ela, por isso recomendei que ligasse para a polícia e fui cuidar da minha vida”. Noutra ocasião, durante a onda de frio do inverno, quando a neve estava alta e Sylvia Plath não conseguia dar a partida em seu carro, “ela queria que eu saísse de casa e girasse uma dessas manivelas pesadas que se enfia na frente do carro para dar o arranque. Tive de recusar, porque se você não sabe o jeito certo pode quebrar um dedo, ou até mesmo o pulso”. Thomas conta que Sylvia Plath jogava seu lixo nas latas dele, em vez de comprar latas de lixo próprias, e costumava bloquear o corredor com seu carrinho de bebê. “Acho que seria correto dizer que eu não deixava de sentir uma certa antipatia por ela”, escreve ele. E acrescenta:
“Ela tendia a ser uma pessoa egocêntrica, que não se envolvia com os problemas das outras pessoas. Nunca pensou em mim, nos meus filhos ou nas dificuldades que podíamos estar vivendo. E nem manifestou interesse pelos meus quadros ou pelo que eu fazia. O mundo girava em torno dela. Já pude observar esse tipo de absorção em si mesma em outras pessoas.”


Janet Malcom, A Mulher Calada, Companhia das Letras, 2005.

terça-feira, 5 de maio de 2009

TIRO NO CORAÇÃO














o que se tornou o amor, para que um homem e uma mulher
saiam dele tão desmunidos, lamentáveis e enfermos,
e ajam e reajam tão mal, tanto no começo quanto no fim, numa
sociedade corrompida?
Gilles Deleuze, A imagem-tempo


Tiro no Coração, de Mikal Gilmore, não é nem de longe uma viagem em busca do tempo perdido – pelo estonteante fato de que o tempo para ele e sua família, o tempo que os uniu também os destroçou. E o que resulta de lembrança de tudo isso esbarra na pele de Mikal e seu irmão Frank Jr. como um insulto. Para eles – os sobreviventes, relembrar não os salva de nada. A dor é o único legado.

O livro conta a história da família como de uma terrível decepção. A família Gilmore (Frank, o pai, Bessie, a mãe, e os filhos Krank Jr., Gary, Gaylen e Mikal) no transcurso de 50 anos, mas que pode ser o de qualquer família hoje, uma vez que o enredo mistura os elementos banais da vida moderna e seus grandes buracos negros em qualquer tempo.

Mikal descreve a superfície sempre maquiada de certa família norte-americana, de origem nômade e mórmon, e de seus ritos sociais e seus subterrâneos; é a eles que Mikal desce, aos lugares tenebrosos das faces desmascaradas, e daí se põe a falar, ou melhor, tenta falar; ainda que conheça bem a história, esteve preso dentro dela, o que se escuta de verdade são gritos e balbucios; ele não tem como responder ao grande enigma proposto: o que torna um homem tão amargo a ponto de não servir para ser pai?

Frank Gilmore não se dava a mínima. Tinha as suas próprias prioridades. Seus segredos e temores sombrios. E tinha o alcoolismo Não podia conciliar seu mundo de trevas com uma família. Um mundo do qual ele não teve como escapar e acabou trazendo a todos para ele. Como imaginar um ambiente familiar onde depoimento como o que segue seja possível: “Eu não gostaria de ser criança de novo. Por nada neste mundo. Uma vez basta.” E ter que ficar aí, quando ficar é a última coisa a fazer. É então que se descobre que entre as múltiplas formas eficientes de se excluir o outro da sua vida, é que ambos fiquem juntos. “E para onde eu iria? Quem mais ia me querer? Fiquei porque não havia outra coisa a fazer.” Para a mulher, quais os vetores de saída?

Bessie Gilmore tinha bem a noção de seu emparedamento. Além de Frank, sua outra parte no mundo era a casa dos pais – uma casa da qual ela sempre tentou escapar desesperadamente. Do fanatismo rigoroso de um ambiente mórmon rural e de suas esperanças frustradas. Por isso mesmo tinha que reagir ao Frank, conviver com a calmaria e os sobressaltos do território que ele dominava e aí se por à espreita, defender a si e a seus filhos; um combate que resultava em perda diária, ano após ano, infinitamente maior do que ela podia suportar. Enquanto Frank viveu, ele fez o serviço devastador de tornar a todos bichos. Podia-se ter uma casa, um carro, comida e roupas. Podia-se até mesmo ir à escola e à igreja, mas era, ainda assim, uma vida de bichos. Por dentro da pele e no coração.

E foi bem aí que todos foram alvejados, no coração. Um tiro certeiro e aniquilador. Que fez de Gary Gilmore um nome para sempre ligado ao crime na América. Dele Mikal diz: “Sou irmão de um homem que matou homens inocentes”. A astúcia criminosa de Gary tornou pública sua tentativa bizarra de não escapar do que se é. Preso por matar dois jovens mórmons em junho de 1976, Gary foi condenado à morte. E aí, no espaço mínimo de uma cela, ele não se deixou acuar. Fora preparado a vida inteira para o papel.

Mikal foca os aspectos privados que poderiam ser as origens do pesadelo. Conta sua história no lugar de outra, não a conta para aplacar os seus nem os nossos males, apenas responde por ela e aí se mostra e desaparece. Ilustra seu almejado vazio com as fotos de todos os fantasmas, das casas mal assombradas e dos mortos vivos. Num nível, a palavra fatal, noutro, a imagem inumana. Tudo resumido ficam expostas as maneiras de morrer a cada dia, ainda válidas para estes tempos de pesadelos.


Ney Ferraz Paiva

sexta-feira, 1 de maio de 2009

REVISTA POLICHINELLO 10 ESCRITA RIZOMÁTICA



Participam desta edição:

[ Daniel Lins ] - Fortaleza [ Victor Sosa ] - México [ Juliano Pessanha ] - São Paulo [ Luís Serguilha ] - Lisboa [ Giselda Leirner ] - São Paulo [ Virna Teixeira ] - São Paulo [ Ney Ferraz Paiva ] Tocantins [ Efraín Rodríguez Santana ] - Cuba [ Antônio Moura ] - Belém [ Lúcia Castello Branco ] Belo Horizonte [ Alberto Pucheu ] - Rio de Janeiro [ Vicente Franz Cecim ] - Belém[ Maria Inês de Almeida ] - Belo Horizonte [ Ieda Magri ] - Rio de Janeiro [ Márcio-André ] - Rio de Janeiro [ Flávio Boaventura ] - Belo Horizonte [ Denny Yang ] - China [ Carlos Emilio Correia Lima ] - Fortaleza [ Beatriz Bajo ] - Londrina [ Goiamérico Felício ] - Goiânia [ Victor Paes ] - Rio de Janeiro [ Nilson Oliveira] - Belém

PROGRAMAÇÃO DE LANÇAMENTOS:

BRASÍLIA - 23 de Abril as 19h
CONVERSAÇÕES NILSON OLIVEIRA & JORGE AMÂNCIO
Local: T-Bone: SCLN 312 Bl B Lj 27 Brasília DF
.
GOIÂNIA - 24 de Abril as 14h30
EXIBIÇÃO DO FILME MAURICE BLANCHOT,
PALESTRA NILSON OLIVEIRA
Local: CINE UFG (Faculdade de Letras/Campus II)
.
BELO HORIZONTE - 29 de Abril as 19:30
CONVERSAÇÕES MAURICE BLANCHOT E A LITERATURA
COM LÚCIA CASTELLO BRANCO FLÁVIO BOAVENTURA
ANDRÉ QUEIROZ
Local: Fundação Gregório Baremblitt Instituto Felix Guattari
Rua Herval, 267 Bairro Serra Belo Horizonte.
BELÉM - 08 de Maio as 17h.
Local: Casa das 11 Janelas
LANÇAMENTO DAS REVISTAS POLICHINELLO & NÃO-LUGAR
RECITAL ANTONIO MOURA PAULO VIEIRA LUIZAN PINHEIRO
RENATO TORRES
Palestra do Filósofo Daniel Lins: Por uma Escrita Rizomática


quinta-feira, 23 de abril de 2009


Dona Clarice

Por Benedito Nunes


Conheci Clarice Lispector, antes de conhecer a escritora e a pessoa, por um outro nome: “Dona Clarice”, que é como a chamava, sempre que a ela se referia, o Professor Francisco Paulo Mendes, seu amigo de primeira viagem. Encontraram-se em Belém, no início da década de 40, acho que em 44, ela, com o marido Amaury Gurgel Valente, então a serviço do Itamarati, hóspedes do Central Hotel. Viam-se frequentemente no Café Central, um verdadeiro Café, que dava para a rua, e onde, muito mais tarde, juntei-me ao grupo que ali se reunia, liderado pelo referido professor. Em 44 ainda tinha 14 anos e Clarice Lispector, que acabara de publicar Perto do coração selvagem, começara a escrever O lustre, a sair em 1948. Foi somente nesse ano que comecei a ouvir o “Dona Clarice”, recordação da romancista, bela mulher, nos fins de tarde ou à noite resplandecendo na terrasse do Café Central, ao lado dos amigos de Francisco Paulo Mendes, que depois foram meus, Ruy Barata e Cléo Bernardo, ambos já falecidos.
O professor revelou-lhe Sartre, me diria, mais tarde, “Dona Clarice”. E a ele dirigiria o súplice recado de Um sopro de vida: “Cadê o desaparecido Francisco Paulo Mendes? Morreu? Me abandonou, achou que eu era muito importante.” Antes da Clarice real e da Clarice ficcionista, conheci a mítica, dona estelar de memorável brilho no passado do grupo. Comecei a ler a ficcionista pelos contos de Laços de família. Mas foi em 64, com A paixão segundo G. H., que os laços da sedução literária e filosófica à ela me amarraram. Dois anos depois escreveria sobre essa obra uma série de cinco artigos, publicados no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, e que incluiria, em 70, em O dorso do tigre, sob o título geral de O mundo imaginário de Clarice Lispector, abreviado para O mundo de Clarice Lispector, na oletânea de 66 que o precedeu, editada em Manaus, por iniciativa de Athur Cézar Ferreira Reis. O fervor da sedução levou-me a aceitar convite de Nelly Novaes Coelho para participar da coleção Escritores de hoje, de sua editora Quíron, com volume dedicado à escritora. Então, para escrever Leitura de Clarice Lispector (1973), voltei de Laços de família a Perto do coração selvagem, percorri O lustre, A cidade sitiada, A maçã no escuro, A legião estrangeira e o último, até aquele momento, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. (Mais tarde reveria e passaria a limpo esse livro, que se tornou O drama da linguagem (1995) acrescentando-lhe capítulos sobre Água viva, A hora da estrela e Um sopro de vida).
“Ele vai me considerar uma existencialista?”, teria ela, receosa e desgostosa, perguntado sobre as minhas intenções à Nelly, quando esta lhe anunciou o Leitura. A preocupação da escritora era justificável. Nos cinco artigos da série havia exagerado a dose da náusea sartriana, corrigida na publicação seguinte à custa da acentuação sobre a tendência mística em G. H. Tinha conhecido antes a Clarice real numa visita à casa dela, no Rio pelas mãos de Aloisio Magalhães, quase uma visita de cerimônia. Depois de saída a Leitura, encontrei-a novamente, desta vez no casamento de sua amiga Eliane Zagury. Não me lembro de termos conversado nessa ocasião. A primeira conversa deu-se em Brasília, até onde eu fora, nos fins do período Geisel, para participar do Congresso de Crítica Literária, ali realizado em 1974. Era tarde da noite, já tinha me deitado, quando ela, que tinha vindo a Brasília por outro motivo, hospedada no mesmo hotel, telefonou para o meu quarto. Estava angustiada, com problemas de consciência. Deveria entrevistar o Ministro Ney Braga? Repugnava-lhe aproximar-se dessa gente do governo militar. Mas como poderia agir diferente, se era jornalista e precisava ganhar a vida? Tinha sido recentemente demitida do Jornal do Brasil e preparava o livro de entrevistas, De corpo inteiro.
Ainda não se completara um ano depois disso, quando ela escreveu para Francisco Paulo Mendes, àquela época ainda em atividade como professor de Língua Portuguesa, pedindo ao amigo que conseguisse da Universidade Federal do Pará a ventura de poder voltar a Belém. Pagaria a viagem e a estadia com uma conferência; dispunha-se, também a conversar com os estudantes do curso de Letras. Clóvis Malcher, o reitor de então, mandou-lhe passagem e hospedou-a. Ouvimo-la na leitura hesitante de seu conhecido e belo texto sobre o sentido vanguardeiro da sondagem do real pelo aprofundado uso da língua portuguesa, já lido em Austin. (Literatura de vanguarda no Brasil, 63) e em muitos outros centros universitários. Esteve no campus, enfrentou grandes e buliçosas platéias.
Veio aqui em casa para um jantarzinho, convidados os antigos amigos dela e meus. Confessou que estava se sentindo bem entre nós. O retorno a Belém teria sido o seu tempo reencontrado. Acho que a partir de então surgiu entre nós uma afetuosa relação, extensiva à minha mulher. Depois que regressou, telefonava frequentemente e, sem falta, no período natalino, uma ou outra vez angustiada com o que fazer e com o que pensar, porque não raro pendia de um “se”, de uma eventual e dilacerante interrogação.
Em 77 passava por São Paulo, voltando de Campinas (lecionava na UNICAMP durante o segundo semestre), quando interei-me de sua morte. Não haveria telefonema no Natal desse ano.


Dois ensaios e duas lembranças, Belém: SECULT-UNAMA, 2000.

terça-feira, 21 de abril de 2009

CORAÇÕES SELVAGENS


Por Ney Ferraz Paiva

"o mal, para mim, não foi uma entidade literária, ou uma sombra apenas entrevista no horizonte humano. Soube com pungente intensidade o que ele significa em nossas vidas, e muitas vezes toquei seu corpo com meus dedos queimados... já que a dura contingência humana me fez tão propício ao seu fascínio".
Lúcio Cardoso, Diário Completo

"(...) estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.”
Clarice, A Paixão Segundo G. H.


Você escreve carta não pelo prazer do grande texto, mas para mobilizar alguém, acreditava Ana Cristina César. Essa mobilização do outro bem que Clarice Lispector tentou nas cartas enviadas a Lúcio Cardoso – ela que quando escrevia carta utilizava, graças a seu olhar multiplicador de imagens, “um anzol compridíssimo, cuja isca bate no Rio de Janeiro para pescar resposta”. Resposta sempre avara. Lúcio assumira uma legenda de mistérios e incógnitas para manter-se distante ou talvez perto, muito perto com seu coração selvagem. Estranha proximidade contra a qual Clarice freqüentemente protestava: “Lúcio, como vai você? Responda...”.
São vinte as cartas conhecidas de Clarice endereçadas a Lúcio, num período que vai de 1941 a 1947, de diferentes cidades: Belo Horizonte, Belém, Nápoles, Rio de Janeiro. Quase todas cartas de amor, de um amor que ficou suspenso, mudo, em face às intermitentes palavras de Clarice, desafiadoras, latentes ou, efeito contrário, a bloquear qualquer possibilidade de relacionamento amoroso, quando todas as tentativas resultaram vãs.
Clarice e Lúcio se conheceram em 1940, no Rio de Janeiro, na sede da Agência Nacional, onde ela trabalhava como redatora. Tinha 19 anos, ele 28. E esse não é um fato externo que importa apenas à biografia e à lenda dos dois escritores. Para eles o tempo começa a contar-se por esse encontro. Por vezes a realidade dissolve-se em ambigüidades, ironias, nuanças devastadoras, de tal forma que a história pessoal passa a importar pelos oblíquos e indiretos jogos de motivações, ainda que incompletos, como marca do estilo e da vida do artista. Uma vida “não relatável” e “não vivível”, diria Clarice.
Os impedimentos de mobilizar/pescar o receptor – de quem apesar de tudo se pensa reconhecer a “silhueta” –, pressupondo-se (talvez falsamente) que ele deve estar algures no espaço físico, são recorrentes na escrita, e reúnem assim os signos que permitiram à Clarice e a Lúcio usar aquela espécie de crueldade que algumas vezes é interpretada como desejo de representar a verdade. Porém toda verdade é indiscernível.
A primeira carta, datada de Belo Horizonte, junho de 1941, narra uma paixão de perder-se e também de perder, retiradas as possibilidades de se afirmar a presença do outro: “quanto ao teu fantasma, procuro-o intimamente pela cidade”. O pulso do amor batia forte, mas Lúcio insistia em não pegá-lo na travessia – grande dissipador. Para ele, nada mais sórdido do que a proximidade. E o silêncio, a imediata recusa.
Existe sempre algo mais como parte do enredo da história e da vida de todos nós. Esse “mais” é o que está sempre vindo, porém Clarice nem sempre soube sentir-se livre em meio a essa disposição dialética. Em 1943 casa-se com Maury Gurgel Valente, diplomata, que não havia entrado na história, nem nas cartas de Clarice que, endereçadas a Lúcio, ainda assim se avolumavam. O interesse afetivo e intelectual pelo amigo não se desfez, surpreendentemente se manteve intenso. Ela então lhe mostra um manuscrito que considerava um esboço despretensioso; ele o lê e percebe um romance pronto; escolhem juntos o título joyceano “Perto do Coração Selvagem”.
O livro seria publicado no início de 1944, dez dias depois, Clarice se transfere com o marido para Belém, onde residira por seis meses. O mundo imerso na irrealidade e no desnorteamento de uma guerra imprevisível, enquanto os combates pessoais prosseguem. A necessária deriva. “Belém, 6 de fevereiro de 1944. Estou aqui meio perdida. Faço quase nada. Comecei procurar trabalhar e começo de novo a me torturar, até que resolvo a não fazer programas; então a liberdade resulta em nada e eu faço de novo programas, e me volto também contra eles. Tenho lido o que me cai nas mãos. Caiu-me plenamente nas mãos “Madame Bovary”, que reli. Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que tive e as que não tive. – Eu nunca tive propriamente o que se chama “ambiente”, mas sempre tive alguns amigos. Aqui só tem “mutuca”, (isso é besouro, mas por que não chamar tudo mutuca logo de uma vez?)".
A presença de Clarice em Belém é mais do que uma vaga referência emocional. Foi ali que toda a repercussão de sua estréia revolucionária vai encontrá-la, entre as paredes de um quarto no Central Hotel, na Presidente Vargas.
É o caso do artigo de Lúcio, no Diário Carioca: “Poucas vezes temos visto um tão exacerbado individualismo, uma tão lenta e obstinada sondagem do seu próprio eu, como faz a autora de ‘Perto do Coração Selvagem’. Deste mundo essencialmente feminino, cheio de imagens, de sons, de claridades azuis, brancas e esverdeadas, de folhas novas e manhã ainda cheirando a mato, Clarice Lispector consegue nos transmitir uma imagem poderosa e viva: não há dúvida de que estamos diante de uma singular personalidade, que sabe captar do mundo exterior e interior, e muitas vezes da sua fusão, uma vida perfeita. Nesta estranha narrativa, onde o romance se esfuma para converter muitas vezes numa rica cavalgada de sensações, a poesia brota como uma fonte nova e pura”.
O artigo valeu como se Lúcio tivesse respondido a sua primeira carta, mas ela sabia não se tratar de uma resposta, e sim da voz selvagem dos demônios, entre exílios e expulsões, silenciando o coração de Lúcio. “Imagine que eu estava junto à mesa, pronta para escrever para você e contar coisas, quando bateram à porta e trouxeram-me, vindo do Rio, o que você publicou no Diário Carioca... Fiquei assustada com o que você diz – que é possível que o meu livro seja o mais importante. Tenho vontade de rasgá-lo e ficar livre de novo (é horrível a gente estar completa). Sei que não é isso que você quis dizer. Quanto ao meu meio sucesso me perturbar, às vezes, ele me deixa saciada e cansada. Ás vezes, embora possa parecer falso, me desanima, não sei porquê. Parece que eu esperava um começo mais duro e, tenho a impressão, seria mais puro. Enfim, tudo isso é tolice minha”.
Mestre de bruxarias incrustadas na carne e na palavra, Lúcio lhe faria amar qualquer coisa viva, talvez mesmo uma barata, desde que em silêncio. O inexprimível nada a oscilar: “Alô Lúcio, isto é apenas para perguntar como você vai. O quê? Ah, estou bem, obrigada. O quê? Ah, sim, você talvez tenha razão. Que você tem me escrito muito? Sim, recebo sempre suas cartas; até ia lhe dizer que não me escrevesse tanto porque você pode se cansar. O quê? Que você faz isso por amizade? É claro, pois foi o que pensei. Que você me mandou seus livros? realmente, todos os dias recebo um. Se eu li seu poema ‘Miradouro’? sim, li e gostei tanto, tanto. O quê? desculpe, não estou mais ouvindo, a distância é grande, minha ‘aura’ está acabando e o esforço desta comunicação é tão sobrehumano que mal tenho força de assinar”.
Lúcio fazia um mínimo de gestos, reduzia tudo a quase nada, não fossem as palavras de Clarice a narrar uma paixão em que o caso amoroso não era do outro mais (+) o outro, mas do outro menos (-) o outro. A própria reversão das iniciais do nome de Clarice Lispector (CL) e de Lúcio Cardoso (LC) talvez insinuasse a impossibilidade de se tocar sequer as extremidades “queimadas” dos dedos, numa despedida. Não realizada na pessoa amada a alquimia única e vibrante que o tempo ousa ser. Ainda que, de um jeito ou de outro, nem a beleza, nem o amor escapem a ele. Paixão de perder e não de exceder. Excesso também é vazio, sabeis.
Clarice seguiu acompanhando o marido por diversos postos diplomáticos. De Nápoles, a 26 de março de 1945, estica ou condensa outra carta/isca: “Lúcio, me escreva e conte coisas. Ou então não escreva, que posso eu fazer? Um dia desses fui ver a lava do Vesúvio. Tenho um pedaço feio de lava para você. Depois de um ano ainda estava quente; é uma extensão enorme, negra, de vinte a trinta metros de altura; a gente anda sobre casas, igrejas, farmácias soterradas. A erupção foi em março de 1944 e quando chove sai fumaça ainda.”
Mesmo sem querer – avessa que era a dar pistas sobre seu texto –, Clarice faz aqui uma das mais belas descrições de sua obra. Passados mais de 30 anos de sua morte, ocorrida a 9 de dezembro de 1977, essa escritura permanece “quente” e “é uma extensão enorme” de um território engendrado por ausências e vazios, que não se captura, quando muito se rivaliza pelos subterrâneos inventivos da palavra, atravessados por poucos: um Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa, Osman Lins, Raduan Nassar. Quem mais? Tanto que, nas tardes de chuvas intensas como as que caem sobre Belém, “sai fumaça ainda” de suas palavras.

TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS






















Você não deve escrever sobre hospícios. Não. Todo mundo tem um hospícios perto. Ou é a sua bolsa que é um hospício. Ou sua casa. Ou ainda a carteira de dinheiro. Muita coisa pode ser um hospício. Não falo da desorganização, falo de hospícios mesmo. Rimbaud apareceu vestido de índio apache. Disse que eu estava virando general Custer. Havia muitas flores em toda a clínica. Era um lugar bonito. Por isso digo que hospícios são lugares tão bonitos que lembram os cemitérios. Aqueles cemitérios onde há enormes jardins.


Rodrigo de Souza Leão
imagem: Alberto Giacometti

segunda-feira, 20 de abril de 2009

REDESENHAR O RISCO

REDESENHAR O RISCO


A arte está em risco – A arte está por um risco. Rosana Ricalde arrisca-se aos revezamentos alternativos e radicais ao se associar aos “desenhadores de palavras” (Mallarmé, Apollinaire, Ezra Pound, Mário Sá-Carneiro, e. e. cummings) e menos, bem menos, aos “autores de imagens”, todos eles, sem exceção. Riscalde não se contenta com o olhar distante dos que contemplam nos museus e galerias; ela quer o olhar atônito dos que devoram, dos que transitam sem destino a cidade e as ruas, a querer saber, a indagar-se como um Josef K, sem dar a mínima para as descrições, paisagens, estações. Riscalde busca as conexões do olhar – olhares & proliferações que o texto, antes, anuncia nas suas reações, nos seus deslimites e atravessamentos. Suas palavras não saltam de um espelho e sim de um lago. Ali estamos submersos, afogados. O cotidiano que torna a ser, infinitamente, não nos devolve a nossa face. Somos agora a caligrafia de um mito que se simula. Redesenhados. Riscados. Corpos e linguagens de erros, distorções. Submersos aí, irreconhecíveis. Atraídos cada vez mais pela dissimilitude dos jogos e brincadeiras de uma infância que a todos escapa, mas que por vezes retorna, incrustada silenciosamente na carne. O pintor Francis Bacon afirmou serem os açougues suas catedrais. Ricalde não é menos dramática ao nos lançar de volta a nossas lembranças, que não deixam de se constituir numa lógica de sensações animais, maquínicas, do nosso nomadismo subjetivo e cultural.





Ney Ferraz Paiva

quarta-feira, 15 de abril de 2009

OBJETO DE AMOR






De tal ordem é tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com essa dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.

Adélia Prado, O pelicano, Record, 2007
Imagem: Francesca Woodman

segunda-feira, 13 de abril de 2009

As Amantes






Juntas, coladas, a noite toda
As amantes estremecem
durante o sono,
Próximas como duas páginas
do mesmo livro
Que se lêem no escuro.
Cada uma sabe a outra
De cor, minunciosamente,
Da cabeça aos pés.



Elizabeth Bishop
imagem: Francesca Woodman

sábado, 11 de abril de 2009

Um livro: encontros que não se pode evitar




Falemos apenas disto, eminentes sábios, mesmo que nos apoquente. Pior é o silêncio; as verdades sufocadas tornam-se peçonhentas.
Assim falou Zaratustra, Nietzsche


Como se organiza um livro? Um livro como uma obra de Beuys; um livro como uma história em quadrinhos; um livro como uma novela das oito... Um livro que nem fosse livro. Um livro nascido outra coisa. Brinquedo, jogo, coro de vozes. “Barthes/Blanchot – Um encontro possível” (7Letras) é um livro destes, um não-livro, uma vez que põe a falar dois grandes pensadores sem que isto se torne um enfadonho tratado de filosofia. Um livro-encontro que resulta de um Colóquio na Maison de France no centro do Rio de Janeiro. Muito da naturalidade desse conluio se deve a um dos organizadores do livro, o escritor e professor da UFF, André Queiroz; quem já leu um de seus textos de ficção ou mesmo um ensaio sabe que, da sua escrita, espreita-nos tantas falas essenciais como as que vão, neste livro, capítulo por capítulo, engendrando, tornando possível entre Barthes & Blanchot, não o olhar frontal dos tribunais, mas o toque sutil e erótico dos que seguem pelos desvãos, margens, desvios. O homem pensa, Deus ri, diz um ditado judeu. Em todo caso, nossos dois protagonistas pensaram, pelo menos como ficção, um mundo mais intenso e diferente que o de Deus e não menos cômico. Barthes colocou sob suspeita toda criação que não leva em conta a fragilidade do corpo, sua emoção e seu desespero; Blanchot deixou toda a arte em suspenso, ela é uma criação que ainda não acabou, fora dela nada acontece ao homem.

Pensar é uma ação que nos desloca de onde estamos; é uma dor; um exercício de crise; “pensar é estar doente dos olhos” (Alberto Caeiro), e por isso não temos nem podemos nos limitar a existir. Foi contra todas as tentativas de silêncio ou barulho ou rumores de verdades que excluem a vida, que nossos protagonistas se deteram, se recolheram, e se tornaram íntimos do mundo, e agora outros se põem a falar, aqui, em torno deles, a partir deles, numa polifonia que não ensurdece e não resulta em cartase, mas outra vez pensamento, escrita infinita, que nunca acaba porque dá conta das nossas dores, é autêntica ferida. Pode-se pensar a cidade a partir do espaço literário. Pode-se pensar a violência dos dias que correm a partir do discurso amoroso. Entre Barthes/Blanchot não há apenas teoria e literatura. Existe uma intimidade de escrita que desconstrói estruturas, refaz mapas, reorganiza territórios, e se constitui mais que uma visada fortuita – diálogo tenso, interseções incessantes e corrosivas pelo que têm de força oscilante e desestabilizadora.

Um livro se organiza para ser lido? Mas como se lê um livro? Um livro que não tem por tarefa dizer as coisas. Um livro que desaparece nas falas-intervenções de Leyla Perrone-Moisés, Peter Pál Perbart, Jorge Vasconcellos, Luís Alberto Brandão, Christophe Bident, entre outros. Um encontro-multidão a que não podem faltar ainda Sartre, Melville, Kafka, Artaud, Brecht, Deleuze, Foucault, Camus, Derrida. Trajetos imaginários que não se assemelham de todo, e cada vez mais se distinguem e se distanciam até um declínio-esgotamento que se dará então, como todas as vias e todos os nomes, que não é de vias e de nomes que se trata, nem de identidades, porções, partidos, mas de contínua peleja. E um dia talvez se possa encerrar todo e qualquer dis-curso sobre história, política, filosofia e os ambientes de cultura com a fábula do homem o dia inteiro na biblioteca; ele pega mais livro do que qualquer um; e nem sabe ler; diz que gosta de pensar nos livros, mas sem os ler; tem sempre um debaixo do braço... Um livro que nos leia.

Ney Ferraz Paiva
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Maurice Blanchot em um belo ensaio sobre Antonin Artaud, em seu O livro por vir, afirma algo de enigmático acerca daquilo de que se trata quando se trata de pensar: a impossibilidade mesma de. Afirmação esta de Blanchot que parece truncada, fechada em si própria como um jogo em curvas nas que o corpo o que pode de si num à frente, o seu lançar-se, é já este o voltear sobre si, o passo atrás, o vergar das juntas em desequilíbrio. Outra vez será Blanchot a dizer: da impossibilidade de pensar que é o pensamento. É bom que se esclareça que pensar não é o mesmo que ‘ter pensamentos’, ou que destes se ocupar a todo tempo e instante. Talvez aqui estivéssemos justo no que o paralisasse, dizendo do que pensar este ‘ter pensamentos’ como aquilo que o deixasse de tal forma assentado a um estado de coisas, de tal modo, nestas enredado, nas coisas que se lhe dessem ao trabalhar de seu trabalho que o que ele promovesse fosse mera liturgia pela qual e na qual aquelas coisas, ou a modalidade delas no arranjo estratificado que vem a ser o real dominante, acabassem por se insurgir contra ele depositando-o no inteiro de uma função outra – a da narrativa (um seu engendramento)...

Ecerto de "Como Fazer Funcionar um Corpo sem Rastro", André Queiroz

segunda-feira, 30 de março de 2009

ARTES VISUAIS CARA A CARA


A única coisa que é interessante definitivamente, é influenciar, é estabelecer um contato, comunicar, enfiar um prego na passividade e na indiferença das pessoas.
Ingmar Bergman



“Reencontro com Shthuart’s”, exposição coletiva de artistas visuais de Palmas, Araguaína e Ananás, composta de 30 obras, entre escultura fotografia, pintura e colagem, é uma bem-vinda tentativa de mostrar não só o talento e a criatividade dos artistas, como constitui-se também, a partir da descentralização e do intercâmbio de conhecimentos e procedimentos artísticos, um desejável encontro para a apreciação de diferentes experiências e propostas sobre as possibilidades criativas das artes visuais e suas modalidades no Tocantins.

A mostra é a primeira realização da Associação de Artistas Visuais do Tocantins – AVISTO, com apoio da UFT, Fundação Cultural do Tocantins e das prefeituras municipais, e pretende circular além de Araguaina, por Gurupi, Porto Nacional e Palmas. É bom que assim seja. A arte deve alcançar seus diferentes públicos, inquietar, expor os bocados duros de roer, levar as pessoas a pensar. No seu âmago, a arte não é entretenimento. Não se está cortejando o favor do público nem das instituições. Hamlet já advertiu e desqualificou a todos que assim o fazem, ainda que muitos continuem a fazer. A exposição, ao que parece, quer recorrer a um tempo e relação de inquietude, face a face, cara a cara.

Mesmo sem ter nenhuma de suas obras expostas, o artista Shthuart’s, que viveu e atuou em Araguaína por duas décadas, empresta seu nome à exposição, e talvez seja certo dizer que ele faz parte do contingente mais significativo da arte contemporânea no estado. Shthuart’s morreu em 1994, entretanto permanece como uma intromissão violenta no tempo, uma observação da beleza a longa distância, uma vez que de suas esculturas, cerca de três mil, não tivemos ainda como estimar o paradeiro.

Em torno dessa efervescência produtiva e da precariedade de circulação da obra de arte, o ator Bil, da Companhia Ciganos de Teatro, deu seu depoimento, na abertura da exposição, sobre um artista que não se acomodou a seu destino, acordado pelo trovejar das chuvas e dos rios, atento ao clamor das árvores e dos pássaros, num tempo ainda em que as questões ambientais não transitavam na grande mídia, muito menos tinham o forte apelo publicitário dos dias que correm. Shthuart’s fez de suas esculturas os gestos apaixonados de uma dança da natureza. Um rito de beleza e de assombrosa destruição.

Uma amizade na obra. Um encontro neutro. De imagens, formas e palavras, não apenas paralelas, mas cruzadas, já que houve ainda àquela noite o lançamento do livro “Leituras de Textos de Autores Tocantinenses”, em que pela primeira vez a crítica especializada se lança em torno da produção literária feita no Tocantins. Sob a organização da professora Hilda Gomes Dutra Magalhães, o livro aborda e investiga a obra de quinze autores que atuam no Tocantins. Quando isso acontece à literatura, produz grandes efeitos. Certamente mais que os milhões gastos em qualquer salão ou feira do livro. Cultura erudita e sofisticada custa dinheiro, isso é uma verdade imutável. Mas é preciso ter coragem de dizer que é ela que torna a sociedade melhor. E que não se justifica o desabusado investimento público e privado na mesmice e na mediocridade. Patrocinando uma sociedade encarquilhada e encoberta pelos clichês.

Ney Ferraz Paiva

domingo, 8 de março de 2009




EU SUJEI A PERFEIÇÃO

Entrevista com Max Martins



Por Oswaldo Coimbra


OC - Max, nós gravamos a conversa que você teve conosco – professor e alunos do mestrado de Letras, da UFPA, há sete anos, durante a qual você fez longas e demoradas reflexões sobre a poesia, seus métodos de criação, seu público, as quais gostaríamos de apresentar agora a você, imaginando que não necessitarão de grandes correções da sua parte.

MM - Eu posso falar porque, afinal, são setenta e quatro anos de vida e tive tempo de meditar sobre a minha poesia. Então, eu repetirei o que disse, embora já se tenham passado sete anos desde aquela conversa. Vocês encontrarão a minha boca torta, a língua meio enrolada, portanto, diferente daquele tempo, mas creio que teremos sucesso ao falarmos de poesia.

OC - Gostaríamos, inicialmente, de recuperar um momento importante daquela conversa, quando você, a nosso pedido, estabeleceu uma relação entre a sua produção poética e a sua vida, isto é, quando você entrou no tema “Texto e Vida”. Você disse que a poesia era uma opção de vida. “Em primeiro lugar, eu quis ser poeta”. Esta frase contém alguma coisa que não costumamos ouvir. Embora a figura, a imagem social, do poeta, a de um homem sensível capaz de atrair o interesse das mulheres, dentro do clichê conhecido, encante muita gente, poucas pessoas colocam, de fato, a produção poética no centro de sua vida, como a sua atividade mais importante. Você disse ainda: “Mas eu sabia que isto poderia me custar muito. Perdi os dentes, perdi o bonde, perdi uma maneira de ganhar dinheiro, de vencer na vida. Me dediquei só à poesia. O resto eu transformei em calo seco para que não doesse tanto”.

MM - Gostei desta frase. Tomara que eu tenha agora a mesma inspiração daquela hora. A minha poesia tem uma relação muito séria, muito veemente com a vida. É poesiavida, vidapoesia. Eu quero sentir nas palavras, nas frases que eu uso, nas rimas – se há rimas –, em tudo, cheiro de sangue. Faço uma imagem. Como não datilografo, escrevo só a mão, quero sentir meu sangue escorrendo nas minhas veias, passando para os dedos e para a minha mão que segura a caneta "bic", de tinta preta. Eu bebo a minha emoção no cotidiano. O meu ler a vida é relacionado às coisas mais simples, mais corriqueiras da vida que me incluem e eu transformo em poema. Acho que o poeta precisa ter a maior liberdade para criar. Não se compreende um artista preso em correntes, nem na chamada realidade do cotidiano, nem em religiões. Só se cria alguma coisa tendo liberdade. Acho que o poeta é um Deus – comparando-o metaforicamente – porque ele tem a liberdade de Deus ao criar, para inventar o seu poema. Porém, o poeta precisa também de humildade para enfrentar o desafio da folha em branco, para tentar criar alguma coisa. Ao poeta, também, é necessário desejar, ter vontade, uma chama, para fazer o melhor poema do mundo. Ele deve tentar alcançar esta grandeza embora possa nunca alcançá-lo. Ele tem de ter vontade de fazer a coisa bem-feita, perfeita. Eu digo que escrevo pelo meu bem. Não escrevo sobre coisas já constituídas. A minha poesia é o império do vago. Tenho um diário com já perto de cem cadernos em que crio palavras a esmo, de onde um pinço meus poemas. Pinço palavras sem o seu significado comum que dependem do acaso. A poesia também é um jogo com as palavras, com as ideias. É fruto de uma vagabundagem, de uma viagem que eu faço, sempre escrevendo numa prancheta, dentro de uma rede que eu chamo de minha nave caótica. Misturo sonhos, e, às vezes não estou escrevendo nada, nem estou pensando no sentido filosófico da palavra. Estou apenas viajando no meu pensamento, na minha vagabundagem. Sim, agora façam outra pergunta.

OC - Vamos voltar para a rede. Quando pedimos, na conversa anterior, para você falar de seu método de criação você disse de modo definitivo: “Não existe chamamento, inspiração”. E explicou: “Diariamente, eu pego meu papel, o lápis e uma prancheta, e, me embalo na rede”. Este embalo tem uma função no seu processo de criação?

MM - Nós costumamos empregar a palavra embalo para designar dança. Dizemos, por exemplo, “Estou no embalo”, com o significado de dançar. A poesia, como a dança, tem um ritmo. Nascido, porém, da respiração do poeta. Não é um ritmo melódico, nem rimado, embora um poema possa casualmente ter rima. Infelizmente, o meu pulmão está intoxicado pelo cigarro, mas o cigarro é muito importante para mim. Tenho a impressão que, pelo andar da minha vida, morrerei fumando. Fumar, hoje em dia, sofre repressão por uma mania de saúde que obriga as pessoas a serem belas, fortes e ter bons pulmões. Não aceito esta repressão e me enraiveço com as pessoas que me tolhem, inclusive na minha própria família. Tive de levantar ontem à noite da mesa onde estava jantando porque minha filha que não mora na minha casa também jantava e me disse: “Papai, você não podia fumar longe?” Ela é cardíaca também e estava com razão, mas fiquei com raiva. Não disse nada. Me levantei e me tranquei no meu paraíso, aquele último quarto onde estão os meus livros, minha rede. E me embalei na rede e esqueci o incidente. Acho antipático este policiamento. Por que não reclamam dos carros em cima das calçadas? Das calçadas esburacas? Do cocô de cachorro em cima das calçadas? Há muita coisa contra o que reclamar. Mas só se reclama do cigarro. Isto nasceu de uma mania de americano zeloso de ser só preocupado em comer suas vitaminas. Por isto, isto é, por raiva acho que morrerei fumando.

OC - Mas o embalo da rede fornece um ritmo?

MM - Ah! Sim. O embalo dá o ritmo que já está dentro do meu pulmão, na minha respiração e na minha aspiração - um ritmo docemente ondulatório.

OC - Ainda com relação a seu método de criação, você disse, naquela conversa que, ao se embalar na rede, “pensava e escrevia”. Você afirmou: “Poderia começar a escrever um poema com uma ideia ou com uma frase escrita a esmo, a qual depois seria trabalhada e reconvidada a entrar no salão do poema. Mas eu poderia começar com uma frase escolhida a num texto qualquer. Ou, ainda, com uma outra frase poética”. Então, você tem várias possibilidades como ponto de partida?

MM - No poema cabe tudo, qualquer palavra, signo, ideia. O poema pode ter alguma ideia e pode não ter. O ritmo se faz ao acaso. Vagamente. Imposto pelo meu respirar. Automaticamente. Se eu já respiro pouco porque meu pulmão está ressentido, meu poema será capenga em seu pulmão, se podemos dizer assim. No poema cabe qualquer palavra contanto que tenha este ritmo natural. No final, ela vai se encaixando. Mas pode ser que as palavras não sejam entendidas imediatamente. As palavras podem ser sombrias, pedem sombras, adoram sombras porque escondem outras palavras. As coisas, aliás, existem escondidas nas outras coisas. Este é um mistério que nos atrai, esteticamente. Há aí uma questão de gosto, de prazer nisto. Por esta razão digo que escrevo pelo meu bem, pela minha autossatisfação, movido pelo meu desejo. O que move tudo é o desejo. Não só amoroso, embora, no final, tudo redunde, recaia no desejo amoroso. Afinal, o amor é o que o principal da vida. E o poema busca nos ouvintes o caminho do amor. Amor que, neste caso, é doação. O poeta é um doador. O que move o poema é o se dar. É o oferecer uma dádiva, um trabalho, um papel com um poema, enfim, um trabalho de arte. Pode ser que a doação do poeta não ocorra no momento em que for lido pela primeira vez. Mas ainda que se passem cem anos surgirá o momento da identidade entre a poesia e a vida.

OC - Max, você acabou de dizer que é o amor que move a criação poética, um amor não necessariamente físico, sexual. Mas há poemas seus que são eróticos, não é verdade? Na nossa outra conversa, você disse: “As palavras têm a capacidade de parir outras palavras”. Explique isto para nós, por favor.

MM - Sou chamado de poeta erótico, não porque descreva cenas eróticas, mas principalmente porque, para mim, as palavras se amam, se abraçam, se beijam, copulam, dependendo das circunstâncias poéticas, no contexto da escrita. Elas rimam umas com as outras – estão se amando. Há também um erotismo das palavras em outras figuras de Poética. Eles se aliteram. Há as metáforas. Enfim, elas se tocam.

OC - Há sete anos, nós perguntamos o que, para você, é a poesia. Você nos respondeu: “Para mim, a criação poética não se confunde com o trabalho de burilar versos. É estudar e ver o mundo. Em primeiro lugar, é estudar a arte poética da minha língua. Mas, também, os sons, as rimas, as metáforas dos poemas escritos em outras línguas. Compreendi que a arte da poesia é trabalho, estudo, uma visão do mundo e uma apreensão do espírito da humanidade”. Portanto, é tudo isto, e, só não é inspiração.

MM - A poesia é muito mais respiração porque não existe esta coisa de sentar-se numa mesa de bar, num fim de tarde já indo para a noite, tomar uma cerveja, olhar a lua e esperar que ela jogue no papel de sua mesa um poema. Não. A poesia é antes de tudo um trabalho que é, também, físico. Eu, por exemplo, fico cansado fisicamente também, depois de vagabundear por um certo tempo – cansado de escrever, riscar, emendar. O trabalho do poeta consiste também em sentar a bunda diante de uma mesa com um papel em branco e começar a escrever, mesmo sem saber no que pensar. Também se transpira, se sua, neste trabalho. É um parto, com a dor da fêmea, parindo.

OC - Mas o poeta também é um moleque, um brincalhão, não é?

MM - Sim. Se é um jogo é uma brincadeira, também.

OC - Dizemos isto porque causou muito impacto naquela turma de mestrandos, com a qual você conversou, anteriormente, aquele momento no qual foi pedido a você que explicasse o significado de um pequeno círculo preto usado como título de um de seus poemas. E você pacientemente explicou que não era, digamos, um nariz.

MM - Era o cú. Um simples sinal usado como título que lembrava o cu, mas lembrava também o ponto preto. Podia levar àquilo que o leitor imaginasse porque o leitor, às vezes, é superior, em inteligência e em ideias, ao próprio autor.

OC - Você acha, então, Max, que o poema lido pelo leitor é às vezes melhor do que aquele escrito pelo poeta?

MM - Pode acontecer isto, mas pode não acontecer, também. É algo colocado dentro das possibilidades. O leitor pode sentir algo, não compreender, nem interpretar, sem poder dizer isto em palavras. Por isto, na sua leitura pode acabar escrevendo outro poema melhor que o do poeta.

OC - E qualquer forma, aquele ponto preto é algo ligado à concepção que você tem da palavra também como mancha na página, não é isto? Então, se é uma mancha, pode, inclusive, ser apenas um ponto preto.

MM - Exato.

OC - Aquela conversa, você disse: “A palavra é ideia, som e figuração visual”. Para o seu trabalho qual destas três dimensões da palavra é a mais importante, aquela que você mais explora?

MM - A mais importante é a dimensão da palavra enquanto som. O som é um elemento fantástico do ritmo. Ritmo, insisto, que não é melodia, nem rima, nem metrificação. A poesia pode ficar longe de tudo isto. Ela pode abster-se de rima e de metrificação, mas não se abstém da metáfora porque é algo próprio do ser humano inventar metáforas já que uma ideia puxa outra ideia. Um pé de mesa não é um pé mas recebe este título. Há um farto universo de metáforas. Cabe ao poeta, ao acaso, pinçar uma ou outra e criar novas metáforas. Cabe a ele isto – criar metáforas inusitadas, não adivinhadas ainda, mas que, um dia, serão creditadas, acreditadas, ainda que para isto seja necessária a passagem de cem anos, pois a humanidade sempre estará pensando em novas metáforas. No momento que se vive, hoje, as metáforas estão abundantes até na propaganda comercial. Então, faremos poemas da propaganda comercial.

OC - Depois que você lembrou, naquela conversa, das múltiplas dimensões da palavra, nós entramos num outro item, relativo às frequentes manifestações de insatisfação dos poetas com as palavras, sobretudo, porque elas generalizam, não captam fenômenos específicos aos quais se referem. Por exemplo, com a palavra amor se designa tipos diferentes de sentimentos: o amor por livros, o amor materno, o amor entre irmãos etc. Quanto a este item, você disse: “Eu desconfio das palavras. Nós somos limitados, passageiros. Não temos ideia do todo. Só temos esta ideia, através do misticismo, da bebedeira, da loucura e da poesia. E só podemos falar deste todo com metáforas ou com silêncios entremeados com palavras”. Depois, você disse também: “Eu quero mostrar num poema que eu desconfio das palavras, que não acredito nelas, mas que, ainda assim, quero fazer um bom poema com aquelas palavras. Quero que o leitor perceba que faço o jogo de quem acha que se deve acreditar nas palavras”. Em seguida, você contou aquela anedota zen segundo a qual o dedo que aponta para a Lua não é a Lua.

MM - A palavra nunca é a coisa, a não ser em metáforas com a própria palavra. É um erro confundir a Lua com o dedo apontando para a Lua mas, hoje, já existe o homem na Lua que pode apontar para ela própria. Isto é outra coisa. Todas as palavras são falsas porque elas não são as coisas a que se referem. Neste sentido não acredito nelas. Uma palavra não é o sentimento de amor, nem de patriotismo. Por outro lado, da palavra consta também uma visualidade que se consegue igualmente no seu som, e, na maneira de escrevê-la, tanto através de caligrafia, como de tipografia, como eu mostrei no meu poema Copulêtera. Muita gente não o entendeu. Aliás, numa ocasião, eu falava para estudantes da Casa da Linguagem e mostrei um poema visual. Era o Abracadabra que se compõe de vários “As” em preto, e, de um único “A”, vermelho, no centro do poema. Então, me perguntaram: por que aquele A é vermelho? Confesso que não tinha uma resposta. Então, improvisei. Disse: “Este A vermelho é o coração do homem, e, é o coração do poema”. E a explicação foi aceita. Mas, eu havia pensado aquilo naquela hora. Concluindo: portanto, na poesia também existe a trapaça, o roubo, a molecagem. Entra tudo neste jogo, neste brinquedo, nesta brincadeira, devido à liberdade que o poeta deve ter para criar. Deus, o criador, segundo Fernando Pessoa, devia ser um brincalhão, também, um moleque, quando garoto. Mas, puxem mais pela minha língua e pela minha memória.

OC - Ouvindo você, agora, Max, nós nos lembramos de que em algumas religiões orientais, Deus não pode sequer ser designado por uma palavra. Ele é o Inominado porque qualquer outra palavra o diminuiria em sua importância.

MM - Deus, para mim, é um mistério, felizmente. Um mistério para o qual procuramos uma metáfora, como Deus, Jeová, Tupã etc. O homem precisa nomear as coisas, dar nomes a ela, se não ele bate com a cabeça na parede. A necessidade de dar nomes, de criar palavras, é também visceral, humaníssima. É uma necessidade do homem. Aproveito para contar que este poema Abracadabra eu inventei de uma lembrança de meu pai. Aprendi a ler numa folha de cartolina, onde meu pai colocou o abecedário. As letras consoantes e as vogais. Umas pretas, outras vermelhas. Assim, fui aprendendo a silabar, a criar palavras. Quando fui para a escola, já sabia ler. Foi com a lembrança disto que criei o poema. Descobri a palavra abracadabra, com a sua profusão de “As”, no mesmo lugar. Eu só fiz puxar os As que ela tem. Eles já tinham um ritmo, uma medida. E fui afinando as linhas com os As e botei um A, vermelho, no centro. E vi, como Deus, que aquilo era bom. Que era ótimo. Eu tinha criado algo, assim como a possibilidade de inventar uma mentira sobre minha criação. Fiz o poema como homenagem ao meu pai, ao meu criador, que me ensinou a ler. E respeito muito a memória de meu pai, por isto, até hoje.

OC - Max, na primeira conversa que tivemos você nos presenteou com uma muito bem elaborada descrição de como você faz um poema. Você nos disse: “Consigo fazer um poema com um dizer que é direto, num esconde-mostra, com palavras que não escolho antecipadamente”. Vamos começar pelo esconde-mostra e pela escolha não antecipada.

MM - Eu embaralho tudo e tiro palavras que estão dentro da palavra escolhida. Começo a olhar, a ver visualmente a palavra, de frente, de lado, de costas, para verificar o que ela pode dar. E aí começo a traçar uma rede que não é de embalar, mas me embala a ideia.

OC - Você continuou, em sua descrição: “As palavras vão surgindo da experiência de vida, da experiência de convivência com outros homens, da experiência de lidar com as palavras, da experiência de lidar com a tradição poética”.

MM - Puxa vida! Eu não tenho hoje, a facilidade para fazer esta descrição que tive naquela ocasião. Conviver com as palavras, viver com as palavras é também dar a sua vida às palavras. Fingir que as palavras vivem. E aí começa a crescer aquela rede. As palavras se trançam e transam, também. Entra o erotismo. As palavras criam um tecido de ideias, de sons etc. Como, agora, está ocorrendo, quando vou dar sequência a estas ideias. Neste instante, vou ter de inventar ideias. Continuando, portanto: as palavras criam uma rede, como a que nos embala na infância e como a que nos enterra, também. É uma rede que lembra a vida, mas lembra a morte, também. E ai de quem se lembrando da vida, não se lembre da morte! A ideia da morte, de sobrevivência do homem, está escondida. O homem não quer nem se lembrar dela, mas, ao não querer lembrar, ele está lembrando. Eu, com setenta e quatro anos, sou obrigado a pensar sempre na morte. Minha filha diz: “Papai, não pense na morte”. Mas estou vivo, então, tenho de pensar na morte. Há esta curiosidade na poesia, esta curiosidade humana desperta e, também, noturna, escura, de auto enganação. Daí porque as palavras amam a sombra. Por isto, também, todo poeta tem de ser difícil, por causa desta obscuridade. Eu, agora, me perdi, como naquele meu poema Viagem, feito para a maconha. Eu falava nela, sem falar a palavra maconha. Dizia: “O rio desapareceu. Ou me perdi”. Estou sendo obscuro.

OC - Você não se perdeu. O que está dizendo é algo que você vem repetindo, há algum tempo. Lembramos que já ouvimos você dizer que odeia o virtuosismo.

MM - Abomino a coisa certinha.

OC - Você nos disse que odeia o que faz com facilidade, por já o fazer, há muito tempo. Afirmou, em nossa conversa, há sete anos: “O que amo e adoro são os caminhos tortos. É a mancha, o riscado, o homem com as suas limitações e erros. Quando eu faço algo e pelo tempo e pela constância com que eu o faço sou levado a uma facilidade em fazer, tenho consciência de que devo mudar para não me tornar um virtuoso”. Não é aí que entra a sua atração pelas coisas tortas?

MM - Eu adoro as manchas. Tenho uns diários que eu ilustro com palavras escolhidas ao acaso, com desenhos e colagens. Nunca aprendi a desenhar, nem a pintar, mas gosto das minhas manchas. Desenho umas calungas de diferentes cores e parto do erro, da coisa errada para ver o que ela diz à minha sensibilidade, à minha rede nervosa. Por causa do erro tenho, então, de pensar em outras coisas e vou criando. As coisas tortas têm mais a me dizer do que as coisas certíssimas que, a cada passo, nos entediam, nos aborrecem, nos enjoam. Eu quero que, a cada passo, um soco na minha cara me desperte. Esta é uma imagem zen. Os mestres zens chegam a esbofetear os discípulos para despertá-los para a iluminação, o nirvana. Eu me perdi, de novo. Ainda bem.

OC - Nesta nossa conversa de agora você também já falou de seu público, ligeiramente. Mas, na vez anterior, você disse: “Escrevo para o meu bem, como se fosse para mim. Mas escrevendo para mim, procuro seduzir o outro. Procuro dotar minhas palavras de altas voltagens”. O que são as altas voltagens?

MM - Vou ter de inventar a minha resposta, agora. Alta voltagem é o som, o seu significado perfeito dentro da língua, mas que possa ser também trocado, truncado, para obrigar o leitor a bater a cabeça e a criar, como pode fazer um soco na cara, que é violento, mas pode despertar para a claridade uma ideia.

OC - Portanto, você não se interessa em atender ao chamado gosto médio do leitor.

MM - Nunca penso no gosto médio do leitor. Penso no leitor ocasional. Há um leitor? Deve haver. Então, ele vai fruir da coisa boa, bonita, que eu disse. Mas pode não usufruir. Acredito que encontrarei um leitor até na China, falando chinês. Como? Não sei. Mas vale a metáfora. Uma pessoa analfabeta pode se sensibilizar ouvindo uma pessoa ler um poema, numa tradução. Isto depende da possibilidade de o tradutor ter a capacidade de inventar, de ser original.

OC - Com relação a seu público, você disse também: “Eu não escrevo para uma cara. Escrevo para o ser humano”.

MM - Por exemplo, havia um poeta inglês que escrevia num gabinete, diante de uma lareira, para si mesmo. Mas, estava escrevendo, de fato, para uma multidão. Já Maiakovski lia os seus poemas para uma multidão reunida num ginásio. Porém, tanto o inglês, como o russo, estavam falando para um indivíduo só, para o coração do homem que estava ouvindo-os. Afinal, uma multidão é formada de indivíduos. Então, este é o público que se pode ter. Fala-se sempre para este universo que é um homem, com coração, fígado, estômago, braços, alguém capaz de se sensibilizar.

OC - Naquela entrevista nós não perguntamos a você, mas vamos perguntar agora, o seguinte: o seu compromisso com a universalidade da linguagem poética pode ficar ameaçado se você se sentir obrigado a desenvolver um sentimento de compromisso também com a região amazônica?

MM - Uma vez me perguntaram por que eu não escrevia sobre a Amazônia.

OC - Na verdade você escreve. Há um poema seu sobre o Ver-o-Peso.

MM - Há outro sobre Muaná. Mas, desconheço isto para fazer valer a seguinte resposta: eu não escrevo sobre a Amazônia. A Amazônia é que me escreve. Isto é complicado e não tem lógica, mas um poeta não pode andar atrás da Lógica. Fica aí a questão, a coisa vaga. O poeta é vago.

OC - Nós tínhamos incluído um item sobre erotismo em sua obra na pauta desta nossa conversa porque na anterior você havia dito: “Não se trata de um erotismo que resulta do significado das palavras. É acasalamento, cópula de uma palavra com outra, de uma imagem com outra”. Mas você já falou disto. Então, nós queríamos que você contasse aquela sua experiência de tentar escrever um poema erótico com a poetisa Olga Savary.

MM - Pensei em fazer um poema místico oriental com a Olga Savary porque ela tem um livro de poemas eróticos. Os meus poemas iriam ter um acasalamento com os dela. Comecei pelo fim, com a palavra mística budista om, que significa revelação, congraçamento. A palavra, no fim do poema, ficaria num círculo composto por um “o” e por um “m” que se completavam. Mas perdi a vontade. Conversei com a Olga e não tive coragem de apresentar a ela a minha ideia do poema. Cheguei a escrever uma carta, há muitos anos, quando tive esta ideia, mas acabei não a mandando e o poema murchou.

OC - Você está se sentindo cansado, neste momento, Max?

MM - Um pouco. Vou tomar um copo de água. Mas queria dizer que minha poesia tem muito a ver com o dadaísmo, com suas brincadeiras, com a linguagem do tatibitate. Tem a ver também com o surrealismo. Gosto de tudo o que é poético.

OC - Max, por fim, queríamos pedir que você nos falasse mais de suas colagens. Qual é a história delas?

MM - Comecei a montar, a colar, recortando, a princípio, com tesoura, depois, rasgando, para obter contornos eriçados. Isto há muitos anos. Hoje, acho aquelas colagens muito bonitinhas. Embora sejam dadaístas, surrealistas, estão muito de acordo com o figurino semântico, poético. E, por serem perfeitas demais, me incomodavam. Hoje, minhas colagens são muito diferentes. São menos certas, mais erradas. Nunca são certas, mas eu gosto delas.

OC - Você já chegou a expô-las?

MM - Já houve uma exposição delas em São Bernardo, São Paulo. E recentemente elas foram expostas em várias universidades norte-americanas, levadas pelo Jim Bogan, um poeta norte-americano que visita muito Belém. Ele se entusiasmou pelas colagens, tirou cópias coloridas das páginas do meu diário e as expôs, junto com poemas meus. Mas... Minha memória não é fogo.

OC - Você estava dizendo que suas colagens já não são tão certinhas, hoje.

MM - Ah! Com relação aos poemas, Bogan me recomendou que mandasse algum em sua versão original, com suas rasuras e correções, com as emendas que eu havia feito nele. Em fingi que mandei um poema original. Falsifiquei emendas e rasuras. Ele achou ótimo. Poesia também é fingimento, falcatrua, molecagem. Tudo vale neste jogo maravilhoso que é a poesia.

OC - Muito obrigado, Max.

MM - Eu ainda queria dizer que sou um autodidata, mas que estudei e continuo estudando, lendo. Na minha geração, nós tínhamos a obrigação de nos apresentar com textos bem feitos, com bons trabalhos. Um reflexo desta geração era a perfeição. E eu sujei a perfeição. Por isto, aceito, em vez de homenagem, um soco zen-budista na cara, que me alerte, me desperte.

OC - Mas nós queremos homenageá-lo entregando rosas a você, rosas que você já disse serem dádivas.

MM - Isto me lembra uma frase de um artista plástico. Ele disse: “Deixem crescer as flores”. Ele fez este apelo veemente, contido só nesta frase. E eu escrevi, usando a frase e pensando em minha própria morte: “Deixem falar as flores nesta árvore” E desenhei a imagem de uma árvore já morta, e, escrevi: “Neste dia, neste dia”.

OC - Tudo bem, Max, mas nós não estamos dando as flores por pensarmos em morte, neste instante. Ao contrário, queremos apenas celebrar o prazer que a sua presença, hoje, entre nós, nos traz, numa manifestação de gratidão a você e à vida.

Imagem: Joseph Beuys, Iphigenie/Titus Andronicus, 1985