o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 17 de janeiro de 2016

Duas cartas de René Magritte a Michel Foucault


23 de maio de 1966

Prezado Senhor,

O senhor fará o obséquio, espero, de considerar estas poucas reflexões relativas à leitura que faço de seu livro As palavras e as coisas...
As palavras Semelhança e Similitude permitem ao senhor sugerir com força a presença – absolutamente estranha – do mundo e de nós próprios. Entretanto, creio que essas duas palavras não são muito diferenciadas, os dicionários não são muito edificantes no que as distingue.
Parece-me que, por exemplo, as ervilhas possuem relação de similitude entre si, ao mesmo tempo visível (sua cor, forma, dimensão) e invisível (sua natureza, sabor, peso). É a mesma coisa que concerne ao falso e ao autêntico etc. As “coisas” não possuem entre si semelhanças, elas têm ou não têm similitudes.
Só ao pensamento é dado ser semelhante. Ele se assemelha sendo o que vê, ouve ou conhece, ele torna-se o que o mundo lhe oferece.
Ele é tão invisível quanto o prazer e a pena. Mas a pintura faz intervir uma dificuldade: há o pensamento que vê o que pode ser descrito visivelmente. As Damas de Honra[1] são a imagem visível do pensamento invisível de Velásquez. O invisível seria então, por vezes, visível? Só com a condição de que o pensamento seja constituído exclusivamente de figuras visíveis.
A esse respeito, é evidente que uma imagem pintada – que é intangível por sua natureza – não esconda nada, enquanto o visível tangível esconde sistematicamente um outro visível – se cremos em nossa experiência.
Existe, há algum tempo, uma curiosa primazia conferida ao “invisível” através de uma literatura confusa, cujo interesse desaparece se se observa que o visível pode ser escondido, mas que o invisível não esconde nada: pode ser conhecido ou ignorado, sem mais. Não cabe conferir ao invisível mais importância do que ao visível, ou inversamente.
O que não “falta” importância é ao mistério evocado de fato pelo visível e pelo invisível, e que pode ser evocado de direito pelo pensamento que une as “coisas” na ordem que o mistério evoca.
Permito-me apresentar a sua atenção as reproduções de quadros anexas, que pintei sem me preocupar com uma busca original no pintar[2].
Queira aceitar etc...

René Magritte

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Notas
[1] Também conhecido por Las meninas. (N. do T.)
[2] Entre essas reproduções havia “Isto não é um cachimbo”: no verso, Magritte escrevera: “o título não contradiz o desenho, ele o afirma de outro modo”.


Isto não é um cachimbo, 1929. Óleo sobre tela 23 x 31 cm


4 de junho de 1966

Prezado Senhor,

... Sua questão (a respeito do meu quadro Perspectiva. O Balcão de Manet) pergunta sobre o que ela própria já contém: o que me fez ver ataúdes onde Manet via figuras brancas é a imagem mostrada por meu quadro onde o cenário do Balcão convinha para situar os ataúdes.
O “mecanismo” que operou aqui pode ser objeto de uma explicação erudita, da qual sou incapaz. Essa explicação seria válida, talvez certa, mas continuaria sendo um mistério.
O primeiro quadro, intitulado Perspectiva, era um ataúde sentado sobre uma pedra, numa paisagem.
O Balcão é uma variante do precedente, houve outras anteriormente: Perspectiva. Madame Recamier de David e Perspectiva. Madame Recamier de Gérard. Uma variante com, por exemplo, o cenário e os personagens do Enterro em Ornans, de Coubert, teria o sentido de uma paródia.
Creio que se deve notar que esses quadros, chamados Perspectivas mostram um sentido que os dois sentidos da palavra Perspectiva não têm. Essa palavra, e as outras, tem um sentido preciso num contexto, mas o contexto – o senhor o demonstra melhor do que ninguém em As palavras e as coisas – pode dizer que nada é confuso salvo o espírito que imagina um mundo imaginário.
Agrada-me o fato de que o senhor reconheça uma semelhança entre Roussel e o que eu possa pensar que mereça ser pensado. O que ele imagina não evoca nada de imaginário, evoca a realidade do mundo que a experiência e a razão consideram confusamente.
Espero ter a oportunidade de encontrá-lo por ocasião da exposição que farei em Paris, na galeria Iolas, pelo fim do ano.
Aceite etc...


RENÉ MAGRITTE
Tradução: Jorge Coli



Madame Recamier de David, 1950. Óleo sobre tela 60 x 80



Balcão de Manet, 1950. Óleo sobre tela 81 x 60 cm 

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